segunda-feira, 5 de julho de 2010
O FANTÁSTICO NA PROSA ANGOLANA
DYA KASEMBE
Pseeudónimo lieterário de Amélia de Fátima Cardoso, nascida em 1946, em Mumbondu-Muxima, licenciada em Filosofia pela Universidade de S. Dennis, França. Tem vários livros publicados pela Editora L’Harmattan em França e dois pela Editorial Nzila, nomeadamente as “Mulheres Honradas e Insubmissas de Angola” e “Os Amores das Sanzalas”, de onde foi retirado o conto aqui inserido.
TUMUKA
Esta história, muito curta, é talvez a mais insólita de todas as que narramos neste livro!
Estamos em 1953… A Jangada era uma grande barcaça a remos que sem parar transportava viajantes, mercadoria, algumas vezes até viaturas e animais, melhor dizendo, tudo o que era passível de ser transportado, de uma margem a outra do rio que separava o Dondo Kandange. E um belo dia, A Jangada depositou na margem, em Kandange, um Branco, barbudo e de olhar vítreo. O soba da sanzala foi avisado porque o homem tinha chegado sem bagagens e tinha um ar doente, além de que não possuía nenhum documento que permitisse identificá-lo…
Imediatamente, achou-se que ele era uma assombração, um espírito vindo do nada. E a partir desse instante, ele tornou-se o TUKUMUKA (espírito vindo do nada).
Ele tinha ancorado ali, da mesma forma que os destroços de um braço perdido no alto mar acabam por dar à costa. Quem era ele? Um aventureiro em busca de mudança de vida? Um boémio? Quem poderia saber nesta vila do fim mundo? Era branco, o único Branco entre estes indígenas indolentes e menos apressados que o próprio tempo. Seu nome?... Os habitantes alcunharam-no de Tukumuka. Era como uma espécie de fenómeno vivo, aparecido ali, repentinamente, vindo de parte alguma, uma coisa insólita, a que acabamos por nos habituar. Ali estava ele, nesta vila de Kandange, no sudeste de Angola, a alguns milhares de quilómetros da sua Bélgica natal. Para os habitantes de Kandange era uma espécie de amuleto ou porta – desgraça que lhes havia caído em cima, mas de um certo ponto vista era também uma sorte que deviam conservar. Portanto ele era, ao mesmo tempo, temido e adulado. Apreciavam-se os eventuais malefícios. Tukumuka, ninguém conhecia seu verdadeiro nome nem ninguém lho perguntava.
Foi quando Tukumuka mostrou a foto - que ele conservava como único precioso bem da sua vida - desta mulher que ele chamava Madó. Que os aldeões de Kandange puderam então construir uma história à volta do personagem…
Os habitantes nunca tinham visto um Branco chorar; chorar de fazer partir o coração. De uma forma tão apaixonada por uma moça negra, e ainda para mais a filha da feiticeira do fim da estrada. Encontram nisso mais uma razão para o protegerem.
Ele não tinha a fisionomia do português colono, que fazia razias na aldeia, de vez em quando, para lhes demonstrar a sua força e que ele e seus congéneres eram os senhores. Mas então donde é que ele tinha saído?
Todos imaginavam as respostas mais plausíveis, mas ninguém achava a resposta certa ou confirmada.
O facto estava “consumado” e Tukumuka fazia agora parte integrante desta aldeia do fim do mundo. Foi adoptado, naturalmente, pela população. Sim! Era uma das qualidades dos habitantes da sanzala, uma ingenuidade, uma bondade, o facto é que deixavam entrar nas suas terras qualquer ser humano sem nenhuma desconfiança. Ninguém sabia quem Tukumuka nem ninguém lhe havia perguntado porque é ele estava lá.
Tudo o que se via ele era branco e estranho.
A FOTO
A filha da feiticeira do fim da estrada vivia na cidade, onde para alguns, a mãe tinha mandado para encontrar um marido. Na cidade, entre os brancos, ela fazia-se chamar Madó, mas o seu nome verdadeiro era Zenza. A população viu em Tukumuka uma prova flagrante da eficácia da feiticeira.
A mãe de Zenza, Dona Chiquita, fora antigamente uma bela mulher cortejada por todos os homens da vila; mas apesar da sua beleza nenhum homem a quis para esposa. Ninguém sabia quem era o pai de sua filha Zenza e ela também não revelava o seu nome. Todas as suspeitas caíam sobre o mais notável dos mais velhos da vila, porque ele era o único a proteger mãe e filha, enquanto todo o resto da população as rejeitava. Esta animosidade era mais velha que o próprio tempo. Várias gerações família sofreram a mesma descriminação, sem que alguém soubesse a causa ou o motivo. Era assim. Esta rejeição tinha-se tornado quase instintiva. As mulheres não se queixavam e os habitantes também não as perseguiam.
Evitavam os conflitos por medo das maldições de Dona Chiquita. Esta era considerada na aldeia como feiticeira, reputação que já tinha herdado de seus antepassados, já catalogados pela sorte. Como saber a verdadeira história?
E como advinha-la se os responsáveis pelos rumores também não a conheciam, nunca a tinham sabido, e se esta ignorância da origem do rumor era o facto de se terem passado sucessivas gerações? Tudo se tinha perdido, apagado pelo tempo…
Enfim, o rumor que manchava a reputação de Dona Chiquita não tinha qualquer fundamento; era uma mulher já emancipada, levava a vida como muito bem entendia, dando a mesma educação a sua única filha. Mas, nesta sanzala, tal comportamento era motivo de mexericos e condenações.
No entanto, e aí estava mais um paradoxo, os habitantes não proibiam Dona Chiquita de se deslocar à vila, e todos pareciam respeitá-la, mais ou menos, talvez por receio. Para evitar os choques com os habitantes, Dona Chiquita vivia retida com a sua filha que tinha sido obrigada a baptizar com um nome aceitável para as autoridades colónias, que não autorizava os nomes indígenas; além de que toda a criança baptizada deveria ter um colono como padrinho ou madrinha. A madrinha de Madó chamava-se Magda; tinha sido, antes e durante muitos anos, a patroa de Chiquita.
Madó trabalhava no bar de um grande hotel na cidade, o ponto de encontro der todos os cooperantes e outros Brancos que desembarcavam no país. Mulher atraente pela sua graça e simpatia, ela tinha enfeitiçado o belga, de seu verdadeiro nome, Jean-Charles, a seguir baptizado Tukumuka pelos habitantes da via de Kandange.
Jean-Charles era de nacionalidade belga, ficava no país natal cada vez que o marido assinava um novo contrato para trabalhar numa ou noutra companhia de diamantes de Angola. Ficava nove meses sem ver a família e, todos os meses de Dezembro voltava à Bélgica para depois regressar a Angola no mês de Março. Este foi o seu ritmo durante anos.
1953, deveria ser o último ano, pois, sob o ponto de vista financeiro, tinha praticamente realizado o seu sonho: possuir uma bela casa com piscina, uma bela viatura de quatro portas e um jipe todo-o-terreno. Sentia-se cansado e achava-se disposto a viver com os bens já adquiridos durante anos de sacrifícios. Faltavam-lhe cumprir ainda dois meses de contrato, antes de partir definitivamente para a sua Bélgica natal…
E tudo balançou. Aquilo começara como uma banal ligação com Madó, unicamente provocada por um desejo físico. Depois passou a ser ao ritmo de um encontro por mês, depois por semana e terminou por um relacionamento mais sério. Jean-Charles vinha todas as noites ao bar; esperava pacientemente até que Madó terminasse o seu trabalho, e saíam juntos. Acabou por alojá-la em casa dele. Rapidamente sentia-se no direito de a proibir de sair com qualquer outro. Para ele, Madó tornou-se uma obsessão. Proibiu-a de trabalhar, depois de sair, simplesmente. O que no início tinha sido delicioso, tomou o aspecto de um tormento com sequestro. E fechava-a quando partia para o trabalho.
Madó sentia-se infeliz. Um dia, ele esqueceu a chave na porta aproveitando esta aberta, Madó fugiu para sempre. Ninguém sabia onde é que ela estava, nem a própria mãe. Desde esse dia Jean-Charles não foi mais o mesmo. Abandonou o trabalho, esqueceu a família e a pátria… Pôs-se a errar pela cidade como um vagubundo, na esperança de um reencontro Madó.
E Jean-Charles tinha aportado ali, em Kandange, debaixo de um embondeiro gigantesto que lhe servia de abrigo e sob o qual a população tinha construído uma cabana para abrigar o seu Tukumuka.
In “Os Amores das Sanzalas”, Editorial Nzila, 2006
Etiquetas:
Livro a ser publicado pela Editora Mayamba
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