segunda-feira, 1 de março de 2010

O IMAGINÁRIO NO TEXTO ANGOLANO


ANTÓNIO SETAS

Nasceu no Lobito em 1942 e, fugindo à integração no exército colonial português, obteve estatuto de refugiado político da ONU. Licenciado pela Universidade Livre de Bruxelas em Ciências Políticas, publicou vários livros na França. Tem, na Editorial Nzila, “A Caixa de Chifre Preto” e “Os Filhos do Papá Dya Kota”, de onde se retirou o presente excerto. Vive em Luanda.

OS FILHOS DE PAPÁ DYA KOTA

Mal tivesse a ocasião a Lia aparecia no Bairro, ficava durante três ou quatro dias em nosso casa e repartia para Porto Amboim, vaivém que se repetiu durante mês e meio. Esta azáfama devia-se à falta de peixe decorrente de uma violenta kalemba (marés violentas) de Agosto, nada a ver com a que levara o Belela, contudo causadora de sérios danos materiais, sobretudo a pescadores do Mussulo e da Xicala. Queixavam-se os luandenses, que viam o preço do pescado a disparar à toa, queixavam-se as senhoras das salgas, as fábricas e os próprios pescadores, que além dos danos sofridos não viam peixe nem dinheiro a entrar. E foi por essa altura que correu pelo Bairro o mujimbo (boato) de que se ia organizar um kakulu, método infalível para acalmar, pedir clemência e ajuda às yanda (Espírito das águas. Vocábulo associado., abusivamente, às sereias), porque o mais certo era elas terem sido vítimas de desrespeito intolerável, vá-se lá saber por via de quem.
Entre as pessoas que mais se animaram com a nova estava a Lia. Ela queria ver para acreditar no que lhe diziam algumas pessoas do Bairro, que as yanda são como nós humanos, vivem entre nós – há quem tenha visto as cidades onde elas habitam -, mas que normalmente só se consegue ver um ou outro sinal da sua existência, luzes, lençóis e fitas de luz com muitas cores debaixo da água. Sabia que elas são ituta, seres espirituais terrestres, que interferem na vida das pessoas tanto para o bem como para castigar, isso depende das pessoas, do comportamento das pessoas, de muita coisa. Vivem na água e podem encarnar, por exemplo, os gémeos, as pessoas que nascem depois de nove meses de gravidez, ou os que ao nascer já vêm com dentes, são ituta verdadeiros, e mais vale acarinhá-los e fazer-lhes todas as vontades, senão pode haver azar. E não era preciso explicar-lhe que os territórios das yanda são como os das províncias de qualquer país, encostados uns nos outros, com a diferença que vão do mar ou das águas interiores para a terra firme, e que aí, em terra, elas têm as suas árvores, o embondeiro sobretudo, mas também outros “paus de sereia”, como a matebeira, a musekenya e o ife, isso sabia a Lia. Mas pouco sabia do kakulu, cerimónia organizada em honra das yanda, rito antigo de veneração e reposição do respeito que lhe é devido, mais não seja que pela inegável influência que elas exercem sobre os caprichos do mar. Sabia que o kakulu era a sua mais alta expressão, mas não lhe conhecia a feição, nunca o tinha vivido. E agora, arrancada à sua zona “de fora”, com muita doçura bem entendido, sentia-se um pouco perdida no Bairro, queria saber, fazia perguntas, “Orienta-me”, pedia-me ela. Porém, a minha sabedoria sobre essa delicada matéria era de duvidosa origem, dado que os kakulu da Ilha tinha-os eu vivido de longe, e quem oficiava eram Ilamba do Cacuaco, ou do Caxito. Debatia-me entre as duas versões, a da Ilha e a do Kwanza. Além disso, sabia muito bem que a gente da Samba, da Corimba e do Mussulo, consideravam esses ilamba do norte de Luanda pouco credíveis. De pouco lhe podia acudir. Quem tentou ajudar, embora sem nunca lhe dará a boa nova que ela tanto esperava, foi o meu pai.

Um dia, como não podia deixar de ser, conseguimos enfim falar do kakulu. A conversa já tinha começado antes, não à volta de uma mesa, como bem assenta a qualquer uma, mas à beira da minha chata nova, entregue na véspera, modificada, tal e qual como eu queria, pintada de azul, pronta para ir para o mar. Tinha-se-me metido na teimosia ter um mastro, arranjar maneira de fabricar um dispositivo para montar o mastro e dispor como deve todos os aparelhos de segurar a vela, cordas e roldanas, todo o necessário para navegar nas calmas. A Lia não percebia nada de barcos à vela e alheou-se um pouco do bate-papo. Entretanto nós, o meu pai e eu, debruçavamo-nos tanto ao próprio como ao figurado sobre o problema, metíamos a cabeça nos fundos da embarcação para ver como montar um reforço que aguentasse com segurança a pressão do mastro, quando a Lia, que não se explicava a razão dos nossos contorcioismos, me perguntou: “Mas que ginástica é essa, Rui?”. Ergui-me – o Luisão não, continuou debruçado a imaginar soluções e- e expliquei-lhe que era preciso um reforço nos fundos para aguentar o mastro, que sem vela não dava geito ir para o mar…
“Vem até aqui, vem”, fez ela baixinho. Pegou-me pelo braço e afastámo-nos, “Deixa-te disso. O meu pai vai te dar um motor… chuutt!, é segredo”. Caí das nuvens, “Um motor!!?...”, “Sim, um motor de 40 cavalos. Tu não sabes o que é um motor?”… Fiquei muito contente, é claro, dei-lhe uns beijos mais ou menos castos, pois havia por perto uma boa dúzia de mirones, e ela não perdeu o ensejo para me pedir o troco da boa notícia que me tinha dado, “pede lá ao teu pai que me leve ao kakulu?” Num reflexo intuitivo olhei para trás, vi o Luisão a extrair-se penosamente de entre os bancos da chata e disse, “Quando formos almoçar”.
Durante o almoço que se seguiu abordei com pezinhos de lã a importâncias das yanda no nosso trabalho, a necessidade de um kakulu com tanta falta de peixe, os prejuízos, as kalembas, e a certa altura a Lia perguntou, “Mas há kakulu ou não há?”, e eu, muito depressa, “Vai haver, sim, vai haver, o pai explica”. Calei-me logo, não viesse de lá um tradiconal “Cala a boca!”. Mas o Luizão tinha de facto mudado muito. Alem disso ele bem sabia que a Lia se interessava pelo assunto porque no nosso bairro não havia muro que não tivesse orelhas. Olhou para ela com meiguice, todo ele dentes ao léu, e anunciou, “Vão haver kakulu sim senhora, e tu agora és da família, estás “por dentro”. Calou-se de repente, cobriu-se-lhe o rosto de tristesa, por um pouco não lhe desapareciam os olhos como quando se zangava, mas lá conseguiu subtrair um sorriso do precalço que se aprestava a anunciar, “Tem havido maka grossa com aquela malta da ilha. Organizam kakuku p’ra turista, ‘tás a ver, uma vez até a imprensa lá foi meter o nariz, não pode ser… Este kakulu é só do Mussulo, na Barra do Kwanza. É uma cerimónia de mais velhos. Depois, no dia seguinte, vamos benzer as praias, talvez nessa altura… vai ser difícil. Fica para outra vez, ‘tá bem?”.. Ficámos tristes. A Lia olhou para mim com ar de quem diz “Já sabia que ia ser assim”… Mas concodámos, as razões dos mais velhos respeitam-se.

***

Estava de facto previsto organizar um kakulu. E a habitual colecta já tinha começado algumas semanas antes, pouco depois da kalemba de Agosto. Prolongar-se-ia pelo menos por mais uns dois ou três meses. É que se quiséssemos venerar com justo aparato as nossas yanda, ainda faltava muito dinheiro para poder adquirir o peixe, a farinha de mandioca, as outras vitualhas, os garrafões de vinho, as grades de cerveja, as garrafas de uísque e de cognac, aguardente e caçaças de marufu, o tudo comprado em grandes quantidades na candonga (mercado paralelo, informal). Tanto dinheiro, não era em menos de quatro ou cinco meses que se poderia arranjar. Isto sem esquecer os utensílios diversos, os tecidos, os pratos, os copos, as mesas do culto e os ingredientes para a água lustral, o dikoso (líquido lustral, de purificação, na religião animista), antigamente uma mistura de caulino branco, água e noz de coco. Muito, muito dinheiro. Estavam já a contribuir, e continuariam, a fazê-lo, os patroões das “grandes redes”, muitos pescadores independentes e a grande maioria das senhoras “natas” ligadas à faina. Os empresários da pesca motorizada e industrial não participava, Nem tão pouco tinham sido contactados.

Quanto aos participantes no kakulu, há séculos que são, por assim dizer, os mesmos, os filhosda terra, neste caso preciso os filhos da ilha ligados à pesca, as “famílias natas” residentes no Mussulo e nas terras da baía do Mussulo, até aos limites norte da Samba. Muito mais reduzido seria o número de “famílias” que viriam da ilha de Luanda e dos musseques, “do mato”, que apenas seriam aceites se fossem fornecedores de pescadores às “sociedades” de pesca à rede da zona do Mussulo e da Samba. Porem, desde que entrassem, todos eles sabiam que, participando na cerimónia, seriam bem-vindos, mas que pela mesma ocasião, enquanto se realizava o kakulu, ficaraim sujeitos às Ijila (plural de kijila, que significa interdito) do costume. Ser-lhes-ia interdito pescar e comercializar peixe, tomar banho na praia, lavar mais de meio corpo, mudar de roupa, ouvir rádio e ter relações sexuais. Em troco, todos beneficiariam, mais que os que não viessem, do estatuto de muxiluanda (da Ilha, nativos da Ilha de Luanda) “puro”, assim como das dádivas das yanda.
Contudo, como era de esperar, antes do kakulu teve lugar o casamento. Na Igreja da Nazaré. Confesso que me senti mal no fato que me comprimia. Abria os olhos para o aparato do culto católico como se estivesse a vê-lo com lentes de alcanço, as minhas raízes tremiam enquanto eu esperava a noiva ao lado do altar, é só confortei o meu desânimo ao pensar que o amor a tudo leva e seja onde for que ele nos conduza, sempre prevalece a sua força. Pensei no otor que ia receber e me separava também das tradições antigas, numa corrida às benfeitorias do progresso. E contiuei à espera, enquanto ao meu lado o kota Kiala e a Lena, escolhida à última da hora para madrinha, o que lhe ia causando um chelique de felicidade, tremelicavam de emoção, tabnto ou mais do que eu. Chegou enfim a noiva, de braço dado com o pai Faria – “A Lia, tão bonita… e o rapaz tão atrapalhdo!”, diri mais tarde a vó Júlia -, fui para recebê-la, ela deu-me o braço, e avançámos para o altar. Chegou o momento de dizer sim, foi o que fizemos. Demos aquele bejinho, e quando a cerimónia acabou vieram outros com algumas lágrimas, numa grande mistura de sentimentos, alegria, medo do futuro, esperança no futuro, tristesa pela separação perene dos pais, com os filhos, todas essas emoções que dão à vida algum sentido.
A boda decorreu no “Kyanda kya anazanga”, um centro cultural da moda, perto da Xicala. Música, maestro! Veio de lá o Faria e saltaram dos bastidores os quatro músicos que animaram a festa. Comida aos montes; bebidas às pipas; música e dança até ao nascer do sol. Um casamento como muitos outros, alegre e embriagador.
A nossa lua-de-mel – outro mambo do progresso - , qual lua-de-mel qual carapuça!, foi no Bairro dos Imbondeiros, ao lado do motor de quarenta cavalos, sorrateiramente entregue à Lia e agora escondido num canto da casa.
Para evitar makas relacionadas com o kakulu, que estava marcado para a semana seguinte. Isto, sabendo que não ia participar, agora imaginem se eu participasse.

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Por razões que não identificava, senti que “alguém” queria impedir que me fossem revelados os segredos maiores do kakulu. Um dia, que fomos comer uns cacussos ao cacuaco – estava a equipa completa – a Lena, a Lia, o kota Kyala e eu -, atrasámo-nos depois do almoço a falar da necessidade de preservar as nossas raízes e defender asd tradições legadas pelos nossos antepassados. A um dado momento o kota disse uma frase que me marcoui para sempre, nunca mais a esqueci, “As tradições antigas, a nossa religião, a wanga (feitiço) e os seus rituais, são absolutamente indispensáveis à afirmação da nossa identidade africana, banto e negra, mas podem nos trazer alguns inconvenientes graves, podemmesmo ser perigosas”. A frase ficou assim no ar por ciima do silêncio que se instalou, até ao momento em que eu lhe perguntei quais eram esses inconvenientes e perigos. Ao nosso lado estavan a Lena e a Lia a falar dos segredos do pastel de nata e da massa folhada, distraídas da conversa, e o kota, depois de lhes ter lançado uma mirada rápida e constatar a distração que as afastavam do nosso diálogo, quase me segredou que havia ainda nos nossos dias muloji, feiriceiros, que organizavam sabbat secretos em terrenos reservados. Fiquei na mesma, porque não sabia o que significava a palavra sabbat, nem percebia o que queria dizeer “terrenos reservados”. E o kota, que bem sabia que eu não sabia, explicou-me que o sabbat é uma cerimónia que tem lugar sempre num sábado de lua cheia em presença de “feiticeiros” ou “feiticeiras”, num sítio bem determinado, à meia-noite, e na qual se apelam forças ocultas: Pás, alguns espíritos bons, chamados para acudir às doenças ou às dificuldadees da vida, mas também Luciferes e outros princípes das trevas, espíritos, génios e divindades maléficas, no fito de justificar actos que o menos que se possa dizer deles é que não são dignos de seres humanos. A verdade é que em alguns desses sabbats pratica-se ainda hoje a antropofagia. E, enquanto as “nossas mulheres” continuavam a falar de culinária, o kota explicou, “Trata-se de tradições antiquíssimas que ainda hoje se realizam em muitos bosques e florestas do mundo interiro. É verdade que a África actualmente é o continente em que mais se praticam rituais desse tipo, dugamos, campestre. E como não, se o colapso que se deu na nossa história e a maneira como ele foi vivido nos diferencia do resto do mundo? Esse salto repentino para o que os europeus chamam o Renascimento e que para nós foi da azagaia para o arcabuz e o canhão, faz com que nós estejamos fatalmente mais próximos dos rituais animistas celebrados à vista de toda a gente na pré-
história da humanidade. Assim, o que nessa matéria passou a ser kijila, proibido em Angola há cem ou duzertos anos, em certas províncias nem isso, foi proibido muito antes noutras latitudes, por exemplo, na Europa foi há coisa de mil anos. Mas nenhum interdito impediu que vestígios desses rituais tenham resisitido ao passar dos séculos e existam ainda hoje. Um amaigo meu, um português que foi preso pela PIDE e depopios ficou a viver em Luanda, constou-me que ainda aqui há uns anos, nasa serranias isoladas de Trás-os-Montes e da Berira realizavam-se cerimónias rituais cujas origens datam do tempo dos Iberos e dos Godos, quer dizer, coisa de dois ou três mil anos atrás. E factos desses foram relatados por um dos mais ilustres escritores da língua portuguesa de sempre, Aquilino Ribeiro. Por exemplo, contou ele, perto da casa dos seus país, em Ferrães, uma aldeia nos contrafortes da Serra da Estrela, realizavam-se sabbats numa clareira do bosque que começava no fundo do quintal. Ele próprio foi curado de uma hérnia nessa clareira.
“Tiraram-no da cama já noite fria, saíram de casa e levaram-me ao colo até ao bosque. Com ele iam pai, mãe, avó, os os empregados da casa e gente d aldeia. Caminharam até chegar à clareira e estacaram. O homem do ofício, o feiticeiro, curandeiro, fosse lá o que fosse, cortou com uma faca o fuste dum carvalhiço ainda tenro ao meio, no sentido longitudinal, fez força com as mãos parta separar as duas partes assim obtidas e continuou a fazer pressão até formar uma elipse. À meia-noite, nem minuto a mais, começou a cerimónia. O rapaz, o meu amigo, que nessa altura devia ter uns dez ou onze anos, foi erguido à força de braços, passaram-no para os do cura pagão ou lá o que era, depois passaram-no para os braços do pai e da mãe, fizeram-no balançar de um lado para o outro enquanto o cura a andar em seu redor fazia as suas preces, deitaram-no por cima do corpo um líquido cuja composição era secreta, e em seguida fizeram-no passar pela fenda elíptica do carvalhiço fendido. Receberam-no do outro lado, estenderam-no no chão, por cima de um pano ali posto para o efeiro, e cobriram-no. A terminar o ritua, o “feiriceiro” português reajustou as duas partes do fuste que tinh sido fendido, botou barro à volta e ligou o tudo com vimes e tiras de panos tosco. E disse: “Se o carvalhiço soldar, se não morrer e vingar, o menino também soldará”. Era o que toda a gente esperava, para que a hérnia também solde, senão… Mas a arvorezinha mártir vingou, e ele ficou curado”.
A Lena e a Lia estavam agora de orelha espetada a ouvir, e o kota Kyala esforçou-se para que a conclusão fosse educativa, “De qualquer forma, tal como as portuguesas, ou outras quaisquer, as nossas raízes, por mais fortes que sejam, estão condenadas a sair dos usos e costumes, é fatal. Não é contra tal oráculo que devemos lutar. Devemos sim, ao invés da maioria dos países modernos, respeitar os mistérios que elas albergam, preservfar do esquecimento a seiva dignificante que delas nos vem, e continuar a praticá-las nos terreiros que são delas, sem prosápia nem vergonha”.

Neste preciso momento o kota calou-se, olhou para mim com olhos muito abertos e perguntou-me, “Rui, diz-me por favor, porque é que alguns de nós, angolanos, principalmente os que fazem parte das elites mais requintadas do país, temos vergonha das nossas tradicções religiosas? Porque é que não veio ainda ninguém clamar alto e forte, para o mundo inteiro, que as nossas tradicionais relações com o “Sagrado” são tão dignas de respeito como as que deram origem às “grandes religiões”, como o judaísmo, o cristianismo, passando por todas, todas as outras, desde os muçulmanos aos hindus, budistas e zens, animistas de todas as espécies, todas, a um dado momento da sua história recorreram a sacrifícios rituais, muitas das vezes envolvendo vidas humanas. Todas, Rui, todas! Temos o privilégio de possuir as mais antigas raízes da humanidade e sermos um dos povos que nais próximo estão delas. Guardemos essas raízes. E mostremos ao mundo, que tem memória curta, que é de tradições semelhantes às nossas que todos os povos do mundo provêm. E um dia, daquei a dez, cem, mil ou mais anos vai-se lá saber, se não houver mais lugar para tradições algures, nós não, devemos continuar a guardar as nossas na memória colectiva e transmiti-las às gerações vindouras. E eu, Kyala, acredito que nunca morrerão”.

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O KAKULU

“Havia uma ilha ali perto da Barra do Kwanza, que era a do Tumbu, ixi iala um kaxi ka Kwanza, a ilha no meio do rio, onde se realizava o kakulu. O Kilamba-Kiaxi, o único que fala com o “reo dos peixes” e com os espíritos das águas, as yanda, também chamamadas de ituta, ou iximbi, chegava à ilha a bordo do ndongo, acompanhado durante todo o trajecto que fazia ao longo do rio por muitos outros ndongo apinhados de gente que ia assistir ao kakulu. Abençoava-os com água do rio, que derramava sobre eles com um ramo de mulemba. Quando chegava à ilha, esperavam-no os idosos e os chefes das terras do Kwanza, mas ele oignorava-os e logo se dirigia para o sítio onde estavam dois anciãos ao lado de duas bacias esmaltadas com o dikoso, a água lustral, na qual ele mergulhava o ramo de mulemba e então sim, benzia todos os chefes presentes. Em seguida entregava o ramo da mulemba a um dos anciãos, um umbanda, que por sua vez benzia toda a gente que se agrupava no terreno. Feito isso, o Kilamba retirava-se. Caminhando sempre ao lado do rio ía ter a uma grande clareira onde se erguia uma mulemba centenária que protegia a cabana sagrada que ali estava, feita de ervas e vimes, o dilombe, onde ele iria descansar. Antes da noite cair preparavam-se as mesas para a cerimónia do dia seguinte.
No dia seguinte, de manhã, o Kilamba-Kiaxi saía do dilombe com um chocalho numa mão e umka flauta na outra, acompanhado por um pequeno grupo de anciãos e, mais atrás, o umbanda, que ia benzendo todos por quem passava. E todos que ali estivessem seguiam o Kilamba até à praia que dava para o rio, onde estavam expostas nas “mesas” – esteiras postas no chão – as oferendas destinadas às yanda, maluvu. Cerveja de massambala, frutos secos, ananás, papaias, bolinhos e guluseimas feitas com mel misturado com óleo de palma, além das carnes, de porco e de vaca, com feijão e kikuanga, sem falar de jingwuji e do kakuso, os peixes sagrados, que se comeriam mais tarde durante o banquete.
O Kilamba avançava com o chocalho e a flauta na mão, e os que o seguiam cantavam, acompanhados pelos instrumentos dessa época, o hungu, os bumbos e os jisaxi, chocalhos iguais ao do Kilamba. Ao cehgar perto do rio, este fazia badalar o seu próprio chocalho e todos se calavam.Silêncio. O Kilamba-Kiaxi ia até à berma do rio, ajoeçhava-se e “falava” com as águas do rio, fazia a sua prece às yanda, lsamentando o seu sofrimento, assim como o do seu povo, viítmas inocentes de guerras entre chefes, que a partir desse dia se uniriam, oferecendo então a paz merecida ao povo sofredor; agradecendo Nzambi, todos os ituta, os ilundu, e pedindo perdão a todas as yanda, filhas de Kabala Kahombo, o homem, chefe das yanda do rio Kwanza, e de Ngola-Magya, a mulher, por ele, Kilamba do Kwanza, não ter conseguido fazer um bom trabalho, “Perdão, perdão a todas as yanda, por nos termos esquecido estes anos todos. Nós somos os vossos filhos, perdão para sempre”. E duante toda a prece não se cansava de relelmbrar a eterna filiação a esses pais de todas as yanda, que só saem deste rio Kwanza, e lhes obedecem.
(Como quem não quer a coisa o meu país salientava uma vez mais que o único kakulu verdadeiro é o do rio Kwanza).
“O ritual durava horas, e o Kilamba-Kiaxi não parava de rezar, fazendo badalar o seu chocalho e tocando flauta, uma vez um, depois a outra, para chmara os espíritos, os génios do rio. E, ao chegar o final das preces, todos os presentes entoavam os cânticos tradicionais em coro. Só depois vinha o banquete, com jingwinji, kakuso, e uma enorme quantidade de iguarias e bebidas, por muitos dos presentes consumidas em excesso. Era assim”.

In “Os filhos do Papá Dya Kota”, Editorial Nzila, 2006

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