terça-feira, 9 de março de 2010

A SONHAR SE FEZ VERDADE - CONTOS JUVENIS






O SONHO

Por volta dos meus cinco anos, costumava aprisionar uns gafanhotos castanhos gigantes que, ao voarem, ufanavam presunçosos suas belas asas de seda avermelhadas de um amarelo diáfano. Segurava-os com mestria e confrontava-os boca contra boca, tenaz frente a tenaz, voracidade mastigando voracidade. Assim passava eu horas em encarnadas e sangrentas batalhas que ouvira da boca dos avós, nos contos das noites de sunguila (conversa). Ou nos jogos de crianças mais velhas, reconstruindo qualquer feito de qualquer herói da memória colectiva.
Uma águia-real pairou sobre o ninho em círculos concêntricos, e o vento aportou seus pios estrídulos de amor. Reconheci nela o amigo que tantas e tantas vezes sobrevoava, alto nas nuvens, a nossa senzala. Em voo picado baixou até desaparecer no horizonte e, pela primeira vez ao olhar para baixo, vi uma paisagem até ora por mim despercebida. Vi, perplexo, a embocadura de um rio voraz que espraiava, mar adentro, ruidosamente. Desorientado, procurei pela senzala familiar, o casarão do roceiro, os terreiros do café, qualquer coisa tranquilizante, qualquer cheiro conhecido.
Nada!...
Só rio, água do rio e aquela massa infindável que eu então julgava ser um grande lago, do qual não apercebia o fim. Espremi os olhos e vislumbrei três pontos pequeninos que avolumaram ao passo da aproximação. Maravilhei, nunca houvera visto embarcações de tal tamanho, barcos que nunca sonhara existir, gigantes bojudos das águas com línguas soltas ao vento.
A selva logo se manifestou no ribombar dos tambores coma a notícia estranha. Os ecos percorreram céleres caminhos montanhosos até à capital do reino. E ali, os corações encheram-se de alegrias e receios, enquanto aguardavam por mais notícias. Pela embocadura adentro desfilaram as caravelas. Nas margens, as gentes, vindas de perto e de longe, uns a pé, outros de canoas velozmente impulsionadas por braços sinuosos e decididos, aguardaram atrás d chefe local, que trajara suas peles de leopardo, adornara a real cabeça e segurava determinado a lança, os dentes da onça pendurados em argola no pescoço, oferendando-lhe ar imponente, desabrigado e senhoril.
Os velhos preocuparam-se e, de rostos contritos, buscavam um sinal da expressão do mfumu (chefe). Este, vendo-lhes a preocupação, levantou a lança e disse-lhes:
- Enti uwende emavungu, kewatembelanga ko. (A cadeira, trono, na qual o chefe se senta, não estremece - A autoridade de um chefe é inabalável)
As crianças corriam espalhafatosamente até ao rebordo da praia, corpos nus, luzidios negando o chamamento das mães temerosas, as praias engrossando com a chegada de novas gentes, admiradas e assustadas. A maioria ficava pelo rebordo da mata. Por fim, à medida que os monstros marinhos se aproximavam, línguas de pano desfraldadas em arrogância, as crianças foram chamadas e recolhidas. O mestre nganga (curandeiro), observando um milhafre voar razante com um rato morto nas garras, predisse augúrios e maus presságios, desaconselhando o fascinado chefe:
- Ngandu didi muntu, mfundu ba na mamba O crocodilo comeu um homem em conivência com a água – Há perigos que são misteriosos), disse.
O povo inteiro acocorou-se no mato quando do bojo do monstro marinho saíram pequenas embarcações, repletas de gente, que pousaram na água. De longe, as cordas que as sustinham não eram enxergadas e todos acreditaram da descensão maravilhosa, anúncio do poder dos estranhos, deuses albinos. O rato morto caiu aos pés do mfumu, largado pelo milhafre que ainda circulava em cima, talvez ele igualmente espantado.
Os estranhos remaram vigorosamente para a praia, lanças enormes reluzindo ao sol.
As crianças, mal dominando o medo, irromperam em choros e prantos descontrolados, gritos de bicho acossado. As mulheres deitaram a fugir com as crias, como puderam, enquanto os homens colaram os corpos quase nus ao capim vergado. Só o mfumu e mais alguns se quedaram erectos.
Que seres seriam aqueles, tão estranhamente trajados e de pele que nunca recebera o sol? Divindades das águas? Estava anunciado que a salvação do reino do Congo viria de seres albinos, seria esta a hora? Se não fosse, só poderiam ser seres doentios, feras ou divindades malignas esconjuradas pelas rezas e artes ineficazes do nganga, que urgia o chefe a desbaratá-los com o seu espanta raios.
Este, fascinado pelos adornos jamais vistos, pensava que com eles poderia ser a inveja dos chefes vizinhos. Em gesto ousado e corajoso, mostrou-se de longe, sua imponência e ar arrogante anunciando a condição de realeza. Ainda que amedrontados, os nobres imediatamente o seguiram, precedidos pelo conselho de anciãos.
Lá em cima, na tranquilidade do ninho da mbemba (Águia das palmeiras), admirei a coragem dos homens enfrentando aqueles que ainda não sabiam ser o pior dos monstros existentes. Monstro que durante longos e ignóbeis séculos iria alimentar-se na inocência e pureza que agora os recebia. Que regalar-se-ia pantagruelicamente no seu sangue, sofrimento, humilhação e morte. Como desejei poder descer e avisar, gritar com todas as minhas forças de criança que trespassassem imediatamente com suas setas a cobra venenosa que lhes acenava encantos jamais vistos, o mundo maravilhosos do arco-íris.
O nganga contorcionava-se em pasmos de agonia, espuma esvaindo-se-lhe da boca que murmurava sons ininteligíveis. Certamente que pedia, em suas pragas, que o chefe os não recebesse. Talvez sentindo o poder ameaçado, vi-as como curandeiros mais fortes e ferozes, contra os quais desconhecia medicinas.
- Nyoka kababakilanga ya ko ha kati kati (Ninguém segura uma cobra pelo meio – A confrontação desnecessária do perigo pode trazer consequências) - afirmou de novo o nganga.
Que impotente e só me sentia, mero espectador fascinado pela visão do futuro e horrorizado pelo conhecimento do presente.
Os estranhos, os brancos, aperceberam-se do chefe e sua comitiva e acenaram gestos amigáveis, todavia as lanças ríspidas para a defesa. Ordenaram que viessem uns baús e, em acto de magia e feitiços, panos coloridos, quinquilharia da mais variada, miçangas, argolas, sacos e sacolas, espelhos, colares e pentes, flautas e instrumentos de corda pronto rodopiaram no ar em cumplicidades multicoloridas, fascinantes e convidativas. Buzinas, apitos, badalos e tamboretes que encantaram de modo irremediável o próprio nganga.
E o transe hipnótico atraiu inexoravelmente o povo.
As peles trajadas do leopardo, cautelosas ainda em seus passos humanos aos ombros do mfumo, observavam com desconfiança a palidez epidérmica dos forasteiros. Seus estranhos cabelos lisos por baixo de capacetes ainda mais raros, pés revestidos de peles peladas e, no peito, uma carapaça de cágado protegendo-os. Como resistir a tal fascínio?
E as artes mágicas continuaram, agora já vestidas nos corpos dos nobres, enfeitando cabeças da realiza, vomitando sons musicais agreste nas bocas das gentes, adornando esbeltos pescoços femininos, e colares e pinturas sobressaindo nos peitos másculos dos guerreiros. Sim, como resistir a tal encanto e felicidade, que essa gente poderia ser má?
Não!...
Havia pois que mandar vir os tambores e os dançarinos, agradecer o recebido tão realmente e dar as boas vindas aos novos amigos, até porque todos sabiam que um estranho com fome não fala livremente. Havia muito a indagar, a saber e a aprender.
Dias poucos mais tarde, partia para a grande Mbanza capital do reino, uma longa marcha de gente, acompanhando os pálidos emissários, que haveriam igualmente de fascinar o poderoso rei e, o monstro forâneo, engoliria irremediavelmente o primeiro troço da sua conquistada vitima, entre batucadas festivas e honras dignas de boa fé e confiança.
Todo este espectáculo esvaziou-me por inteiro e as minhas pálpebras pesaram como um robusto cacho de bananas. Minha cabeça pendeu para o lado e adormeci até despertar, não sei quanto tempo depois, aos gritos de uma multidão delirante que saudava os barcos a descer o grande rio, Mzadi, sem saber que haveria de ser esmagada até à hora em que resolutamente sacudisse esse peso ignóbil das suas vidas e consciências.
O vendaval viria e a chuva transformadora apareceria para fazer brotar a flor, liberta e anunciadora de novos tempos. Entretanto, diante meus olhos infantis, desfilariam os horrores de cinco séculos de guerras, intrigas, morticínios, profanações, humilhações, comércio de carne humana, todo este cortejo banhado por uma torrente vasta de sangue, muito mais ampla do que o rio em que haviam aportado as caravelas nesse fatídico dia. Rio cuja origem pensavam os invasores nascer num instrumento romano de tortura erguido na Palestina, cruz moradia fétida de um homem enfezado morto pelos seus e pelos romanos, porque ousara libertar suas gentes não só da opressão dos fariseus, como da dominação romana, com palavras de amor e gestos de igualdade. Contra sua livre vontade, viu-se metamorfoseado por aqueles que o seguiram pelos séculos afora, no maior criminoso divino. Inocente, feito morrer para salvar o impossível, a condição humana, assiste do seu lugar no etéreo a uma imensa vaga de crimes cometidos e justificados em seu nome.
Foi pois aos pés desse símbolo, desses dois pedaços de madeira cruzados, que os minkixi (feitiços) dos brancos deglutiram crianças como eu, estraçalharam-nas e enfiaram-nas em barcos que as vomitaram em mundos novos e longínquos. Separados de seus pais e terras por um longo mar de escravidão. Não entendi o gesto dos novos feiticeiros albinos, subtraindo o poder de dominar e escravizar àquele pau em cruz no qual haviam imolado um semelhante e que apregoavam ser a cruz da bondade e da justiça.
Vi assim, desfilar a História no avanço dos tempos, no renascimento do mítico Fénix, no descarregar do peso escravo na tomada de consciência. Desde o início, tal como o vento a soprar benigno por entre os troncos da mafumeira, cada sopro uma melodia, uma canção fina sussurrada, passaram por mim nomes que jamais se vergaram
NZINGA A NKUVU...
Onde vira eu já este rosto, imponente e desdenhante? O mfumu (rei, chefe) que recebera os forasteiros, na mão desdenhante, a cruz do novo pagão imposto. Na mão direita segura a cruz do pagão ora imposto. Meio cobrindo os tecidos de ditombe, a pele do leopardo imponente. Nos punhos grossos e fortes, braceletes aguerridas. Aos ombros largos e levantados, a capa de mabela que se agitava ao vento. Em gesto de desdém, o mfumu ergue a crus forasteira e destrói-a com violência no chão. O nganga albino que ali fora deixado pelas caravelas já idas, acabava então o seu curto reinado.
Ao passar do tempo, o nganga furioso salta ágil como o macaco, revoltado com a tolerância dos chefes passados por não terem logo percebido o mal. Volteia no ar longos arcos de fogo, parábolas infernais, formas mirabolantes de esconjuração. Ofegante, cai no chão de bruços, para na dança silenciosa do gesto mágico, cobrir de pó o rosto, invocando os minkixi que poderão destruir o mal que pressentia vir pelos séculos fora. Da sua boca escancarada brota espuma barrenta, e a água da chuva cai-lhe em cataratas sobre a pele negra e luzidia, tonificando-o
Através dele, os mortos ordenavam ao povo que se levantasse e que não permitisse o dizimar de suas gentes. Segundo o nganga, não andavam nos ares os nkita (espíritos) heróicos queixando-se do abandono, do desleixo e das guerras entre irmãos que permitiam ao branco levar os vencidos para terras estranhas? Teria, perguntava ele, todo o povo que se tornar mvumbi (espírito) no mfinda (cemitério)? Perdera o mwanda, a sua alma, a sua essência?
Não!
O nganga não aceitava que assim viesse a ser, seus minkixi dariam nova força ao povo, este levantar-se-ia sob o comando de outros chefes.
NGOLA KILUANJI...
Vi então o bravo capitão branco, um a quem as gentes chamavam de Novaji (Paulo Dias de Novais) prisioneiro do poderoso rei da Matamba. A cobra já parira seus ovos, o veneno não era novo e inexperimentado, as miçangas e os apitos já não mais encantavam o incauto. Seis anos restou cativo, para conhecer o poder do reino africano e partir para os seus com o recado de não mais voltarem. Todavia, não bastou...
MBULA MATADI...
A fogueira devoradora do capim seco, feito mar e feito fogo. Ei-lo feito terra a amar quando seu corpo, trespassado, partiu para o mfinda, o cemitério, onde os antanhos o aguardavam vitorioso. O sangue ainDa morno manchava a pele de nzuge que meio escondia a pulseira de metal, ulunga (símbolo do poder), torcida em braço forte e inchado. E no fundo do rio, depois da viagem, uenda ku maza (ida para a água), houve festa.
NZINHA MBANDI...
a águia cuja sombra pairou pavorosa sobre as cabeças do invasor. A árvore centenária na qual as cigarras cantavam lendas de heróis guerrilheiros. Ela, que foi a esperança que brotou das rochas de Mpungo a Ndongo, fluindo cristalina para o Kwanza, transbordado em fúria avassaladora num vasto lago único de resistência. Ela, aquela mulher trovejante e soberba, guerreira dos guerreiros, irmã de Ngola Mbandi, que se encontrara com o poder forâneo, soberana livre, para tratar e ser tratada de igual para igual. Senti-me orgulhoso dessa mulher trovejante e soberba que vergava os canaviais inimigos guerreira das guerreiras, irmã de Ngola Mbandi. Ela que soube mostrar ao governador branco que em sua terra ninguém se lhe sobreporia, que não lhe exigiriam tributo humilhante, que ali fora como soberana livre, enviada do grande Ngola Mbandi, para tratar e ser tratada de igual para igual. Ela, que fustigara as hordas inimigas pior que a febre do mosquito amarelo.
EKUIKUI…
A florescente semente do milho perene nas lavras da liberdade, escondendo no seu seio as lanças atentas. A vida gerada nas caravanas marfineiras, no zumbido labor das abelhas em bolas de mel. Não como as vozes dos fracos que anunciavam em lamentos – bem o tínhamos dito, fujamos, somos a geração de compra e venda. Mãe que me trouxeste ao mundo, vem cá ver, estou partido como o nyombe (pequena árvore) reclinado sobre o joelho.
Não!... O nyombe nunca partido, reclinado sim, porque da dura labuta que extrai harmoniosos prantos de alegria à terra mãe, ditosa natureza geradora que nos enche os ventres, emprenha os músculos que seguram as armas e rega o cérebro de sangue fresco e cálido.
Foi também isso que ouvi de MUTU YA KEVELA…
Não somos gerações de compra e venda e tu, África que nos trouxeste ao Mundo, vem ver, estamos fortes como o pau de takula, erectos como mais alto e colossal dos embondeiros (beobab) e firmes como o singelo yombe.
MANDUME…
Não, nunca! Foi o grito do cavaleiro fulminante do sul, a pele do boi negro, as areias do deserto erguidas na poesia das fugas incontritas, o rastro da pólvora sempre acesa que de um lado quer do outro do rio Kunene. Unicamente pelas suas próprias mãos, conseguiu a morte chifruda envolvê-lo no cabedal negro e levá-lo para repousar nas terras férteis do curral. Não coube ao invasor essa glória! Mas do ovo nasce o avestruz que percorre livre os arbustos espinhosos das areias e o leite das vacas amamentará a nova alma.
Exausto, ainda conseguiu ouvir o ribombar da nova e moderna herança. No seu derradeiro esforço, a História descartava o fardo antigo e secular. À beira do Kwanza, a nova luz introduz-se nos corações dos homens e invade as matas, as longínquas chanas, e quebra as algemas finais. A ndua (ave rara e arisca de plumagem muito linda) canta o choro do parto:

“Criar
criar com os olhos secos
criar, criar
sobre a profanação da floresta
sobre a fortaleza impudica do chicote
criar sobre o perfume dos troncos serrados
criar
criar, criar com os olhos secos
criar, criar
gargalhadas sobre o escárnio da palmatória
coragem nas pontas das botas do roceiro
força no esfrangalhado das portas violentadas
firmeza no vermelho sangue da insegurança
criar
criar com os olhos secos
criar, criar
estrelas sobre o camartelo guerreiro
paz sobre o ódio
criar
criar paz com os olhos secos
criar, criar
criar liberdade nas estrelas escrava
algemas de amor nos caminhos paganizados do amor
sons festivos sobre o balanceio dos corpos em forças similadas
criar
criar amor com os olhos secos” (Poema de Agostinho Neto)

O MOMENTO

Despertei com o badalar do sino, lá longe na roça e, ao olhar para o sol, soube qu era a chamada para a labuta ao começo da tarde dos que não trabalhavam por empreitada.
A meu lado, duas rolas mortas, as mesmas que abatera de manhã, uma delas coberta por um exército de formigas e ataque do qual eu milagrosamente escapara. Abandonei-as e deitei a correr para casa, onde fui encontrar os familiares já preocupados, alguns haviam até partido para o mato à minha procura. Ouvi um bom ralho do meu pai, tios e demais parentes. Passe a vergonha da humilhação da chacota dos meus companheiros, que me diziam já engolido pela jibóia.
Assim foi a minha vida.
Cresci, aprendendo a ler na missão, deixei a viração do café nos terreiros e fui para a casa grande do roceiro para ser instruído nas artes do bem servir à mesa e de lavar loiça. Aí, perdi a inocência e os sonhos deixaram de me perturbar à força das bofetadas que apanhei quando, pano de pó na mão, olhos desmaiados no transe longínquo em mirabolantes aventuras, não cumpria com os deveres caseiros.
Como letras gastas pelo tempo, nas páginas de velhos livros, meu pai foi-se tornando ancião, não tanto pela idade, mais pelas agruras da vida. Fui vendo-o a usar o rolo nos terreiro, a assumir a guarda do quintal, a tornar-se carregador de agua para a casa grande, a pastorear ocasionalmente o rebanho de cabras sob sua guarda, e a ser o terror das onças e das hienas quando vinham rondar os currais.
Enquanto isso, nascia em mim uma fúria conhecida. Nos meus dezanove anos, ouvia o que os ventos traziam sobre a luta incipiente pela emancipação política, percebia o contorno das ideias, a nitidez do sentir do pensar que pairava nos ares, mesmo nas estrelas cintilantes dos céus africanos. Uma melancolia foi-me envolvendo em raiva surda, o peito enchia de sentimentos estranhos e de rajadas de tempestades até ali desconhecidas, sentia que estava a chegar a hora da partida, o momento o corte do cordão umbilical com o passado que vivera. Partir para a cidade grande onde pudesse aprender o que li me estava vedado, e ver o que desconhecia e só desconfiava existir. Deixar desaguar enriquecida, aquela sede vasta de conhecimento no mar profundo do meu íntimo.
E de facto parti para a cidade grande, mas não como pensara que o faria.
Uma tarde de calor, daquele calor exacerbado que se propicia no mês de Março nos trópicos, meu velho pai dirigira-se ao quintal para verificar o fogo que ardia sob o panelão de ferver água para o consumo da casa grande. Os enormes macacos que aí se encontravam há muito amarrados nos postes nos topos dos quais havia a suas casotas, rebentaram as cordas já gastas e os seus guinchos de ódio, como também os gritos sofridos do meu pai, alarmaram-me e, de catana na mão, deitei a correr para o quintal.
O que vi tornou-me frio como o gelo e duro como o ferro. Da garganta do meu velho pai brotavam jorros de sangue por buracos enormes e rasgados. Corri feito louco, sem ver o roceiro que igualmente chegara ao quintal, alvoroçado, de pistola na mão. Célere como um raio, parti para um dos bichos e, de um só e preciso golpe, decepei-lhe a cabeça, o outro fugindo, assustado, para o topo da palmeira. As lavadeiras gritavam, rasgando os panos e rebolando na terra. Meu velho pai, pelo sangue que perdia avulso, acabaria por partir para a mais longa das caminhadas. Em acesso de raiva incontida, virei o panelão da água quente para o chão, destrui-o à catanada, rebentei com a rede do enorme viveiro dos pássaros, relíquia de roceiro, soltando-os em debandada. Só depois notei o fazendeiro e em, catadupas, toda uma série de imagens antigas desfilaram perante meus olhos interiores e vi que afinal já as vira e já as vivera pelos séculos longos da ocupação colonial.
Tata Sivu- gritei (Pai cacimbo)
Com uma explosão de alegria, corri para o homem que representava esses longos séculos de humilhação, para logo e ali o exterminar., todavia tombei em dor, porque a bala que partira da pistola voava como eu nunca poderia. O fogo lambeu-me a anca e fui projectado para o solo. As lavadeiras fugiram do quintal aos gritos, e quedei-me só, com o choro lancinante da alegria que brotava de meus lábios. Havia-me conquistado, renascera. Feroz como a leoa com cria, potente como o elefante.
Dias depois, quando o chefe de posto me enviou para a capital, como terrorista, as velhas choravam à volta do jipe.
- Aué, uá!... O muan’etu wa fuidi! (Ai, o nosso filho morreu).
Ao erguer os olhos, vi no ar a minha águia das palmeiras, a minha consciência ora liberta que iria criar pensamentos e asas novas em outros homens e mulheres.

Esta é a parte final de “A Sonhar se Fez Verdade”, um livro subdividido em quatro partes, nomeadamente “O cacimbo”, “O sonho”, “O momento”. Também inclui “Mabangas” a sair no próximo mês.

2 comentários:

  1. Querido Poeta Fragata de Moraes, devo dizer que este blog está cada vez mais lindo!!! Nãi se já comentei mas, adoro sua foto com a minha querida profª Laura Padilha! Vi sua msg no Correio Nagô, porem não entendi onde está o link para votar no seu blog. No mais saiba que sou fã do seu trabalho e votarei nele sempre que aparecer uma votação para tal. Hoje o meu Blog AfroCorporeidade faz 9 meses, está nascendo! Ontem postei um texto meu sobre os Acalantos Afro-Brasileiros, quando puder visite e conheça o texto se ainda não o conhece. Um forte Abraço e aguardo sua resposta quanto ao link para eu votar no seu blog.

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  2. Manoel,
    Vejo que você é um grande escritor e bastante prolixo. Obrigada por querer ser meu amigo no Facebook, mesmo sem conhecer-me. Sou poeta e escritora, como poderá ver no meu blog.

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