domingo, 1 de agosto de 2010

ANTOLOGIA DO CONTO ANGOLANO


TRAIÇÃO



Felisberto Matias, oficial das forças armadas, olhos colados no ecrã de televisão, admirava as famosas pílulas azuis, reputadas de moderna tesão do fim do século e milénio. Se o mundo acabar no ano 2000 como predizem certos imbecis, pensava ele, iremos todos de pau em pé.
Consigo encontrava-se Osmar Martins, piloto aviador, amigo de infância, com quem havia conferido medidas, calibres e planos de voo nos idos anos da ingenuidade, em mútuas e arrojadas descobertas eróticas.
“Afinal”, dizia ele ao amigo, “essa pílula para a bazuca não é senão o pau de Cabinda.
É necessário referir que o termo bazuca, utilizado por Felisberto em assuntos de sexo, refere-se ao órgão sexual, por muitos também chamado de extrovenga, aquilo, verga, pila, bacamarte ou, simplesmente de Alberto, Joaquim, Muntu, conforme o gosto, o momento ou a situação. Felisberto assim o denomina por ter sido bazuqueiro em duas das guerras angolanas.
“Como sabes?”, perguntou Osmar Martins com um sorriso.
“Não é preciso ser muito inteligente para o ver. Olha o mbrututu por exemplo, vai a qualquer farmácia de Lisboa e lá o encontrarás.”
“Eu nunca vi!”
“Porque nunca perguntaste. Esse mesmo pau de Cabinda vende-se numa embalagem toda bonita, eu já o comprei.”
Da cozinha do pequeno apartamento, a voz de Benilde Matias, esposa de Felizberto, fez-se ouvir.
“Já querem jantar, ou vai mais um uisquezito?”
Felisberto olhou inquiridor para Osmar e ao aceno afirmativo, retorquiu.
“Aguenta mais um pouco, nós ainda vamos tomar outro. Também queres?...”
“Não, obrigada, veio a resposta da cozinha.
Osmar olhou firmemente para Felisberto, que desviou os olhos, como que envergonhado. Cada vez que Osmar o olhava assim, sentia-se desprotegido. O pior de tudo é que esse sentimento agradava-lhe, havia ali uma declaração que ele apenas intuía e lhe era positiva.
“Quando é que voas outra vez?”, perguntou Benilde que entrava na sala com uma travessa de comida na mão, poisando-a na mesa.
“Talvez daqui a uns quinze dias, tenho horas a mais e vou reclamá-las, preciso de um descanso.”
“Vais a Portugal?”
“Para onde querias que ele fosse?”, indagou Felisberto. “Só voamos para lá e Joanesburgo.”
“Isso é falso”, retorquiu Osmar. “Também vou ao Brasil e outros sítios.”
“Meninos, se ficam aí na conversa o jantar vai esfriar”, informou Benilde, fazendo um sinal para se virem sentar à mesa.
Os três para lá se dirigiram. Benilde abriu as tigelas fumegantes, para revelar um apetitoso repasto.
“Que cheiro maravilhoso!...” disse Felisberto, enquanto passava a garrafa de vinho ao amigo, para a abrir.
“Não admira que o Felisberto não te deixe, boa na cozinha, boa na caminha, lá diz o velho ditado.”
“Nunca ouvi esse ditado”, respondeu Benilde.
Sentiu-se entristecida e tentou esconder. O marido há mais de cinco meses que se mantinha alheio às obrigações conjugais. Chegado o momento, a bazuca, como ele em tempos idos tão apropriadamente chamava ao apêndice, não mais disparava porque amorfo. A mulher bem tentava todas as tácticas que nos anos da recruta nupcial ele lhe ensinara, incluindo o “avanço por fileiras”, mas sem resultado. Felisberto, o famoso bazuqueiro, não conseguia lançar um simples petardo carnavalesco. Ele próprio não se explicava. Abatido, ficava a olhar o penduricalho na mão da mulher, que, desalentada, acabava por lhe dar as costas e, em grosso suspiro, adormecia.
“Não dizes nada?”, perguntou Osmar olhando intencionalmente para o amigo.
“Que queres que diga?”
“É que ficaste com uma cara de zangado, de alguém injuriado!”, disse.
Benilde, que não estava a gostar do rumo que a conversa tomara e viu o momento para o desviar, retorquiu de imediato
“Ah!, isso faz-me lembrar que gostas de bacalhau, não é?”
“Assim é, mas o que tem o bacalhau a ver...?”, respondeu Osmar.”
“Pois antes de ires vou fazer-te um prato de bacalhau que nunca comeste”, disse Benilde, fingindo que o não ouvira.
“Qual é?, perguntou Felisberto? “Já agora também estou curioso.”
A tensão desfeita, Benilde sentiu-se novamente à vontade e pediu um pouco de vinho.
“Que famoso prato de bacalhau é esse, que nunca comi?”, quis saber Osmar.
“Pois aposto que nunca o comeste; bacalhau injuriado.”
Osmar e Felisberto desataram a rir, de facto nenhum deles ouvira antes falar do dito prato.
“Estão a ver o que dá serem dos mabululus? É isso!...”
“Então explica lá porque é que o bacalhau é injuriado”, pediu-lhe o marido, servindo-se outra vez.
“Porque é cozinhado, ou melhor, adaptado à nossa moda, daí a injúria que lhe é feita.”
“E por se adaptar ao nosso gosto torna-se injúria? E qual é a injúria?”, perguntou Osmar.
“O uso do que é nosso, os kiabos e o óleo de palma por exemplo.”
Os dois ficaram a olhar para ela, sorridentes, à espera que continuasse, talvez valesse a pena experimentar o tal de bacalhau.
“Pois Osmar, no próximo sábado estás convidado para vires comer o bacalhau...”
“Alto lá, espera aí!... Primeiro tens que nos explicar como se faz, senão quem é capaz de ficar injuriado é o meu estômago...”
Acharam graça à resposta e Benilde ainda ria quando respondeu.
“Claro que tem que haver o bacalhau, depois os quiabos, o dinhungo, o tomate, a cebola e o jindungo. Há mesmo quem goste com jimboa.”
“Mas isso é funji de peixe!”..., admirou-se Osmar.
“De facto é acompanhado de funji e leva mais ou menos os mesmos ingredientes. Mas não me interrompam. Limpa-se o bacalhau e corta-se aos pedaços, que se colocam numa panela com um pouco de água. Quando estiver a ferver põem-se os outros ingredientes e juntas o óleo de palma e deixas a apurar.”
“Parece que não teremos nada a perder em tentar”, disse Osmar, dando uma cotovelada no braço de Felisberto.
“Então ficamos combinados, próximo sábado. Pena é que não tenhas mulher, seria mais agradável”, reclamou Benilde.
“Mulher? Nem a brincar, só servem para aborrecer.”
Benilde olhou para o marido, como que pedindo ajuda, solidariedade pronta e inequívoca. Este fez que não entendeu. Frouxo!, insultou-o em pensamento.
“Não digas asneiras. Claro que uma mulher é necessária.”, atirou, tentando não mostrar a raiva que sentia.
“Pois eu dispenso. E logo nos dias de hoje, uma cambada de interesseiras.”
“Não te conhecia assim tão misógino.”, insistiu Benilde, mais calma.
“Até nem o sou, preferi é viver solteiro. Olhem, no outro dia visitei a casa de um paquistanês e sabem o que estava pendurado na parede, em sítio bem visível?...”
“Não!”, respondeu o casal.
“Uma chibata! Isso mesmo ou, se quiserem, um chicote.”
“Artesanato?”
“Foi o que eu pensei, mas não. Quando perguntei para que servia, sabem o que me respondeu? Que a chibata estava ali para que a esposa visse. Fez esta afirmação à frente dela e das crianças, dois rapazotes que logo sorriram.”
“Troglodita, troglodita é o que esse homem é.”
“Calma filha, não te zangues.”, tentou apaziguar Felisberto.
“Não me zango, achas que é justo?”
“Claro que não...”
Osmar há algum tempo que farejara insegurança no casal. Havia qualquer coisa que não ia bem, Benilde andava nervosa e demasiado susceptível, Felisberto, inseguro e escorregadio.
“Mas o que vos contei ainda não é nada...” continuou.
O subconsciente desafiava-o, desejava ainda que sem o saber, provocar uma situação na qual pudesse tirar o pulso, medir a tenção.
“Não quero ouvir mais!...”
“Pois devias, porque as tuas primas andam com uns libaneses. Elas que se cuidem...”
“O problema é delas.”, retorquiu Benilde.
“Pois o fulano aconselhou-me que quando me casasse, ao chegar a casa, desse todos os dias uma bofetada à minha mulher.”
“Estás a gozar comigo, não é? Queres exasperar-me. Porque haverias de dar uma bofetada na mulher?”, perguntou Benilde.
“Fiz-lhe a mesma pergunta e disse-me que não me preocupasse com isso, se eu não soubesse porquê, ela sabê-lo-ia.”
Osmar olhou para Felisberto, na expectativa de uma reacção a favor da mulher. Este limitou-se a baixar os olhos e a virar a cara para o lado para que Benilde não reparasse no sorriso esboçado.
“Rua, todos para a rua, não vos quero cá em casa...”
“Mas ó querida, não vês que o Osmar está a brincar contigo, a provocar-te?”
“Pois acho uma brincadeira de muito mau gosto.”
Pouco depois, levantaram-se da mesa e sentaram-se na parte da sala que servia de estar. No cadeirão de dois lugares ficaram Felisberto e Osmar, no cadeirão pequeno, Benilde.
“Porque não vais fazer o café?”, perguntou ao marido.
“E aproveita para trazeres um cheirinho.”, solicitou Osmar.
Felisberto dirigiu-se à cozinha, Benilde colocou o seu CD preferido e Osmar acendeu um cigarro.
O ambiente ora descontraído, sentiam-se satisfeitos.
Na cozinha, Felisberto assobiava ao som da música, enquanto vertia a água a ferver no saco de pano. A casa foi invadida pelo aroma doce do café fresco e puro. Momentos depois, apareceu com as xícaras de café numa bandeja. Dirigiu-se a um pequeno armário e retirou uma garrafa de uísque e uma de licor para a mulher.
“Para o mês quero ir à África do Sul.”, disse Benilde, depois dos cafés servidos.
“Mas ainda há sete meses estiveste lá!...”
“Estou cansada desta vida que levamos aqui. Nunca se pode fazer nada ou ir a sítio algum. Sabes quando fomos a um cinema pela a última vez?”
“Lá isso é verdade, se não são as farras e a praia, embrutece-se nesta nossa terra.”
Osmar esticou o braço com o copo para Felisberto servir e, no gesto, manteve o joelho colado ao do amigo.
“Nem a televisão nos serve!... Não consigo sequer ver o telejornal.”
“Não sejas tão exigente!...”
“Não é isso. Quase sempre me aparece aquele parvalhão de orelhas de abano que pensa que local de palhaço é à frente de uma câmara a gesticular, depois, só se ouvem notícias de guerra.”
“Parabólica filha! PA-RA-BÓ-LI-CA!... ou então não és gente fina, afirmou Osmar.”
“Não me comeces a aborrecer outra vez!”, disse Benilde.
“Pois se quiseres ir, vai.” disse Felisberto, para logo sentir a pressão do joelho de Osmar aumentar ligeiramente.
“Penso ficar uns quinze dias. Quero ir a Sun City e ao Cabo, onde nunca fui.”
Felisberto não conseguia concentra-se na conversa. Lutava para afastar o seu joelho do do amigo, todavia sentia-se paralisado e, mais uma vez, com aquela sensação de prazer a invadi-lo por completo.
Até conseguiu uma erecção. Atordoado, deu um pulo da cadeira, o que a todos assustou.
“Santo Deus, o que se passa?”, perguntou Benilde aparvalhada.
“Um rato, um rato, gritou ele.”
“Rato? Nunca tivemos ratos!...”
“Por ali, foi por ali...”, apontou.
Osmar olhou curiosamente para Felisberto. Foi à entrada da cozinha, deu uma vista de olhos, e regressou sorrindo. Olhou para o relógio.
“Olhem, meus queridos, vou-vos deixar com os vossos ratos. Está na hora.”
Despediu-se do casal e desceu as escadas, feliz e contente consigo próprio. Percebera as emoções de Felisberto e considerou os dados lançados.
“Ratos!...” disse, já a entrar para a viatura. “Um grande rato me saíste tu!”, pensava no amigo.
Na semana seguinte, houve o esperado almoço, cujo prato principal foi o bacalhau injuriado, comido com bastante agrado pelos quatro. Osmar trouxera uma amiga antiga, Josefina, pela aparência muito mais antiga do que ele. Felisberto, feliz, talvez pelas várias garrafas de um bom vinho alentejano por eles bebido, manteve-se afastado do amigo. Benilde e Josefina, riam sobre o nome da iguaria que haviam acabado de comer.
“Estava tão bom que varremos a injúria toda.”, disse Josefina, já com um copo a mais.
“E se fossemos para a praia?”
Levaram uma sombrinha e dois luandos para se sentarem, não iriam banhar-se. Na caixa térmica enfiaram umas gasosas e mais duas garrafas de vinho, sem ninguém se preocupar quem seria o volante, todos eles acariciados pelo longo abraço de Baco.
Quando as mulheres foram banhar os pés, Osmar deitou-se ao lado de Felisberto que perscrutava o céu nebuloso. Olhou-o fixamente nos olhos e, para sua surpresa, Felisberto não desviou o olhar.
“Tenho que me lembrar da marca deste vinho!” disse Osmar a brincar, tentando esconder a reacção que o facto lhe produzira.
“O quê?!” perguntou Felisberto, apanhado de surpresa e sem compreender.
“O vinho! O vinho...”
“O que tem o vinho?!”...
“Pela primeira vez não desviaste os olhos de mim...”, sussurrou.
Felisberto estremeceu como se uma lufada de vento gélido lhe tivesse atravessado a alma. Virou a cara para o lado e tentou não mostrar o nervosismo, a ansiedade.
“Não sei porque tentas fugir das tuas emoções.”
“Fugir de quê?” quase gritou. “Estás parvo ou quê?”
“Bom, aqui não é o sítio nem o momento para conversarmos. Quando...”
“Não há nada a conversar” interrompeu Felisberto, agressivo.
Osmar olhou de soslaio para onde as mulheres estavam. Tranquilo, avançou o cavalo, preparando o final do jogo, que sentia já ter ganho.
“Quando a Benilde for à África do Sul, teremos muito tempo para nos explicarmos. Lembras-te das nossas brincadeiras de criança?”
Felisberto sentiu-se desfeiteado e os mecanismos de defesa funcionaram aceleradamente. Nunca se vira numa frente de batalha sem munição para se defender, e ainda por cima com aquela maldita e inesperada erecção da bazuca, que o obrigou repentinamente a deitar-se de bruços. Acreditou que Osmar não tivesse notado, porém este notara e fizera que não, cavalheiro e paciente.
“Éramos crianças, não digas disparates. Todas as crianças brincam de papá e mamã...”
“Todas?...”, cochichou, dando o xeque-mate.
As mulheres aproximavam-se e a conversa foi interrompida, para alívio de Felisberto.
Ao cair da noite, regressaram, jantaram, beberam o resto da garrafa do bom vinho alentejano e, ao deitarem-se, Benilde foi agradavelmente surpreendida por uma investida das forças armadas, em gloriosa carga da artilharia ligeira, incluindo o tão almejado “avanço por fileiras”, repetido várias vezes. Hora largas depois, meio adormecida e exausta, abraçada ao marido que já ressonava os alentejanos vapores etílicos, ainda se ouviu a ciciar.
“Temos que fazer mais vezes esse bendito bacalhau injuriado!...”
Duas semanas depois, partiu para a África do Sul, feliz com Felisberto, mais do que nunca seu amantíssimo esposo. Após aquela noite, o nosso bazuqueiro não mais se rendera.
Com inimigo certo a acossá-lo e uma retaguarda a proteger, combatia heroicamente, não obstante a maior parte das vezes assustado.
Benilde nunca se sentira tão lambuzada de tanto e viril amor.
Não imaginam pois a surpresa dos amigos, ao lerem em jornal da urbe que uma mulher, citada como Benilde, havia baleado o seu esposo, Felisberto, oficial das forças armadas, quando ao regressar da viagem à África do Sul, o flagrara em altos voos nos braços de um piloto, Osmar, numa engajada batalha amorosa na cama do casal.
Tresloucada, agarrara na pistola do marido que estava na mesa-de-cabeceira e ferira os dois a tiro, já estando ambos fora de perigo.
A esposa foi conduzida ao hospital Militar, enquanto balbuciava incessantemente, sobre o efeito dos sedativos:
“Bacalhau injuriado, ai é?!... Bacalhau injuriado, ai é?!...”

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