domingo, 2 de maio de 2010

ANTOLOGIA PANORÂMICA DE TEXTOS DRAMÁTICOS


JOSÉ MENA ABRANTES

NANDYALA OU A TIRANIA DOS MONSTROS

Cenário e adereços - Um círculo em tecido claro, com 4 metros de raio. Três estruturas metálicas em forma de V deitado: a face que assenta no chão (forrada de plástico) forma em relação à outra (coberta de serapilheira) em ângulo de 45graus. Um pequeno banco de madeira. Um braseiro/fogueira transportável. Três tubos rígidos de plástico transparente. Um cachimbo, um arco e um bastão. Um plástico grande.

1. A Invasão dos Monstros

(Um grupo de pessoas sentadas no chão, à volta de uma fogueira meio apagada, escuta um velho narrar uma história em voz baixa. Num canto mais afastado, um ferreiro fuma em silêncio um cachimbo).

FERREIRO
(falando ao público)

Foi uma noite como a de hoje. A aldeia estava sossegada e já quase todos se tinham recolhido. Só um pequeno grupo à volta da fogueira meio apagada escutava ainda as histórias do velho Nambonde, aquele que nasceu no ano da praga de gafanhotos.

(entram os monstros)

Foi então, quando menos esperávamos, que os monstros saíram do escuro e caíram sobre nós...
O mais terrível é que eles matavam sem fazer ruído, como um sonho...

(Quando o ferreiro se cala, ouve-se um zumbido leve que começa a aumentar de intensidade, acompanhado por um ruído surdo, semelhante a pás de helicóptero. Inicia-se o ataque dos monstros. A roda dispersa-se. Todos são mortos, com excepção de uma mulher grávida que consegue esconder-se. Os monstros percorrem o espaço em várias direcções, passeando entre os cadáveres. Pressentem a presença da sobrevivente, mas não a localizam)

Toda a aldeia foi arrasada. Eu ainda pensei em ajudar, mas... foi tudo tão rápido, e além disso não sabia como enfrentá-los. Acabei por fugir, tomado de pânico. Durante horas corri sem destino pela noite dentro. Bem protegida do frio e do vento levava comigo uma brasa acesa da minha forja. Tinha pelo menos de salvar o fogo, impedir que ele se viesse a apagar.

(Pouco a pouco, muito lentamente, os cadáveres espalhados pelo chão vão erguer-se, ao som de uma música adequada, formando o “coro dos antepassados”. Eles vão poder deslocar-se entre os monstros, como se fossem invisíveis).

2. Nandyala (nascimento e primeira infância)

(A mulher, aflita, sente os monstros continuarem as buscas. Ouvem-se de vez em quando os seus soluços abafados)

CORO DOS ANTEPASSADOS
(à medida que se põem de pé)

- Nós vimos e ouvimos aqueles que nos arrancaram a vida...
- Voltaremos quando morrerem aqueles que nos mataram...
(Os antepassados dirigem-se a seguir para o local onde se esconde a mulher, fazendo uma barreira à sua volta. Isso faz com que os monstros se desorientem ainda mais nas suas buscas).
FERREIRO

Durante anos vivi sozinho, caçando e comendo frutas e raízes. Nunca mais ousei voltar em direcção da minha aldeia. Julgava que todos tinham morrido. Nessa altura não sabia ainda que uma mulher, grávida de várias luas, tinha conseguido escapar à fúria dos monstros. Ajudada pelos espíritos dos antepassados e pela experiência d várias gerações, conseguira sobreviver na toca de um papa-formigas. Foi aí que gerou e deu à luz Nandyala, o que nasceu em tempos de fome...

(Enquanto o ferreiro fala, os antepassados transportam para primeiro plano e fazem girar a estrutura em que a mulher está escondida, indicando assim a passagem do tempo. A mulher parou entretanto de chorar. Os antepassados rodeiam-na, protegendo-a. Entoam um canto suave que vai servir de fundo à conversa da mãe com o filho que traz no ventre).

MÃE

Meu filho que vais nascer. Não tenhas medo de nada. A tua mãe cumpriu todas as regras. Depois que fiquei grávida, só o teu pai se deitou comigo na mesma esteira. Logo que tu mexeste, tomei a farinha de sorgo sentada no chão, levei para casa a cabaça com as raízes de “otyvatu”, ainda tenho amarrado ao ventre um pedaço de raiz “tyihola”. (Começam as dores de parto) Senti muita fome, mas não comi a carne das tartarugas, para não ficares para sempre dentro de mim. Não tenhas medo, meu filho que vais nascer. Aqui já ninguém te vai fazer mal. A tua mãe quer que tu vivas. A tua mãe quer viver!...

(Chega o momento do parto, feito à maneira nyaneka. Mãe de joelhos, sentada sobre os calcanhares, é ajudada pelas mulheres do “coro dos antepassados”. Os homens entretanto retiram-se discretamente para trás da estrutura. As dores são fortes, mas as mulheres não deixam a mãe mover-se).

MULHERES

- Não te mexas, queres que chamemos os homens para te ajudar? Tu sabes como eles têm uma faca bem afiada. Ou queres matar o filho que vai nascer, a vida de todos nós?...
- Talvez o arco do marido morto tenha ficado armado dentro de casa. Agora já não há remédio...

(O parto continua difícil e as mulheres dão massagens no ventre da mãe).

- Tanto tempo fechada, se calhar o crescimento parou...
- Ou então ela não encontra a saída...
- Calem-se e ajudem!...

HOMENS
(Comentando entre si)

- Esta criança no seio da mãe, que não tem por onde respirar e que vive, que mama, que não chora e que tem razões para chorar, como respira e como mama?...
- Vocês não a vêm, mas sentem quando ela mexe. Como é isto possível
- Mistérios e mais mistérios...
- Ela está como num saco e não sufoca. Se vivêssemos assim fechados não morreríamos?...
- Mistérios mais mistérios...

(A criança cai finalmente por terra. As mulheres dão gritos de alegria).

MULHERES
Alililili! Alililili! Alililili!

(Pegam na criança ao colo e admiram-na. Mostram-na eventualmente aos homens)

MÃE
(aliviada)

Subi a uma árvore e não caí. Os ramos não se partiram...

OS HOMENS
(em coro)

Mistérios e mais mistérios...

(uma das mulheres ergue a criança e diz, enquanto a estende em direcção ao Oriente...)

MULHER

A todos os teus pais!...

(... e em direcção ao Ocidente)

... A todas as tuas mães!...

HOMENS
(em coro)

As folhas das árvores não esperam umas pelas outras, mas dão lugar, cada uma de sua vez, aos novos rebentos...

(os antepassados, homens e mulheres, avançam para a frente da estrutura da mãe e preparam a cerimónia da imposição do nome. Discutem o nome a dar).

ANTEPASSADOS

- Como nasceu em plena mata, devíamos chamá-lo “Fiko”...
- O parto foi difícil, a mãe tomou muitos remédios. O melhor é chamá-lo “Vihemba”...
- Ele nasceu depois da morte dos seus mais velhos. Tem de se chamar “Nampheta”...
- Eu proponho “Tchipukukulwo”. Sei lá se ele vai viver muito tempo...

MÃE

Não! Só eu sei o que tivemos que sofrer todo este tempo em que os meses se apresentavam com os seus nomes. Ele vai mesmo chamar-se é Nandyala, o que nasceu em tempo de fome.

ANTEPASSADO

- Sim, a tua mãe tem razão. Tu és Nandyala, o que nasceu em tempo de fome!

(Um homem levanta-se e mostra a criança aos outros).

HOMEM

Eis aqui Nandyala, mais um homem que nós recebemos da Providência. Ele há-de completar o que nós não sabemos. (erguendo-o) Que este nome seja sempre respeitado e honrado!

(todos gritam e batem palmas com alegria)

(Sombras diversas, projectadas pelos monstros, começam a obscurecer o local da imposição do nome. A mãe, receosa, levanta-se e puxa o filho para junto de si. O coro divide-se. Os homens afastam-se em direcção aos monstros. Só as mulheres se precipitam para junto da mãe, dando-lhe rápidos conselhos.

MULHERES

- Do pássaro que voa
Mãe
protege o teu filho
- Do pássaro sem rabo
que oscila e treme
sem mexer as asas
Mãe
Protege o teu filho
- Não deixes, Mãe
a sombra do pássaro
cair sobre o teu filho
- Do pássaro que voa
Mãe
protege o teu filho

(A criança é erguida pelas mulheres à entrada do esconderijo. Movimento de vaivém na horizontal. Depois sentam-na no chão e tocam-lhe na cabeça e nos ombros. A mãe espreme do peito algumas gotas de leite).

Sem comentários:

Enviar um comentário