terça-feira, 1 de setembro de 2009

JINDUNGUICES


"Jindunguices", do escritor angolano Fragata de Morais, obteve, no passado mês de Outubro, o prestigiado prémio literário "Sagrada Esperança". O júri premiou Fragata de Morais pela "originalidade, linguagem correcta, leveza de estilo, brevidade, forte sentido de humor, linguagem coloquial e crítica social que reflecte a vida quotidiana de Luanda". Refira-se que o prémio, no valor de 5 mil dólares, é patrocinado pelo Instituto Camões-Centro Cultural Português em Luanda, o Banco Totta & Açores e o Instituto Nacional do Livro e do Disco (INALD).

CARNAVAL

Cristina abriu a porta do quarto e ao entrar, despencou em rodopio por um longo túnel, numa queda infindável. Quando, angustiada, e ainda enfiada nas sensações do sonho despertou, e sentiu um corpo felpudo deitado a seu lado na cama, gritou de terror.
Momentos depois, apaziguada e com a escuridão do quarto fluindo sobre si, recordou a farra de arromba da véspera, a da primeira noite do carnaval, em que ela e o esposo tinham ido mascarados de felpudos coelhos tropicais.
Um sucesso.
Cristina usara um reduzido biquini amarelo sobre sua luzidia pele negra. Nos seios, redondos e atraentes e sobre os quais descendia em franjas, num pretenso rasgo de pudor, a máscara de uma felpuda cabeça de uma coelhinha, uma surpreendente camuflagem de várias tintas fosforescentes.
Ele, menos ousado, acima do calção bicolor cobrira-se com o traje do roedor, artisticamente esburacado à frente e nas costas, para ventilação. Calçava sapatilhas velhas e diferentes.
Regressados a casa às dez das manhã, mais bebidos do que não, Helder nem se dera ao trabalho de retirar o traje de mascarado.
Ainda dormiam, cerca das sete da noite, o ar condicionado ligado a todo o vapor.
Reconfortada e sonolenta, voltou ao sonho onde foi recebida à porta de entrada por um senhor trajado de papel castanho de embrulho, mascarado de convite, e no qual se podia ler:

A Associação Chá de Abacate tem o prazer de convidar Vossa Excelência Helder e Cristina da Costa para as festas do Carnaval, que se celebrarão no Restaurante Mãozinhas no Bolso, na Ilha de Cabo, com início às 23.00 horas.
Venham mascarados e tragam a comida e bebidas, havendo, todavia, serviço de bar e cozinha para quem queira. Só custo 100 dólares por casal, para os três dias.
Reserve já a sua mesa.
Levou-a para uma mesa, onde já se encontrava Helder, em animada conversa com uma senhora mascarada de cebola cor púrpura.
Mal a viu, O marido levantou-se e dançaram o tango que a Banda Viramilha tocava magistralmente.
Sem mais nem quê, Helder foi-lhe atabalhoadamente arrancado dos braços por uma pândega mascarada de mandioca meio descascada, com quem dançou, tropeçando a cada passo.
A campainha da porta soou estrídula e insistente. Helder acordou sobressaltado, com Cristina agarrada a seu braço, sacudindo-o freneticamente. Surpresa, acordou e para ele olhou absorta.
“Mas que sonho estranho!...”, disse por fim.
“Parece que estavam a tocar à porta”, respondeu Helder.
“Que toquem, não me vou levantar”
Olham para o relógio e admiram-se com a tardio da hora.
“Isto é que foi dormir”, espreguiçou-se Cristina.
“Pudera, depois da noitada de ontem. Nem sei se tenho energias para mais logo”.
“Olha, vamos tomar um matabicho-almoço reforçado, preparamo-nos nas calmas e lá para a meia noite arrancamos.”, sugeriu a esposa.
“Mas não vou mascarado de coelho, aquela porcaria é quente que se farta.”
“Mascara-te de pirata. Pões calções, aquela blusa parte-os-cornos às riscas vermelhas e um lenço na cabeça. Eu pinto-te.”
“Boa ideia, e tu? Ontem foste a sensação, para não dizer a tesão, da festa.”
“Hoje vou mascarada da croquete!”
“De croquete?!...”
“Estou a brincar, vou-me mascarar simples, uma mini saia, um tope e uma pequena máscara, aquela com óculos, nariz grande e bigode.”
Riram, fizeram amor, tomaram banho e foram para a cozinha. Comeram, foram para o quarto, fizeram amor e dormiram até à meia-noite.
Após os longos e monótonos anos dos carnavais da vitória, a tendência da pequena burguesia urbana foi recuperar os tempos perdidos na imolação cultural socialista. Deste modo, lançou-se avidamente nas festas privadas de arromba, com a mesma ligeireza de roupas e preconceitos. O que era bom para o Brasil também o era para Angola, ou há telenovela para todos ou a moral que se dane. Todavia, no desfile principal do Carnaval, na Marginal, essa pequena burguesia não ousava copiar o país irmão.
A Marginal continuava a ser para o pé descalço.
Helder e Margarida saíram de casa por volta da primeira hora da madrugada, recuperados e prontos para a segunda noitada.
Procuraram por uns amigos e compartilharam a mesa. Viram chegar Milocas, mascarada de motocicleta, e o Fausto, mascarado de grávida, conhecido nos círculos da fofoca pelo Pila de Elefante, sendo desnecessárias mais explicações.
“Olhem, pensei que viria mascarado de bomba de gasolina.”, disse Margarida, indicando com os olhos, “até condiria com ela.”
“Bomba de gasolina?”
“Se é verdade o que dizem, bastava-lhe por a mangueira ao ombro e voilá!...”
“Oh não, Margarida! Ainda é muito cedo para esse tipo de laracha...”, disse Helder, entre os risos dos outros.
O recinto ia-se enchendo e conforme as amizades, assim eram juntadas as mesas.
Numa delas, encontravam-se o Choco, a Mandioca, que mantinham um caso secreto só para eles, a Cebola, o Jindungo, pronto reunidos pelo par Sal e Óleo de Palma, num arrojado arranjo mascarado.
Por fim chegou sozinha a que geralmente era a vida da festa, Água, mascarada pura e cristalina.
Por volta das quatro da manhã, a famosa Banda Viramilha não tinha acordes a medir. Os foliões esfalfaram-se primeiramente com as kizombas e afins, depois com os zuks para desengonçar, e após uns trocados que envolveram passo dobles, merengues, tchá-tchá-tchás, voltaram aos agitados ritmos africanos, rendendo-se, agora, serenos, aos melódicos anos sessenta.
A bebida fluía generosa, e os olhares cúmplices dos casos clandestinos e os dos em busca de novas hostilidades, mordiscavam o espaço de ponta a ponta.
Pelas diversas mesas, numerosas senhoras encalhadas, zurziam suas viperinas línguas em recompensados ajustes de contas.
À Lucinda, disfarçada apropriadamente de galinha, só lhe faltava cacarejar. Quando deu pelo Tonecas em compenetrado ziguezague, a vir em sua direcção, levantou-se lesta e afogueada, salvara a honra. Este, quem nem a vira, e que tirara o azimute ao bar, para lá continuou imperturbado.
Na mesa maior, do Choco e da Mandioca algo se passava, as vozes estavam alteradas, e apreendia-se que não só pela bebida.
“Se tornas a fazer isso, rebento-te as fussas!...”, desafiava Choco, descontrolado.
“Mas o que fiz?”, retorquiu Jindungo, picante.
“Vi muito bem, estás aí por debaixo da mesa a empernar com a Mandioca, só que desta vez enganastes-te e a perna foi a minha.”
“Como ousas sugerir uma coisa dessas?”, sentiu-se Mandioca ofendida, não era uma qualquer.
“Tem razão, tem razão, não há gente incivilizada nesta mesa!”, disse Cebola, para acirrar.
“Calma, haja calma, estamos aqui para brincar e dançar.”, tentou apaziguar Sal.
“E quem falou contigo, cara de amargura?”, logo ripostou Choco.
“Não admito que fales assim com a minha mulher!”, gritou Óleo de Palma.
“Tens a certeza que ela é tua mulher?”, contra atacou Mandioca, sentindo que valera a pena vir.
Meia hora depois, como a discussão continuava, cada vez mais acalorada, a Banda Viramilha parou de tocar por se sentir desrespeitada.
As atenções convergiram então para a mesa dos desavindos, agora que, com público, passaram a vias de facto.
Choco foi fisicamente atacado por Jindungo e Sal, que sem mais lhe retiraram a dikanza e o saco de tinta.
Os associados da Associação Chá de Abacate e os penetras, bateram palmas, afinal o floor show começara. Era com espectáculos desta magnitude que se arrecadavam as cotas e se ganhava renome nacional.
Água, que há muito fervia, deu-lhe uma cozedura como manda a lei, enquanto Mandioca, cortada de dor aos pedaços, a ele se aconchegou que, viril e assumido, a abraçou em seus tentáculos. Cebola ainda tentou interceder mas igualmente sucumbiu, em rodelas de lágrimas.
O público não sabia o que fazer. Uns, solicitavam à Banda Viramilha que entoasse o hino nacional, talvez assim se conseguisse compostura, pois a refrega parecia querer generalizar-se, mas logo se gerou maior confusão porque a maioria advogava que o hino não era suficientemente representativo.
Por fim, tão engalfinhados se encontravam, que os mirones só viam porções de Mandioca sobrepostas às de Choco e de Cebola. Óleo de Palma, borrifado por Jindungo e por Sal, cobria-os por cima, numa zanga que parecia, agora, cozinhar a fogo brando. Já sem forças para lutar mais, Água atirou-se a eles como se para dar molho à briga e tudo apaziguar.
E assim acabou aquela segunda noite de Carnaval, com a Banda Viramilha a tocar o hino nacional e os associados da Associação Chá de Abacate a gritarem felizes como nunca:
“Mas que grande kibeba!..

Nota: Kibeba é um prato feito de choco. mandioca, óleo de palma,etc.
Jindungu (plural de ndungu) é que no Brasil se chama de pimenta, em Moçambique de piri-piri, no México chili,etc.

2 comentários:

  1. Olá.

    Andei lendo e relendo o blog.
    Tenho que vir muitas vezes aqui.
    Gostei muito.

    Até mais.

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  2. Oi Val,
    Logo no início há um espaço para o forum, onde pode deixar seus comentários e engajar outros.
    FM

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