JACQUES ARLINDO DOS SANTOS
Nasceu em Dala–Uso, Libolo, Calulo-lobolo, em 6 de Janeiro de 1943. Profissional de Seguros, é membro da União dos Escritores Angolanos, sendo autor de Casseca: Cenas da Vida em Calulo, Chove na Grande Kitanda, entre outros, e Kasakas e Cardeiais, de onde foi retirada o excerto aqui constante. Preside, ainda, o Conselho Directivo da Associação Cultural e Recretaiva Chá de Caxinde.
KASAKAS & CARDEAIS
Esta é estoria da vida frustrada de Tyl, o passarinho que nasceu para ficar de bico fechado. O seu narrador, pássaro sabido e de muito canto, garante-nos que ela é verdadeira.
Não deixa de convencer pelo modo como a põe contada, parece fiel o relato que faz dos modos de ser, das práticas, das andanças e dos envolvimentos de muitos voadores, do seu e de outros bandos. É pois, a partir desse pio de passarinho, que os leitores ficarão a saber que...
Bansaka é a terra de Tyl, um país que existe entre o céu e a terra. Diz-se que os que aqui nascem e ganham fama, podem alcançar o céu, mesmo que se saiba que nunca pássaro algum, desta região ou de qualquer outra, atingiu em vida, nem sequer as estrelas.
Apesar disso, são muitos os que procuram a fama. No chão, mesmo o das montanhas que se situa bem mais perto, vão poisando as patas apenas quando calha. Quando o fazem, mesmo salititantes, seus passos são cuidadosos e seguros. Provam que nesse aspecto, como em muitos outros, estão bem acima dos homens.
Bansaka nasceu numa manhã de mês de chuva dum ano, que ficou muito para trás nas funduras do esquecimento, muito tempo se tivermos em conta a curta vida de um passarinho. Mesmo assim, Tyl lembra-se com uma saudade que não tem tamanho, daquela manhã diferente das muitas outras, que no correr das estações vira nascer e virar dia. O céu, contrariamente, encheu-se de brilhos muito cedo, e luziu tão intensamente, que o sol se mostrou com reflexos de um incrível azul prateado.
Tyl não conseguiu nunca entender porque mantinha viva essa evocação saudosa uma vez que, na época do acontecido, ele próprio ainda não tinha nascido! Porém, lembrava-se, isso é inquestionável. E o lembrar isso não era privilégio de todo e qualquer natural de Bansaka. Só os eleitos conseguem, como ele conseguia, ter bem presente o antigamente. Esse dom era uma dávida dos seus antepassados.
Quase sem se dar conta, Tyl mostrava vaidade que não era própria de pássaro, daquela que se julga só ao alcance das pessoas, quando lembrava que o pensamento da data maravilhosa fora-lhe transmitido assim fielmente, por ser pássaro de eleição.
Não se apercebia do modo como exultava ao constatar que só esses eleitos como ele, conseguiam ganhar a real consciência dos factos passados. Por isso, sabia com a maior propriedade, que jamais voltaria a nascer um dia igual àquele em que sol pareceu sorridente de tanta luz. Todos esses sinais, aliados ao seu próprio nome, foram mostrando a Tyl que o país esperava por si. Mais cedo ou mais tarde seria cardeal (ave colorida de encarnado e preto, fazendo lembrar o traje dos cardeais. Nota do coordenador).
Cristalizava-se assim essa ideia na sua cabeça e as imagens ficavam-lhe retidas nos miolos, vendo sempre que queria, os acontecimentos dessa terna manhã. Eram cenas que mostravam não só o sol, mas também ameaçadoras nuvens, escuras e revoltada, a viajar com pressa incansável e costumeira, rebocando chuva e muito vento, dificultando o voo de ágeis e velozes aves de sangue quente. Reconhecia nelas os mais-velhos kasakas, de várias gerações. Também via com regularidade, a surgir no lugar das nuvens negras, tão rápidas quanto elas, outras bem mais caras e bonançosas, portanto notícias anunciadoras de que, a partir daí, o sol passaria a brilhar para todos.
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Na ornito linguagem dos de Bansaka, Tyl significa o número Quatrocentos e Noventa Biliões, porque na enorme comunidade kasaka, a idade se relaciona com o nome e é contada pelo número que cabe ao cidadão quando vem ao mundo.
Tyl teve a felicidade – terá ele sido algum dia verdadeiramente feliz? – de ter recebido nome de número certo. Se fosse gente desta parte do mundo onde nós estamos, lhe chamariam provavelmente de Manuel, Nvunda ou Pedro, Noutras paragens, mais para Sul ou para Norte, poderia ser Sandro, Josué, Dmitri, John, George ou Laszlo. Mas, já sabemos que o mundo globalizante de hoje não encontra barreiras, mesmo nesta coisa dos nomes. Seu avô falecido há pouco tempo, foi pássaro que levou consigo muitos, mas muitos voos nas asas, apesar do ar jovem que sempre aparentou. Chamava-se Kar, o mesmo que Duzentos e Dez Biliões, Trezentos e Cinco Milhões, Quarenta Mil, Quinhentos e Vinte e Um. Nome comprido de verdade, como são os da maioria da população kasaka. Daí ser fácil avaliar quantos milhões de seres nós somos! Muitos milhões, podemos afirmar que breve ultrapassaremos os biliões!
Já há o registo do pássaro Seiscentos e Vinte Biliões. Trata-se do último da ninhada dos considerados Uhi e Gyk, um passarinho privilegiado como foi Tyl ao nascer, só por lhe ter calhado nome de número certo. Assim ele cresça será inevitavelmente chamado a assumir altas responsabilidades quando lhe mudarem as penas. Quando chegar a cardeal.
Mas, falemos de Tyl. Entre as suas mais notadas características conta-se o hábito de se isolar – desde pequenino que assim procede – e uma enorme curiosidade por tudo quanto desconheça, passaritando práqui e práli no desvendar dos enigmas, manias que o acompanham quase desde que nasceu. Por isso, entre os da sua idade, foi, como já se deu a entender, para desespero da mãe Mil que via sempre na precocidade das suas atitudes presença do estigma de pássaros bufos, os chamados pássaros-da-morte, dos primeiros doseu tempo a saber dos fundamentais ensinamentos dos venerandos Ghi e Ghó.
R ápido ele aprendeu que nos imensos céus, nas matas e nos muxitos nas florestas de eucaliptos ou nos bananais, nos morros e vales mais ou menos acentuados, nas planícies e nos imensos palmares, por tudo quanto era planta e árvore, capim de tonga
ou simplesmente nos arbustos das lavras, dominava o território de Bansaka, no princípio
das suas vidas, família da espécie das viuvinhas, de rabo cumprindo e plumas negras brilhantes umas, outras de tom amarelo esverdeado, qualquer delas aves de arribação.
Tinham vindo de muito longe, e para desgraça dos nativos, contrariando suas tendências de arribadiços temporários fixaram-se na região e se multiplicaram, contribuindo
para a mistura de cores e bicos de que se constitui hoje o grande povo kasaka.
O trisavô de Tyl, Kiá de sua graça, contemporâneo dos tretanetos de Ghi e Ghó, ainda pequenino, ouviu várias vezes falar das artimanhas e das verdadeiras intenções dessas viuvinhas, nas grandes reuniões de chilreio da zona grande do Morro Tutu, na copa alta do muzozeiro sagrado, sítio onde, naquele tempo como hoje, os pequeninos não podiam chegar. Mas ele, o pequeno Kiá, chegava! Diziam que sempre foi precoce!
Lembrando o personagem, mãe Mil, no tempo em que mantinha conversa piada com o filho, basta vezes fazia sair do bico adelgaçado, expressões como esta:
– Tens a quem sair Tyl!
Constava então que em tais reuniões, a par de se questionar a esperteza dessa espécie de rabos de junco dominadores, também se descobriram as suas ignorâncias. Só que, para desgraça de Bansaka, o bocado de inteligência dos invasores apoiado na ajuda de outros mais longínquos céus, foi suficiente dominarem durante épocas e épocas todo o seu povo. É um sabor amargo sentido por todos os kasakas, este o de saber que ainda que numerosos, foram durante séculos, miseravelmente submetidos por espécies minúsculos que lhes cortaram todos as possibilidades de empreender voos mais altos.
Foram necessários muitos anos a passar até se registar o amplo movimento da indignação, já Kiá era avançada ancião. Reza a história que essa célebre jornada foi bonita de ver porque sem se distinguirem pela cor da plumagem de cada um, fossem eles de asas compridas, de bicos achatados, mais ou menos proeminentes, do tipo pardal de polegares dirigidos para trás, simples passaritos ou destacados passarolas, pertencessem a esta zona ou àquela região, tinham todos os pássaros kasaka um objectivo comum. Foi pensando assim que os mais velhos decidiram que todos juntos poderiam expulsar as viuvinhas e a caterva de rabos-compridos que as apoiavam. Olhavam-se então de modo concertado para a mesma direcção.
Naquele tempo, consta, as penas kasakas não tinham o dom de mudar.
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Somos donos do nosso próprio destino, dizem, desde então, os cânticos que se tornaram hino da passarada. E cedo se estabeleceram as regras de convivência com o povo humano. Partilhando o território, nós dominanos à nossa maneira céu e terra, marcando presença tanto quando subimos às copas e ramagens das árvores como quando poisamos descansadamente nos galhos e nos troncos; quer seja na tarefeira fabricação dos numerosos ninhos onde as nossas parideiras chocam seus ovos, quer ainda quando descemos e nos mantemos por dentro dos esconderijos das moitas e mangais, ou ainda nas levianas e irrequietas incursões pelas areias húmidas e quentes, nos barros argilosos e lamacentos, poeirentos ou duros, vermelhos ou pretos das extensas terras. Eles, os homens, por seu lado, postam-se sempre eternamente lá em baixo, com os pés nem sempre bem assentes no chão.
O que mais desentendemos desses seres humanos é a teimosia de continuarem a velha aventura da conquista do firmamento, agitando vaidosas flâmulas do superior conhecimento quando surgem cá em cima, agindo contra as leis da natureza, esquecendo-se que não é pássaro quem quer, que é preciso, acima de tudo, sê-lo. De todos eles, só mesmo os pára–quedistas têm alguma noção dos motivos, que fazem os passarinhos cantar. Talvez por terem, como nós temos, compromissos perto das nuvens.
Foi assim, na aprendizagem da vida das pessoas que Tyl, no meio de inúmeras inquietações, de comparação em comparação foi verificando que uma elite de passarões parecia nada perturbada com o modo tão fácil como alcançou o bem-estar. Foi assim que se lhe soltou a voz até então guardada e, como poderão apreciar, mostrou que, afinal, na vida de um passarinho não há só canto e alegria, no nosso chilrear há também muita dor e sofrimento. Que passarinho sofre com nenhum outro ser as suas angústias!
Tyl nasceu pássaro de vanguarda, já se dissse, e quando nasceu, sua mãe Mil escolheu para último a ser quebrado o ovo donde saiu. Era daqueles ovos que pareciam estar perdidos, duma cor indefinida, choco, sem vida lá dentro. Foi surpresa geral quando o viram a sair dele, tonto e cambaleante.
– Este trouxe feitiço dos zanhi! – Sentenciou Piú, parente chegada de mãe Mil, que foi a primeira a aparecer no desovadora, depois da paridela.
– Ninguém nasce de um ovo podre! Este é filho de azar! – Corroborou com forte assobiadela Jut, a mais famosa conhecedora desses assuntos.
Foi esse nascimento que marcou negativamente sua mãe para o resto da vida, não há dúvida. O modo diferente como surgiu no mundo, em contraste com processo que originou seus irmãos, da mesma e de outras filharadas, obrigou-a a pensamentos que inevitavelmente ligavam o acontecimento a uma série de coincidências. Porque foi ela induzida a chocar essa ninhada de onde saiu Tyl no ninho construindo na região do Morro do Tapa? E mais ainda, na copa de uma árvore bem diferente das que se viam do outro lado, fora do seu mundo do Tutu onde chocou todos os outros ovos que pariu?!
Era território onde se separavam as regiões e árvore, ao contrário das outras, era de tronco forte, de raízes profundas e bem presas à terra. Normalmente, ave-mãe kasaka, choca seus ovos e tem em regra seus filhos nos mesmos sítios.
O utro episódio que, desde logo fez preocupar a cabeça de mãe Mil, foi que a plumagem de Tyl embora de tom escuro, era mais brilhante que a dos seus irmãos.
Motivo suficiente para começarem, à calada, a chamarem-lhe de fronteiras perdidas, como normalmente tratam os de penas mais claras. Ele próprio à medida que foi crescendo, certificava que, apesar de dotado, estava sempre no limite das coisas, ali aonde elas se misturam. Sempre que ultrapassou o rio grande sentiu a estranheza dos ares e dos ventos que levavam atrás de si as mais estranhas vozes. Dificilmente se sacudiu com energia que os outros demonstravam ter, por isso, apesar de ser pássaro de eleição, foi tido sempre na conta de um fraco. Contudo, adorava como nenhuma outro a chuva do seu país, chuva que não molha e cheira muito bem. Também nunca foi daqueles que não sabem o que são, os ficam quase toda a vida a decidir se são ou não escuros, claros ou pardos.
No meio dessas preocupações, uma única coisa veio tranquilizar a família em relação ao seu futuro. Foi ter-lhe calhado na sorte nome de ser superior, quando chegou a altura da sua identificação. Porém, mesmo quando começou a dar importância às coisas, este facto não aqueceu nem arrefeceu suas penas.
É natural que não tenha ficado claro que a enorme tribo dos kasakas, é a maioria da população de Bansaka, parte influente da ornis deste país, uma família de voadores que congrega toda a sorte de pássaros, passarinhos e passarões, alguns bem diferentes dos comuns, onde se misturam penas dos mais diversos tons, escuros muitas, as pardas e as mais claras em menor quantidade. É lógico que seja do seio dos mais escuros, a maioria, que surgem os nomes de números certo, os que ficam talhados para as grandes funções, os que como Tyl, têm a honra de se tornarem cardeais. Resumindo, passam a ser kasakas com o especial dom de mudar a cútis quando são investidos em altos cargos.
Cargos que dão outra orientação aos voos das suas vidas. É quando se lhes tingem as penas de vermelho e preto, e se transformam normalmente em seres austeros, distantes e poderosos. Essa mudança acontece quase sempre na fase da frutificação do milho.
Tyl, curioso mas distraído, tarde se apercebeu disso. E assim, percorreu, paulatinamente, o caminho que conduziu à frustração, tendo atingido o seu limite ao verificar que os problemas começaram a surgir a partir da altura em que ele se meteu a
tentar perceber como esse acto de mudança do penáceo passou a ser regra, porque tanto quanto sabia, não acontecia assim nos tempos de Dez Mil e Quinze, Joi, o Fundador, nem mesmo nos tempos mais modernos de Um Bilião, Uve, o Restaurador.
Já passaram várias gerações desde que se estabeleceu que só quem vira cardeal pode pertencer ao Ujulame (.Na língua nacional kimbundo significa ventura, felicidade, sorte, destino).
Este é um sofisticado agrupamento de elite, de organização requintada, aceite e abençoada por todos, que governa e exerce o poder sobre os demais, um Conselho que é espécie de grémio, um clube, se o quisermos classificar melhor. Só quem fizer parte de tal clube é que pode ser responsável, manda-chuva ou comandante.
Lim, contemporâneo de Tyl e seu companheiro de ascensão, tem o seu nome comparado ao número Quatrocentos e Noventa Biliões, Mil, Vinte, e é, diz-se, kasakasaka, fruto de uma mistura que lhe deu órgãos cutâneos mais claros. É fronteiras perdidas mais acentuada do que Tyl, mas ganhou, por força do seu nome e como qualquer outro membro do Ujulame, o direitos de mudar de penas. Comenta-se que essa concessão rara na organização tem a ver com o facto de Lim pertencer à casta descendente e de Uve, o Restaurador.
Entraram na mesma época para o Ujulame, juntos viram suas penas tingiremse do vermelhos vivo que sobressai no peito nas asas e na poupa de quem manda, e do negro, símbolo da força e do poder, quemse torna mais escuro no resto do corpo, negros brilhantes coo o azeviche. Foram investidos de privilégios e poderes especiais e integraram-se na equipa dos principais conselheiros e colaboradores da organização, suas ambições deixaram de ser sonhos.
No sagrado muzozeiro, tiveram a sublime honra de poder contactar quase que diariamente com Fer, o perfeito, chefe há muito designado de todos os kasakas e cardeais, o pássaro Quatrocentos e Oitenta e Cinco Biliões. Porém, enquanto que Lim e outros como ele rapidamente se catequizaram e se transformaram em seres distantes, austeros e poderosos como mandava a lei, Tyl e seus correligionários, sempre mostraram atitude crítica.
Enquanto que a nomeação de Tyl foi imposta pela reforma do anterior conselheiro, substituído por motivo de doença que incluira rouquidão, asas quebradas e falta de ideias, enfim, velhice anunciada, a de Lim obedeceu à necessidade de aumentar o número de titulares do colégio de cardeais. Enquanto que de Lim se esperava, naturalmente, fidelidade, de Tyl, face às suas posições esperava-se, no mínimo, continuidade.
Não decorreu muito tempo sobre a data da atribuição de títulos de cardeal a Tyl, quando se registaram os primeiros sinais de ruptura na cúpula do grande Ujulame.
Juntavam-se a outros que anunciavam que o mundo mudava. Alguns bandos manifestaram-se inquietos com os pronunciamentos que vinham de elementos bem posicionados, fundamentalmente do velho cardeal Rha, o pássaro que nunca pediu nada, mas sabia qual era ao seu lugar. O seu lugar era ao primeiro entre os honestos. Foi, coincidentemente, nessa ocasião que Tyl mais se empenhou no estudo do comportamento dos homens e dos últimos acontecimentos que se produziam no reino humano, lá em baixo, onde passou a ir mais vezes, fosse em dias de chuva intensa ou de sol radioso. Foi poisando e pisando muitos sítios. Passarinhou de um lado para o outro, conhecendo mais de perto o mundo dos homens para o poder comparar com o dos pássaros.
– Penso que já é altura de te justificares perante o nosso chefe, sobretudo isto que se diz de ti, desde que foste governar a região de Rincha-Cavalos! Será que desconheces o que o povo pensa de ti? – Tyl fazia essa pergunta a Lim, de modo directo, certa vez, depois de uma dessas investigações à terra.
E este respondeu:
– E o que é que tu tens a ver com isso?
Seus olhos pequenos mas acesos, tentavam descobrir os pensamentos e emoções
do colega. Pareciam querer deitar fogo sobre o enorme matagal que emoldurava o cenário do seu poiso.
– O mesmo que tem a ver com o nosso povo. Não é a ele, que temos que dar satisfação dos nossos actos? Não foi isso que nos ensinaram quando entramos para o Ujulame? – Respondeu, fazendo-lhe duas perguntas.
Na verdade, Tyl não compreendia como dispunha um cardeal da categoria de Lim, a afundar-se na onda de actos desprezíveis que estranhamente tinham invadido os hábitos de uma boa quantidade de responsáveis, desvirtuando os valores mais nobres da família kasaka, desprezando os interesses do nosso bando e a vida dos nossos amigos e parentes, pesando unicamente nele próprios, querendo para si apenas mais território e mais árvores para dominar e a safra de lavas para colher, nitidamente de desinteressados do futuro das novas gerações. Ainda compreenderia Lim se fosse um daqueles administradores ignorantes, que os havia e não eram poucas. Agora e, um passarinho tão inteligente.
– A comunidade anda muito preocupada...– tentou persuadi-lo, na convicção de que breve abria os olhos para essa situação de tamanha fragrância que pássaro nenhuma desconhecida.
– Cala esse bico e cuida da tua vida. Se queres viver sem problema não te metas
nestes casos. – Ripostou num pio pouco amistoso. – Até parece que não sabes que
mundo caminha para a globalização! Aliás, já se sentem os seus efeitos. Não sabes o que se está passar lá em baixo, na terra dos humanos?! É lá onde deves ir aprender alguma coisa! – Parecia aconselhar.
E nas seguintes elevações de Tyl, foi ele conduzido a grandes descobertas.
Premeditadamente, sem dar qualquer satisfação o Ujulame, resolveu visitar Rincha Cavalos, na região da Tapa, terra de mãe Mil. E ai certificou, para além do sofrimento de milhares de passarinhos, que os detinham o poder, não sabiam fazer as coisas. Os que mandavam comportavam-se em tudo como herdeiros de fortuna familiar, como se Bansaka fosse propriedade privada.
Foi surpreendido com a vigência da lei do visgo na região, decreto inteiro de que nunca tinha ouvido falar, que impunha a todas as aves de idade canora – essas construíam a maioria no activo – a entrega de uma grande parte dos seus rendimentos ao administrador.
Era usurpação para proveito, de bens que eram de todos. Quem assim não procedesse viveria irremediavelmente preso a uma espécie de cola de mulemba, igual a uma outra que os humanos fabricavam e utilizavam na caça que faziam aos da nossa espécie quando se atreviam na descida à terra.
Tratava-se de um produto que o tirano Lim importara não se sabe de onde e decidira colocar na maior parte das árvores sob seu domínio. Para impedir arrojo nos cantares dos mais pobres, transformando-os maldosamente em lamentosos cantos-decisne, cortando rés as iniciativas dos fugentes ao fisco particular. Para que fosse mais fácil colocá-los á mercê de formigas e quissondes devoradores.
Qualquer coisa dizia a Tyl que o que se passava em Bansaka não era mais que o reflexo do que acontece lá em baixo na terra dos homens onde, na verdade, fosse ou não causa da a tal globalização, o Sol não brilhava com a mesma intensidade de outros tempos, não era a mesma estrela resplendorosa, já não aquecia a todos da mesma maneira.
Ouviu alguns vexes referir que se Ghi e Ghó acordassem dos seus eternos sonos, de novo morreriam, e mesmo o seu trisavô Kiá, que tanto lutou para morrer, não teria dificuldade de falecer se agora ressuscitasse. Não admira, portanto, que o vissem empenhado como nunca em acções que pretendiam desmascarar os infames esquemas que imperavam.
Faziam tudo com rapidez, justificando que, na nossa vida de passarinho não há longe nem distante e a vida é muito curta para o imenso resto que há a fazer. Em meio dessa frenética actividade, deu um alto à zona dos Grandes Karinguir, donde chegavam murmúrios de idêntico despotismo do cardeal Fwa, outra figura de proa do Ujulame.
O método do visgo retaliador a prender patas e asas às árvores era também, ali, bastante empregue, muitas vezes acompanhado da velha técnica da jinguna. Esses insectos sociáveis, bichinhos do engodo, eram utilizados por Fwa e seus sequazes, declaradamente com mesmos objectivos de Lim. Fwa, ainda mais sórdido que o chefe de Rinchacavalos, pôs a vigororar o uso da guta–percha, uma cola especial trazida lá dos confins do Oriente.
Na pequena cabeça de Tyl, cada vez mais bailava a confusão e perguntava-se insistentemente:
– Serão essas cabeça as leis da globalização que Lim tanto enaltece? Afinal de contas, o que se aprende lá em baixo?
In Kasekas e Cardeais, Edições Caxinde, 2002
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