terça-feira, 2 de março de 2010
MEMÓRIAS DA ILHA - CRÓNICAS
In Memória da minha mãe, a veneranda Maria Alice,que faleceu Janeiro passado, com a bonita idade de 90 anos.
A MEMÓRIA
No passado dia 24 de Outubro, a minha mãe, a veneranda Maria Alice Fragata de Morais, fez 85 anos. Se trago isto a público, é porque, ao celebrarmos as oito décadas e meia de vida, o seu bem estar mental, a sua saúde de ferro e, sobretudo, teimosia, nos ilumina como um farol para o caminho da longevidade, rezando todo nós, filhos, netos, bisnetos e trinetos para que sejamos da mesma cepa, já que dos seus irmãos, todos eles vivos, a minha mãe Maria Alice é a caçula.
Porem, como todos os idosos, alguma coisa tem que haver que evidencie a idade e, no caso, é a sua memória, em verdade se diga, muito selectiva. Ela só não se lembra do que não lhe convém, mas a esta idade, só é de louvar a Deus que assim seja.
Há não muito tempo, estando eu a almoçar com o meu tio Abílio, o mais velho deles, e a esposa a minha tia Leonor, casados já lá vão quase setenta e cinco anos, a conversa recaiu sobre a falta de memória que ambos se queixavam e do conselho que o médico lhes havia dado, o de escreverem tudo. Acharam eles que essa recomendação era-lhes particularmente insultuosa e, portanto, não escreviam nada, todavia utilizavam o argumento para se atanazarem a vida mutuamente, como se um desafio se tratasse e tivesse que haver um vencedor e um derrotado, este último, o que se esquecesse daquilo que deveria ter feito.
Depois do almoço, já todos sentados nos cadeirões a ver televisão, o meu tio levanta-se e a minha tia logo lhe pergunta onde é que ele ia.
“À cozinha”, respondeu ele.
“Olha, Abílio, podes trazer-me um pouco de gelado, se fazes o favor?”, pediu-lhe.
Parou e ficou a olhar para ela, certamente porque, após quase setenta e cinco anos de casados, esses favores não se fazem tão docilmente, no fundo não são favores mas sim chatices.
“Está bem.”, respondeu num suspiro revelador.
Aí, para o picar, talvez, a minha tia pede-lhe para escrever, se não ainda acabaria por se esquecer, o que o tornou furioso, mas conteve-se.
“Não será necessário, não me vou esquecer”
“Olha filho, já agora coloca em cima do gelado duas daquelas cerejas que estão no frasco, está? Seria melhor escreveres o que estou a pedir-te, sei que vais esquecer.”
Já perto da porta da cozinha, e com ares de muito poucos amigos, o bom do Abílio respondeu, a voz tremelicando:
“Não me vou esquecer de nada, bolas! Queres uma taça de gelado com duas cerejas em cima, não é?”, e foi-se antes que eu notasse o seu nervosismo e as querelas deles. Como que para o aguilhoar, a doce Leonor, minha tia reverenciada, ainda lhe atirou:
“E olha, coloca também dois biscoitos...”, e só não lhe pediu para escrever, porque ele já não se encontrava nas redondezas.
Assisti a toda esta conversa, pelo canto do olho, curioso e com vontade de rir. Achei que, ao fim de tantos anos juntos, de facto, as conversas têm que ter sempre o seu quê de agressão, de queixa, de imputação mútua das acções, nada mais resta que não seja conhecido e testado.
Ao fim de cerca de vinte minutos, ele regressa da cozinha, com uma bandeja onde se encontrava um prato com um ovo cozido e duas batatinhas, que entregou à minha tia. Esta olhou para o prato, e depois virou-se para ele, sorridente:
“Obrigado, filho, mas esqueceste-te das torradas.”
31/10/04
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