terça-feira, 16 de novembro de 2010

MEMÓRIAS DA ILHA - CRONICAS


Nota:

Sou digno habitante da Ilha de Nossa Senhora do Cabo, também conhecida por Ilha de Luanda. É uma maravilhosa língua de areia, produzida pela corrente do rio Kwanza e, não obstante estar completamente descaracterizada, ainda é um dos lugares mais procurados por todos, já aí se alojarem quase todos os restaurantes, bares, discotecas e, logicamente, praias. A Ilha das Senhora do Cabo tem um festa tradicional que se realiza todos os anos, com bastante pompa e circunstância, todavia, por me encontrar ausente do país, não participei este ano. Como tributo, aqui vai uma crónica que escrevi em 1994 sobre a mesma, claro em outros anos de outras realidades.


A FESTA DA ILHA

Desafio abertamente qualquer um a contradizer-me, a desmentir-me que, quando a kianda (sereia) era alimentada com o cartão de abastecimento do Ministério do Comércio Interno, a festa da ilha não era muito melhor, muito mais viva, alegre e participativa. E olhem, até nem chovia para estragar tudo, precisamente no momento exacto em que as kalundús (mulheres sobre as quais baixam os espíritos), em seus garridos trajes vermelhos, desciam ao bordo do mar iniciando a cerimónia. Foi um Deus que me acuda com todos os presentes a bazar, porque molhar-se no mar é uma coisa, é digno e estimulante, ser molhado à toa e de sapatos, é outra.

Será que as divindades dos ares (que nome terão, aviandas?) ficaram enciumadas porque para elas não se vê sequer a TAAG ir pôr toalha rendada e farta nas nuvens, e toca de mandar água farta cá para baixo?

Esta festa, como a passada, andou fraquinha. Bem sei, os tempos estão difíceis. Com uma chapa de zinco a cinco milhões, não há barraca que se aguente montar. Minha amiga Antónia, que mantém barraca de comida nos Trapas (mercado assim chamado em honra dos Trapalhões) lamentava-se, amargamente arrependida, ter solicitado autorização para colocar uma filial à berma da estrada, para estes três dias.

“Ai vizinho, a grade está quase a quatro milhões, o frango a dois e meio, agora ainda com a chuva as massas não aparecem...”

Coisas da inflação e da kianda!

Porém o melhor da festa para mim, foi a parte explicitamente cultural e que não teve nada a ver com a Organização. Fui arrancado do noticiário, aí por volta das 20.45, por um alarido enorme na rua. Para meu espanto, cliticlop, cliticlop, cliticlop, passa diante da casa, em furiosa cavalgada, um boi nativo.

“As pacaças do parque fugiram oh meu Deus!”, foi logo o meu pensamento, só para recordar que as ditas cujas devem hoje estar a falar Afrikaans. Uns dez minutos depois, cliticlop, cliticlop, cliticlop, o replay no sentido inverso

Eis quando da turba que já pensava ter-lhe saído o totoloto, um mais afoito ou cuja fome era mais acentuada, no melhor estilo de um Prudhomme que não actuasse no Benfica de Lisboa, mas sim nos Forcados de Santarém, em voo olímpico, consegue agarrar-se ao rabo do boi e lá ele arrastado, esfacelando-se todo no asfalto. Mas como a fome miseris est, ou ainda que, por um apurado instinto empresarial, não largou e o boi foi derrubado.

O que fazer a seguir? A turba quer o seu quinhão, sobretudo já corria a boca livre que os bois estavam a ser descarregados na floresta e iam para o Frescangol.

“Traz catana! Quem tem catana?”, gritava o nosso Prudhomme forcado.

E a catana que não saía!...

Finalmente, o meu vizinho Delfim produziu um machado e a besta foi abatida, sem qualquer compunção, ali mesmo no meio da estrada, os condutores tentando adivinhar se tudo aquilo seria para a kianda. Antigamente só se punha churrasco, vinhinhos bons porque pelo resto a divindade era vegetariana. Mas isso era antigamente, hoje a kianda come muito, só que ninguém é que não lhe dá.

O boi abatido, sem dó nem piedade como referi, há que fazer a repartição, a divisão. Nesse momento até estive quase a sugerir que se arrastasse o animal para o meu quintal. Na repartição foi onde o nosso Prudhomme-forcado quis destorcer o rabo, mas não o deixaram.

“Quem lhe apanhou fui eu!...”, disse o voador esfolado.

“Mas nójú é que ajudámo!...”, replicaram logo vários empresários nacionais.

“O machado é meu!...”, lembrou vizinho Delfim.

“Eu só quero as miudezas para fazer jinguinga!...”, procurava a vizinha Mabunda.

“Quem lhi viu é su eu!...”, ouviu-se, de um miúdo atrevido.

Resumindo, estava quase a sair tiro, sai sempre e sobretudo porque ninguém quer, quando miraculosamente apareceu a amiga antiga, a outrora sargento Beti, hoje já com alta e devida patente, a pôr ordem naquilo tudo.

À distância, fez-se o velório dos bifes e da jinguinga, bem guardados por quatro polícias.

14/11/94

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