JOÃO
TALA
Uma das
promissoras vozes na literatura angolana, nasceu em Malanje, a 19 de Dezembro
de 1959. Foi, sobretudo, na poesia que este escritor e médico mostrou a sua
veia literária, sendo uma das maiores revelações da década de 90, com vários prémios
literários nacionais. Estes contos, retirados do livro Os dias e os tumultos,
mostram-nos uma nova faceta do escritor, com a mesma acutilância e pujança que
a sua poesia revelou.
GEORGINA
Ora, eu
simplesmente não gostava de igrejas. Assombravam-me. Meu pai também desistira
delas a pensar – como repetia embriagado – a defunta minha mãe que se ajoelhara
perante todos os santos, enquanto o cancro da pele reduzia-a, maltratante, matando-a
por dentro e por fora.
Eu fora até à
Igreja dos Espíritos em busca de Georgina, a quem chamava “meu anjo”, porque
disseram-me, logo após o meu regresso, que andava lá num reencontro consigo
mesma. Uma busca convicta, à medida que a perdera há anos.
Cultiváramos
amizades com a despreocupação permitida da infância, quando ainda ignorávamos
os dias que começavam com a cor dos tumultos.
Seremos,
brincávamos, toda a infância até quando a mulata Georgina despontava, a florescer:
os mamilos já a fazerem pontas ameaçando trespassar a blusa encarnada, a bunda
a peneirar os movimentos do corpo, na sua subida de idade. Eu que ainda não ejaculava
sequer, sentia qualquer coisa ardente e desesperante, mas algo insensato, que só
explicaria quando mais crescido desmistificasse o amor e a lascívia,
naturalmente.
Nesse tempo, ela
devia ter treze e quanto a mim a idade que mais convinha. Corava quando por
vezes eu deslizava os olhos sobre sua meia estatura, para depois os deter na cintura.
Isso deprimia-a com vergonha de que tinha crescido.
Avante. Tínhamos
realmente crescido, numa altura em que os acontecimentos exaltariam a
hecatombe. A guerra arrastava um país, a esmagar a época. De tal modo, alguns
anos mais tarde, vi-me numa caserna militar. Partilharia escombros, valas comuns
e incomuns como são as trincheiras. Palpitavam-me os fusis e o estrondo do medo.
É este o meu infortúnio.
No dia em parti,
Georgina juntara-se aos lamentos amargos de minha avó, enxugando- lhe as
lágrimas.
A guerra durou o
que podia, sem vitória para ninguém nem derrota para esquecer.
Eu voltava, ao
encontro de Georgina. Com ela sonhei a tranquilidade de um lar, como então o
país a recobrar-se das tenebrosidades.
Marchei para
aquele submundo, o bairro Mártir, da noite a crescer preenchendo vidas mercantis,
rumo à Igreja dos Espíritos (o novo espaço de Georgina). Procurei-a e, cansado,
deixei-me numa das praças da noite agravando a minha sede pela cerveja. Não sei
por quantas doses comecei a tropeçar, exacerbando o discurso. Ébrio, dei-me a
falar de amor.
É sabido, quando
falamos de amor, os homens se unem à nossa volta para ouvirem as nossas
experiências. Não desse amor ao próximo que as religiões instruem não. Mas do amor
erótico, adulto, que nos faz esquecer o pão e as necessidades. Engano deles
porque
eu falava de
Georgina. Começaram a exigir-me que usasse de termos mais adultos, impróprios
– «a seguir, o
que é que se passou... anda fala lá... ou não fizeste nada, diabos?».
Nada fizera.
Esses tipos não entendem o amor.
A igreja surgiu
ao amanhecer. Infinita catedral! O ar lá dentro é como uma sombra, bastante visível
entre centenas de candeeiros a querosene iluminando o engima, invertendo a
alvura das paredes. Reconheci um certo clima melancólico como nos tempos em que
ia com minha mãe às missas.
Os candeeiros
emanavam um forte odor a querosene e fuligem que estimularam a minha asma e me
incitaram a tossir. Como que excitado por minha tosse, um homem gordo e
desproporcional, trajando um uniforme azul escuro com feitio de batina e touca
vermelha descaindo na face, surgiu correndo, esbracejando um violento «põe-te lá
fora já!». Empurrou-me brutalmente à porta numa atitude pouco cristã. Fê-lo
porque sou um estranho à sua congregação. E também para proteger a irmã
Georgina de um mundano.
Mundano ou
mundiano não são os termos que me atormentam. Atormentam-me sim as procuras
inconclusivas, as febres da pós-guerra. Assimilara que o mundo são as voltas
que damos. O gordo não me confunde. Ele não é o Cristo. Na sua igreja Cristo é uma
figura, uma escultura de ébano!
Nunca vi igual.
Por isso, tinha-o metodicamente raciocinado. Ora, o olhar de Cristo sempre me
reteve como um olhar mágico. Ei-lo naquela escultura parecendo perscrutar estas
coisas desta vida imprestável dum mundo em vão. E um ébano fá-lo parecer negro
e estranho. Bem uma escultura trabalhada com mãos difíceis. Das linhas incisas
aos mais profundos sulcos; os erros dos contornos, a tortuosidade e saliências,
demonstram a imperfeição do artista, que certamente esculpira com toda a arte
mas, também, com a infalível fraqueza humana. Pobre pecador de mãos trémulas.
Qualquer pessoa sofreria quando, de um pedaço de tronco, se afigurasse pouco a
pouco o distinto rosto do Santo, e a cada golpe de escopro fosse como se ao
corpo do Homem quebrasse os músculos, os tendões e os ossos. E o ressentisse
entre pregos, no calvário, na cruz da
nossa alforria.
Estava a contar,
foi logo assim que o gordo devolveu-me à porta. Voltei à casa onde minha avó
opunha-se vigorosamente contra a minha busca. Segundo ela, jamais achara amor
tão descabido. Eu não lhe conferia sentidos. Aliás, que pode uma velha entender
do amor nos dias e nos reboliços de hoje? Mas desaprovou-me do mesmo modo:
– Porque desejas
tu, meu neto, filha de ngueta?
Depois aumentou:
– Nem sabes que
a vida levas para a dar na filha de um ngueta. Você pensa é fácil para quem não
está habituada a esta porcaria... – Dizia-me com o dedo apontado a esteira.
– É chata a avó
Chica. Teimava em julgar-me o amor pela cor do corpo. A descendência de
Georgina punha “tartarugas” na sua velha mente. Nada de ideias porque o mundo
em nada melhorara, pelo contrário nenhuma, palavras demolidoras carregadas de
uma metáfora experiente que a nós, pequenos revolucionários (ou que o tínhamos sido),
lembrava-nos ainda a réptil classificação de “serpentes” na língua. Uma língua
de intolerância. Deveria – pensava – ter antes morrido para não ver certas
coisas. Agora tinha de as ver todas. (“não é justo, avó nos veja a todas como
“corvos” em tuas noites.
Há sol a
renascer na alma; a pomba já voa.”)
Avó Chica é
quantas vezes destes gestos indizíveis; persistia na sua ignorância de julgar o
amor conforme as raças. Para ela eu devia ceder aos caprichos daquela lá, a
Anita Martins, que ia e vinha tentando me agradar. Não nego que é uma mulher bem
dotada. Não nego. Anita tem partes, andou nos livros, estudou dactilografia.
Avó gostava dela e muito.
Pé ante pé ia à
espreita de Georgina mas, o sacerdote impedia que a visse. Da última vez
reservava-se-me uma surpresa: o sacerdote chorava desamparadamente!
Insólito – nunca
ninguém o fez desse modo. Parecia um touro aos soluços, chorando com todo o seu
tamanho. As gotas do que desalento faziam-me dó. Uma sujeira. Sou de
opinião que os
homens devem inclinar suas lágrimas para dentro, assim não há o dissabor de
vermos os dejectos de nossas tristes emoções caindo-nos dos olhos, sujando-nos a
virilidade.
Chorava, afinal,
porque também amava Georgina! Não era um amor educativo, religioso, não. Amava
como qualquer homem ama uma mulher. Jamais se pronunciara disse – para não quebrar o seu sigilo.
Não concordo. Um
sentimento escondido é pior do que cadeia. É burrice aprisionar-se a si
próprio. Não comungo esse tipo de sigilo.
Para o meu
augúrio contou-me que passara ali um sargento e entusiasmara Georgina. E o
militar prometera um tempo inteiro só para ela. Prometia a nuvem, o elance e o
lar.
Mas que tempo
tem para o dar uma tipa um sargento? Parece trecho de romance.
Já o vi o pior
no cinema...
Disse-me ainda o
gordo que quando o sargento se foi embora, ela ficou embriagada.
Embriagada?!
Estremeci diante da verdade: a “embriaguez” feminina é pior do
que própria
lua-de-mel.
O facto levou a
que o gordo lhe ditasse oito dias a pão e água. E que se confessasse ante a
estátua da Sala-Maior, que simbolizava um qualquer santo africano. Ela cumpriu mas,
depois foi-se embora livre de pecado e de monges rabugentos.
Discordei do
castigo dado à Georgina mas, não estaria agradecido do seu comportamento, julgo,
leviano. Também eu sofria com o facto.
Agora não é mais
a Georgina quem busco. Busco apenas um modo frio, exigente, de a retractar no
esquecimento. Tê-la presente mas esquecida; torná-la memória emudecida, um
mínimo de morta e fantasma. Para já, dizer, o amor também faz vítimas!
Habituava-me ao
bairro Mártir. Suas praças movimentadas distraíam-me. Ia lá para me embriagar,
escutar música e dançar. Estava ébrio quando, certa vez, notei olhinhos sobre
mim. Eu ria a e mulher que os possuía os deitava o meu rosto. Ela faria a noite
e o dia caber em mim... abri aqui uma lacuna:
– Ouve lá,
quantos anos tens?
A idade torna-se
mais importante do que o nome por causa da prostituição infantil.
O fenómeno
catorzinha nos envergonhava a todos; nos sentíamos mais pobres, ultrajados no
íntimo, porque são as crianças, que continuam a nossa infância.
– Quantos?–
repeti, curioso.
– Dezoito, moço
– respondeu balançando uma perna levando com a mexida o rabo todo.
– Ainda bem. Já
cá pensava se não terias dez.
Ela sorriu
envergonhada com os olhos no chão. Uma fingida mas’é. A culpa não é dela. A
falta de tudo transtornava-nos a todos. Ela simplesmente desenrascava os dias.
Na mesma noite
conheci a minha primeira prostituta – essa pequena criatura de tronco
adelgaçado e acinturado para fazer sobressair enormes matakus. Tinha um volume
de seios firmes, mamudos, prestáveis, atirando-os para frente com a marcha felina.
O encanto me subjugava. Bebeu cerveja comigo, fumou os meus cigarros e com a
música de Kinshasa, forte e palpitante, iniciamos a viagem, a aventura, o jogo.
– Como te
chamas, afinal tens de ter um nome...
– Os homens me
chamam Tita – respondeu.
– Ah, os homens.
O nome é uma graça, próprio para ti. Aceito o menu.
Perseguindo pela
insatisfação, então já uma vaga lembrança de Georgina, continuava à procura de
Tita.
De regresso à
casa, avó Xica nunca me vira – dizia – tão triste. Achou-me isolado de modo que
convocou astutamente Anita Martins de quem suportava os sermões bem
intencionados, tributários de uma religião do bom ser e do bem-estar. Não mais
a minha. Tal religião. Eu ia e vinha com Anita me esperando. A pequena Tita me
enfeitiçara.
Concluindo,
Georgina acabava na dupla Anita & Tita. Eram duas híbridas como duas gémeas
na minha confusão mental. Porém, no espaço ruidoso de Tita não pode existir uma
Anita Martins. Tita apenas gatafunha o seu nome enquanto Anita lê romance. Tita
não lê romances; ela é um romance.
Continuava a ir
ao bairro Mártir á procura de Tita até que certa vez tive a primeira das duas
grandes desilusões: Tita fora com outro homem, continuava ao seu munhungo.
Quando avistei o
Gordo que persistia em busca de Georgina, disse-me: “não se amam putas”. E
disse-o com muita naturalidade.
A última
desilusão foi a surpresa de ter encontrado, subitamente, uma Georgina longínqua,
possuída de maus espíritos, delirantes. Estava ela com o corpo amassado, dorido,
pálido, com olheiras profundas. Antes, o sargento que a desencaminhara, partira
e não mais voltou.
Nunca se vira
tanta água nos olhos duma mulher até ao que chamei de massacre
solitário de
Georgina. Loucura!
Chamamos o
doutor Gamba Manuelle que estava de regresso com uma bagagem extraordinária,
findo a hecatombe. Ele curava as insónias e as chagas da guerra um
pouco por toda a
parte. Preferia palestras sobres as feridas da vida, as escaras do espírito.
Pedimos que
tratasse veladamente Georgina.
O doutor alegou
ser um infortúnio, uma psicopatia remota. Deu-lhe comprimido para secar as
lágrimas. – Oh!, de mal de amor ninguém faz diagnóstico – desajustou-se o
Gordo.
Todos nós lhe
gritamos:
– Ché, cala a
boca seu sacerdote. Este não e doutor dos musseques, ouviu?
– Doutor, é
verdade que o amor também faz vítima?
Já não me ouvia,
no seu carrinho já, os faróis perdiam-se embora na noite.
E m Georgina
permanecia a loucura. Teimava na nudez. Tita (que no entanto regressara)
cobria-a, cuidava do pudor. Os mais sensatos dos homens fechavam os olhos para
que não a vissem nua e fétida. O gordo orava, incitava-nos que orássemos com ele.
Eu duvidava das rezas mas, orava para pedir a Deus que recolhesse profusa alma
de
Georgina.
Nesse cacimbo (ó
Georgina!) casei-me com Anita Martins enquanto amantizava a bela Tita.
In Os Dias e os
Tumultos, União dos Escritores Angolanos, 2004
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