FRAGATA DE MORAIS
Nasceu no Uíge, em 1941. Diplomata de carreira, ex Vice-Ministro da Educação e Cultura, também foi Presidente da Comissão Executiva da União dos Escritores Angolanos. Inclui, em quase todos os seus livros a narrativa do fantástico, embebida nas profundezas no tradicional angolano, muitas vezes em contradição com o moderno urbano. Os contos aqui contidos, fazem parte dos livros “A Seiva – Contos Angolanos”, e “Momento de Ilusão”.
DESALMAR
A Vuíla Sabata fugira-lhe a assustada alma.
Precisamente às catorze horas e vinte e cinco minutos do dia 15 Junho de 1975, quando, emaranhado na mais recôndita raiva animaleja, entre medos incompreensíveis e razões descontroláveis, esvaziou o carregador da Aka no crânio de um soldado já morto, mas ainda e para sempre inimigo.
Com a cabeça feita passador, tantos eram os buracos, o espírito do falecido, quem desfalece morte arrogante vira alma vadia, manteve-se no corpo mais cinco horas.
O que observava lá fora amedrontava-o, como é sabido, as sombras só se habituam a tal, depois dos vivos apagarem a luz que as faz vaguear, o esquecimento, portanto com eles não mais bulindo. Assim, acanhou-se, sobretudo por não ter a certeza do furo mais seguro por onde escapulir.
Acabrunhado, no seio de tanto miolo esfarelado e sentindo-se ainda matéria, não entendia por que Sabata, não obstante pertencerem a partidos políticos armados diferentes, esvaziara na cabeça de seu corpo, já inerte, todo um carregador de Aka, enquanto o pontapeava feito louco desvairado, até se sentir exaurido.
Em circunstâncias similares, teria ele feito o mesmo?
Com este receio mais do que natural, não apreendendo que doravante seria mera essência desincorporada e que as balas intrusamente lhe haviam subtraído a descartável matéria, o espírito do soldado inimigo de Vuíla Sabata, optou por habitar aquela moradia desumana enquanto fosse possível ou permitido, o esburacado crânio de que fora dono.
Todavia intuía a mudança e estranhava não se achar ambientado. Faltava ao corpo inerte a ligeireza física habitual, o reboliço das correrias pelos bairros pobres da cidade desconhecida, para onde viera impor a desliberdade do seu partido armado, em relação ao outro.
Dali a umas horas estaria escuro, e seu cadáver velado por cães vadios e esfomeados. Seria a hora do adeus mundano. Por enquanto ia-se entretendo a observar a rigidez a assenhorar-se do corpo, ao qual durante dezoito anos se colara e apegara.
Pasmado, descobriu novas perspectivas, como, por exemplo, a de ver de perto as rodas dos poucos carros que ousavam passar naquela rua, raspando-lhe o furado crânio. Porque não o socorriam? Unicamente os cães a rondá-lo, farejando, farejando e gemendo arreganhados ganidos em alimentadas esperanças de lauta ceia
Às dezanove horas ganhou coragem, e de um pulo, saiu lesto pelo furo de bala mais cerca.
Alguns dos cachorros, trespassados por uma súbita corrente fria, fugiram como se alguma turba de garotos os tivesse apedrejado. Outros sentaram-se no alcatrão deserto a uivar, até que uma rajada curta de metralhadora os pôs em silvante debandada.
O espírito do então inimigo de Sabata, novamente assustado, subiu célere e ficou a rondar as árvores do bairro desconhecido até que as estrelas, sombras de perdidos antepassados, lhe anunciaram o caminho dos errantes, porque morrera fora e longe dos seus. Para ali quedaria o corpo a apodrecer no quente alcatrão tropical, na manhã seguinte nada mais do que restos do farto repasto dos cães, a serem atirados para um qualquer buraco e tapados a pressas nauseabundas.
Estava desprendido dos vivos, já que quem mantém os espíritos em permanente amofinação, são os que deles se lembram.
Quanto a Sabata, perdeu a alma porque de repente ela sentiu-o gelado, tanto quanto a água matinal na cachoeira.
Apavorada, nunca antes se vira em tal estado, comprimida com ocultos medos ancestrais incompreensíveis, anichou-se sem querer no dedo que apertava o gatilho, testemunhando e participando de todo aquele dano. No momento em que Vuíla Sabata pôs a Aka a tiracolo, para poder pontapear o soldado ainda e sempre inimigo à vontade, a alma, de tão pequenina e contrita, caiu com o enorme peso da culpa bíblica para o chão, escoando pela primeira fresta do alcatrão.
Sabata sentiu-se ligeiro e etéreo. Com o pecado ora esvaecido do seu humano horizonte, tornara-se, enfim, dono absoluto da inconsciência. Doravante a negação seria sua rédea, a razão a inimiga visceral, a moral e a ética os vermes com que saciaria os desejos irreprimíveis da concupiscência da guerra.
Com a ilegalidade de Deus decretada por despacho oficial, Vuíla Sabata, sabendo-O na clandestinidade, afiou os instintos, metamorfoseou-se no abstracto concreto e reinou senhor incontestado dos irreflexos. Tornando a enfiar um cano de fuzil pelo recto de Federico García Lorca, de quem nunca ouvira falar, apregoou por tudo quanto é canto de Angola, “viva la muerte”.
Por essas sendas marchou, ao som dos tambores marciais, a juventude forjada para as desigualdades entre iguais. Amor sobretudo com desamor se paga, seria o moto, durante o que pareceu ser uma eternidade opaca.
Mais de duas décadas depois de Vuíla Sabata ter perdido a alma, alguns muitos ainda se indignam ao lerem no jornal diário, ao verem e ouvirem nos noticiários da televisão, que o crime, a amoralidade, o apatriotismo, tomou conta das vidas inviáveis de quase todos.
Esses, devem ser os que constantemente fustigam a esperança jamais banida, na busca da alma de Vuíla Sabata, para que seja restituída e redimida
Alma porventura agrilhoada no mais fundo de uma arca libanesa ou indiana, trancada a sete chaves com cadeado electrónico angolano numa caixa forte suíça, após ter forçosamente penado longo e tortuoso trajecto, da fenda no alcatrão por onde escorregara.
In “Momento de Ilusão”, Campo das Letras, 2000
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