CAPÍTULO DOIS
OS SEM RUMO
A mudança requeria outras pólvoras, dessas que explodem
tão manso dentro de nós que se revelam apenas
por um imperceptível pestanejar do pensamento.
(Mia Couto)
Nazamba olhou pela ventanilha, angustiada e surpresa. Nunca sonhara entrar num avião, olhara-os, atónita, quando passavam raras vezes por cima da aldeia, mal se percebendo o ténue roncar dos motores, tão alto voavam. Tensa, agarrando com força a mão do pai, atravessava o turbilhão de acontecimentos e emoções ainda não deglutidos em voo baixo e veloz, rasando as escarpas aguçadas dos medos mais recônditos, que bailavam possessos de angústias. Mal percebera o que se passara à sua volta, não apreendera o porquê dos gritos da mãe a indagar pela aldeia do soba grande, seu avô, se ela não era um dos deles, nascida e crescida na terra, com o umbigo enterrado no quintal da casa onde viera ao mundo. Confusa, não entendia o que o umbigo tinha a ver com a reviravolta repentina que a sua vida sofrera e o porquê de tudo isto.
Num torvelinho de emoções desajustadas, vira-se com malas feitas, levada com o irmão da aldeia materna para a cidade por soldados brancos nervosos e armados até aos dentes. Pela primeira vez saía da povoação onde nascera e ao chegar à cidade grande, o terror que sentiu, pronto foi substituído pela surpresa do novo mundo que se revelou à sua frente, semelhante à magia das estórias que Balanta lhe contava na surdina da noite, sempre ciente de que, não obstante ser filha do branco tinha que ser iniciada nas coisas da terra. O que ao branco pertencia, ser-lhe-ia inculcado pelo pai e outros brancos da região, o que à terra encarnada africana incumbia, cabia-lhe a ela sua mãe, imbebê-la na alma e na carne da filha. Embasbacada, sentiu medo quando pelas ruas de Luanda o pai os conduziu da pensão para o consulado português e vice-versa. Os carros, os passeios, as montras das lojas, o ror de gente branca nunca por si vista, e, por fim, o mar. O mar deslumbrara-a por completo. Na primeira vez que o pai os levou à praia, um pouco para mitigar o redemoinho em que suas vidas se tinham transformado, as conchas que avidamente recolheu, levou-as sigilosamente em caixa preciosa de cartão para Portugal. Foram, durante muitos anos, as vozes que a chamavam à terra materna, nelas embrulhava a alma quando a imensidão da saudade apertava. Nelas ouviu a voz da mãe e a memória do irmão desaparecido, entre ruídos estranhos que lhe lembravam o manso bater das ondas na areia de onde as recolhera e, por entre o ciciar do vento, às vezes, o uivar dos cães pelas ruelas da aldeia em noites escuras, ao farejarem a onça ou da hiena quando rondavam os currais.
No dia do embarque, Tomás, aterrorizado com o que ouvia os brancos falarem abertamente pelos sítios em que passara seguindo o pai e a irmã, não desejou partir para a terra do progenitor, fugiu e entregou-se ao primeiro soldado angolano que encontrou. Falou-lhe na língua da mãe, dizendo que era órfão e que não queria ir para onde os portugueses o estavam a levar. Conduzido ao comandante na pequena delegação, manteve a mentira. Este, precisando de soldados e visto a criança expressar-se na língua que lhes era comum, sem muitas perguntas, ficou com ele. O pai, abalado, ainda o procurou por umas horas pelas cercanias, não se aventurando mais do que duas ou três ruas à volta da pensão. Contactou a tropa e a polícia, que não se mostraram muito inclinados a resolverem-lhe o problema, o raio do mulato que ficasse se assim era o seu desejo, a guerra acabara, havia outras preocupações. Quando os da pensão confirmaram que o tinham visto sair com uma pequena trouxa, entendeu que o destino do único filho era a terra que o parira. Contou uma amarga mentira à filha que, já anestesiada por todas as incompreensões, simplesmente olhou para ele com olhos que ele tantas vezes vira nos porcos quando lhes metia a faca, no abate. Atirou-se para uma cadeira e teve que morder fortemente a língua para não rebentar em soluços. Um ténue fio de sangue escorreu-lhe boca abaixo, pelo sulco lateral do queixo.
Sentada ao lado do pai, ouvindo o quase silencioso roncar dos jactos do avião, olhava-o de soslaio e via o imenso mar de lágrimas interiores que chorava, envolvendo-lhe o coração amargurado. Nunca antes tendo sofrido, apertou-lhe a mão para que pudessem compartilhar as dores diferentes que os consumiam, filhos rejeitados da intolerância, ele por ser de fora, ela por ser de dentro do que viera de fora. Por fim, olhou pela ventanilha do avião, e observou a vastidão de terra encarnada, que abrangia tudo o que seus olhos conseguiam albergar, entrecortada de verdes diferentes, estendendo-se até chocar com o cinzento do horizonte.
- Papá, a mamã pode-nos ver de lá? - perguntou, relembrando os raros momentos em que ela própria admirara os aviões a passarem por cima da aldeia, em céus elevados.
Como resposta, sentiu a mão do pai apertá-la com tal força que quase gritou. Começou então a chorar baixinho, um pequeno chiado, quase o miar manso de um pequeno gato perdido, a teimosa imagem do irmão rodeando-a com um carinho que jamais lhe expressara. O pai, atordoado pelo sofrimento, levantou-se e foi encerrar-se no quarto de banho, onde permaneceu até que uma hospedeira, preocupada de ver a angustia da criança, foi bater na pequena porta, indagando se ele estava bem. Ouviu-o assoar-se e em voz embargada dizer que sim.
- Estou bem, vou já sair.
Regressou ao lugar, levantou o braço que separava os assentos e puxou a filha, apertando-a contra si. Evitou pensar, recusou-se a sentir e tentou afastar a forte dor que teimosamente o atormentava. Assim abraçados, adormeceram exaustos, esquecendo momentaneamente a vida, para entrarem num qualquer outro mundo onde a dor e a realidade não faziam morada.
Em Lisboa foram recebidos por gente que falava sem fim, vozes de comando semelhantes às dos soldados em Angola quando arrebanhados para a evacuação em Nova Lisboa. Desnorteados, viram-se empurrados por mãos pressurosas para aqui e para ali, preencha este formulário, só tem esse documento?, tem mais gente consigo?, a sua bagagem?, tem família à sua espera? Por fim, terminaram num lar com muitos outros, os homens lamentando o que tinham deixado para trás, uns com amargura, outros com réstias de esperança do regresso sempre possível, acalmada e digerida a situação. Falavam alto e frustrados, quando não agressivos, dos imensos anos de labuta, de sacrifício, tudo deixado para trás para os pretos destruírem, que se iriam comer uns aos outros como já o faziam quando abalaram, da merda do governo de frouxos que os abandonara, o que o país estava a precisar era de um Salazar, estivesse ele vivo nunca a África seria entregue ou perdida. Gritavam obscenidades aos capitães que organizaram a revolução, consideraram-nos traidores e vendilhões do império aos interesses do comunismo mundial. E ela sem entender, olhava-os, sempre agarrada à mão do pai, tudo observando com atenção e surpresa. Começou a sentir sobre si, ainda que poucos, os primeiros olhares de ódio, como se fosse a culpada do que acontecera e, pela primeira vez em sua vida que amadurecia precocemente, entendeu com um rude golpe, que as palavras do avô soba igualmente ali tinham valor, só que ao inverso, os filhos dos pretos que voltassem para donde vieram, ali não tinham lugar. O estrondo, tanto no coração quanto no cérebro, foi fulminante.
Aqui também sou filha da cobra!
Soube então que não era dos deles e que jamais seria. Conheceu um novo sentimento de raiva surda pelo pai e largou-lhe a mão, afastando-se, indo-se juntar às outras crianças negras e mestiças. Disse para si própria que nunca mais choraria em sua vida, e enterrou a memória da mãe e da aldeia, como se possível, não sabendo que a saudade e a lembrança sempre aparecem, sobretudo quando menos esperadas. Rogou aos espíritos que a mãe lhe ensinara a conhecer, que tivessem queimado e destruído a loja do pai, e assim ficou em paz consigo própria, empedernida e sem família, órfã dos destinos e das vozes ainda não ouvidas, que o avô desencadeara.
Por fim, de Lisboa foram para a vila do pai, perdida entre morros de pedra e árvores desconhecidas, para a casa de uma irmã solteirona que ao vê-la pela primeira vez não se conteve.
- Não a poderias ter deixado em África?
O pai olhou para a filha e sofreu uma forte picada no coração. Sentiu como que a alma, caso a alma tivesse peso, lhe caísse aos pés.
- Nunca mais digas isso, nunca! – gritou para a irmã, que se assustou.
Tentou abraçar a filha, que lhe fugiu com um grito.
- Larga-me!
A tia sorriu, sem esconder, adivinhando o vendaval que viria e para o qual contribuiria semeando ventos a granel. Os cegos, só eles esperariam que distribuísse carinhos e benesses à sobrinha, agora que passaria a ter que carregar por onde passasse. Nos olhos com que olharia para os outros, o peso do pecado do irmão.
Trazer uma preta para cá, onde é que já se viu?
- Onde é que ela vai dormir? A casa é pequena. – disse, como que a reforçar o pensamento tido.
- Amanhã vou comprar um cama e põe-se no teu quarto - respondeu agastado.
- No meu quarto? Cruzes credo! Talvez seja mais fácil o céu tombar-me em cima!...
- E porque não, não é mulher como tu? – respondeu o irmão, irritado
- Nunca, não sei que costumes essa gente tem... e mesmo que assim não fosse!
Preferiu não responder. Chamou a Nazamba e disse-lhe que ficaria na sala, no pequeno sofá, amanhã iriam comprar uma cama e que dormiria no seu quarto até arranjarem uma casa própria. A filha não respondeu.
Sem querer, vieram-lhe à mente as imagens do dia em que, carregado na tipóia, se dirigira ao soba para lhe pedir Balanta em casamento, projectando a imagem de homem poderoso com aquele cortejo de presentes para impressionar e logo lhe arrebatar a filha. Sentou-se, desconsolado e levou a cabeça entre as mãos
- Não é justo, Deus. Não é justo – disse, pensando alto
- O que é? – perguntou a irmã.
- Nada. Não é nada, são coisas do passado. Vou dormir, arranja os lençóis e cobertor para a tua sobrinha.
A tia entrou no quarto e pronto se ouviu o seu resmungar, propositadamente alto a fim de que a ouvissem e se fossem habituando ao que sentia e pensava.
- Lençóis, lençóis, quem pensa que é, talvez os queira de seda. Uma serapilheira é o que lhe basta.
Por fim apareceu com um lençol, cobertor e uma almofada. Atirou tudo displicentemente para cima do cadeirão e ordenou à sobrinha que fizesse a própria cama onde e como bem entendesse. Com isto saiu e bateu a porta do seu quarto.
- Não te preocupes filha, isso passa, ela nunca teve filhos. Melhores dias virão.
- Ela não gosta de mim porque sou preta – disse, seca.
- Não és preta, tu és mulata filha.
- Sou preta. Nunca mais serei mulata, serei sempre preta.- respondeu, com raiva e certeza.
Deixou que o pai lhe segurasse a mão, sentiu pena dele, afinal também sofria, não fora ele que abandonara a mãe, obrigaram-no. Comoveu-se, quis chorar mas lembrou-se da jura que fizera. Deu-lhe dois beijos e foi fazer a cama para se deitar.
A noite fechou-se sobre si mesma com o silêncio da casa. Apagou a luz da sala para deixar a filha descansar e sentou-se no cadeirão, tentando vislumbrar o que seria a vida dali para diante, o que faria. Os minutos passaram, transformaram-se em horas de angustia e pesar, ouviu os gemidos da filha em seus sonhos de imensidão sem norte, que seria dela, menina que sempre levara uma vida despreocupada e rodeada de gente, carinho e amor. Que seria da esposa, agora sem ele e certamente vilipendiada na aldeia, talvez não tanto por ser filha do soba grande? Como nem tentara sequer trazê-la? Talvez porque, por um lado, no íntimo soubesse que Balanta não aceitaria, e por outro, porque sabia que ela sofreria sem fim em Portugal. Pediu forças a Deus, ele que nunca se lembrara de viver pelas Suas leis e que nunca fora a uma missa. Talvez em Angola tudo se arranjasse e pudesse voltar. Se efectivamente houvesse eleições, os comunistas não ganhariam e os outros dois movimentos diziam que não queriam que os brancos se fossem embora, bem ouvira na rádio. Teria pois que ter fé e confiança, certamente que após Novembro estariam novamente em Ualali. Quereria então ver a cara do sogro, se teria coragem de o mandar embora após ter recebido ordens do governo assegurando que os brancos poderiam ficar e continuar a trabalhar para o desenvolvimento de Angola. Essa seria a política justa pois havia terra e espaço para todos, uma política de inclusão e respeito, nada parecida à política de exclusão e elitista dos comunistas que lhes ficaram com tudo. Estava certo que os angolanos não se deixariam enganar e, em Novembro, tudo se esclareceria definitivamente através de um governo eleito democraticamente pelo povo. Então voltaria, ele e todos os outros que haviam iniciado a construção da grande pátria angolana. Não queria saber de políticas, nunca pertencera ao grande capital e nunca acreditara que o comunismo fosse a salvação do mundo, sempre houvera oprimidos e pobres, a própria Bíblia o justificava e nem por isso Deus os salvara, o que desejava era a sua casa comercial e ser capaz de comerciar e educar os filhos. Haveria de voltar, se houvesse justiça divina e ponderação humana. Quando começou a madrugada, a cabeça pendeu-lhe para o lado, finalmente adormecido e reconfortado na ténue esperança.
Após o mata-bicho saiu para reconhecer a vila, que não era assim tão pequena e começar a ver onde arranjar uma casa, com a irmã não poderia ficar, suas vidas tornar-se-iam um inferno, já percebera e sabia que não poderia colocar sobre os ombros dela a responsabilidade da educação de Nazamba. Foi igualmente informar-se da escola para a filha e sentiu os olhares das pessoas sobre si, pela roupa via-se que era um africanista, pelo menos assim julgou, desambientado que estava. Tudo era novo e por identificar, afinal a sua terra tornara-se África, seu modo de estar e ver as coisas não eram os mesmos quando abandonara a aldeia há quase três décadas, jovem e pleno de sonhos e vontades. Em África construíra família, se enraizara nos costumes da terra. Sonhara e trabalhara para edificar um país forte e desenvolvido, não percebendo no fundo que o caminho só poderia ser esse, se fosse abrangente e não deixasse de fora a grande maioria da população. Construíra sua casa em chão que o soba lhe dera, mas achou justo que as terras fossem arrebatadas aos nativos para as grandes fazendas de café, de sisal ou de pastos, só assim o país se desenvolveria e a missão da mãe pátria se cumpriria. Mesmo vivendo rodeado de negros e casado com uma, achou normal e justificável, sem qualquer critério cientifico ou plausível, serem os brancos superiores, bem como os costumes que trouxeram e que sobreviviam, ao que ele chamava a missão civilizadora e que custara a vida a grandes homens como Silva Porto, seu exemplo preferido da grandiosidade da defesa dos interesses da portugalidade. Hoje, três décadas após, longe da aldeia e da vida que amara, começava a intuir que sempre fora um estranho em terra alheia. Seus filhos, sim, eram autóctones, haviam nela enterrado o umbigo e comido do barro vermelho africano em suas brincadeiras, conforme lhes ensinara Balanta.
Voltou a casa para ouvir a irmã a resmungar que a sobrinha nem sequer sabia fritar um ovo. Valeria a pena explicar o que fora a vida dela, a vida deles? Olhou resignado para Nazamba e fez-lhe uma festa na cabeça.
- Papá, arranjaste-me uma escola?
- Sim filha. Tenho que levar os documentos e amanhã ou depois começas as aulas. Ajuda a tua tia cá em casa, e o que não souberes vai aprendendo.
- Conseguiste também uma casa?
- Não, isso já é mais difícil. Tem paciência, tudo se arranjará em breve.
Sentiu a irmã a olhar de soslaio, como que dizendo arranja lá essa casa bem depressa.
- Esta casa também é minha, era do nosso pai - disse ele, sem querer.
- Mesmo assim pai, não quero ficar aqui.
- A menina acha que é boa demais para ficar aqui? – não resistiu, a tia.
Nazamba olhou para ela com tal intensidade que esta recuou e benzeu-se.
- Abrenuncio!... Que coisa, meu Deus!
Três dias depois começaram as aulas e, como estranha que era, foi motivo de curiosidade e atenção. Nessa altura ainda não eram muitos os africanos, fossem de que cor, sobretudo no interior.
- De onde vens? – perguntou uma.
- Ah também falas português? – carregou a outra, surpresa.
- Porque é que és tão escura, os teus pais também são assim? – indagou, sem maldade aparente, um terceiro
- Posso tocar o teu cabelo?
- Posso ser tua amiga?
Mas gostou, foi o alvo principal de atenção, sentiu-se uma pessoa à parte, especial. Voltou a casa contente, nunca tanta gente desconhecida lhe houvera conferido tal condescendência. Todavia guardou as sensações para si, limitou-se a informar o pai de que tudo correra bem.
- Daqui a um mês fazes doze anos, estás a ficar uma mulherzinha.
- Vamos ter uma festa, pai? – perguntou Nazamba, relembrando os aniversários passados.
- Festa?!... – cortou, preocupada a tia, mas para logo emendar – Quem tem dinheiro para festas e quem é que a vai preparar? Para além disso não conheces ninguém aqui.
Nazamba olhou implorante para o pai, que soube não poder negar à filha o pedido, logo o seu primeiro aniversário após a saída deles.
- Está bem filha, vamos fazer uma coisa muito pequena. Eu, a tua tia e mais umas duas amigas tuas, não temos muito dinheiro - respondeu, sem revelar a amargura interior.
- E será só por pouco tempo, não quero gente estranha cá em casa. – retorquiu a tia.
Esse foi o primeiro aniversário dos seis que celebrou nessa casa.
Aos dezasseis anos, com um relacionamento paterno cada vez mais conturbado, começou a pensar em abandonar o lar e os estudos. Não mais aguentava os comentários
da tia, as constantes insinuações que não compreendia como o irmão se metera com tal gente, que não fizera mal a ninguém para ter que aguentar com tal castigo, ela que nunca casara via-se agora a criar a filha do irmão com uma macaca. Igualmente já não tolerava as bebedeiras do pai que, não tendo suportado os descaminhos da vida, se remetera ao vinho para eliminar os fantasmas que constantemente o atormentavam, virando-se por isso contra ela. A amizade que sentira pela filha esvanecera-se, ou fora abafada no vinho, parecia que se transformara noutro ser. Resmungava por tudo e por nada, tornara-se numa pessoa azeda, em tudo que a filha fizesse encontrava defeito ou reparo, com a irmã sempre a apoiá-lo. A não ser o televisor à noite, pouco mais os unia.
- Olha para essas a fumarem que nem umas desalmadas, até parecem umas putas – disse para consigo mesmo mas suficientemente audível, uma noite em que, sentados na penumbra da sala, viam um filme.
- Mas são só jovens a divertirem-se numa discoteca – respondeu Nazamba, ofendida pelo comentário do pai.
- Toda a mulher que fuma e sobretudo em público, não anda muito longe disso – rematou, agressivo e desejoso de ferir.
- Se eu fumar então quer dizer que sou uma puta? – perguntou, Nazamba.
- Não te autorizo a usares essa palavra, sobretudo diante da tua tia – respondeu, mais agressivo ainda.
- Eu só a repeti, foi a que o pai usou e a tia também estava aqui.
- Estás a ver o resultado da educação que lhe dás? – interferiu a tia.
Fez-se um silêncio pesado, como se cada ponderasse que espada esgrimir de seguida para reduzir o outro ao silêncio vitorioso dos desencantos que os uniam.
- Mas o pai não me respondeu. Se fumar serei para si uma?... uma...
- Já te disse que toda a mulher que fuma é isso mesmo, e ponto final – rematou, ciente de que a irmã aprovaria, ainda que por omissão.
O silêncio voltou à sala. Nazamba levantou-se e dirigiu-se para o pequeno cubículo que há muito tinha sido transformado em seu quarto de dormir. Deixou a pequena porta entreaberta e deitou-se, vestida. Olhou para o tecto carcomido pela humidade e velhice, deixando os olhos habituarem-se à penumbra e seguiu o diálogo do filme até ao fim. Quando sentiu que o sono estava a chegar, com um esgar de sorriso, decidiu que a primeira coisa a fazer no dia seguinte seria comprar um maço de cigarros e um batom vermelho.
Acordou com a voz roufenha da tia.
- Pensas que eu é que tenho que te despertar?
Como dormira tanto, não gostava de chegar tarde à escola, paciência iria sem o mata-bicho? Riu ao pensar a palavra meio esquecida. Quando a usava, a tia não lhe perdoava.
- Lá vens tu com a linguagem dos pretos.
- Mas ó tia olha que essa palavra foi levada para África pelos brancos.
- Estás a insultar o teu pai, não é?
Nesses momentos sentia-se vingada e fazia todos os esforços para não esquecer por completo a palavra, tornara-se uma arma poderosa, uma farpa a ser lançada ocasionalmente para compensar e equilibrar emoções. Para além da tez castanho-escuro, a puxar mais para o negro do que para o branco, era a única coisa que lhe restara da terra, as lembranças esbatidas e carcomidas não lhe faziam fé, muito menos o rosto da mãe. Nem uma fotografia rara, tudo deixado para trás na correria de abandonar o mato e o país. Escovou os dentes à pressa, vestiu-se como pode, agarrou nos livros sem sequer consultar o calendário das aulas, e partiu porta fora.
- Hoje não mata-bicho, tia. – gritou.
Num dos intervalos chamou a Rita, a única verdadeira amiga que tinha e sentaram-se num banco.
- Não queres fugir comigo para Lisboa? – atirou-lhe à queima roupa.
- Credo Nazamba, o que dizes? Estás a falar a sério?
- Estou. Não aguento mais aquela casa, a minha tia sempre a resmungar, o fraco do meu pai sempre bêbedo, nunca se recompôs. Não é que ontem disse que toda a mulher que fuma é puta?
- E a tua tia, estava presente?
- Claro. Aproveitou logo para meter a colher. Quando sair, vou comprar um maço de cigarros, e vou fumar à frente deles. – disse Nazamba, determinada.
Rita não soube o que responder, a amiga estaria ofendida, e com razão, mas daí a começar a fumar... Largou uma gargalhada.
- O tabaco faz mal, não comeces que é um vício terrível.
- Mais mal me faz o meu pai. Ele disse aquilo para me magoar, por isso vai agora poder chamar puta à filha. E olha, vou também comprar batom e começar a pintar-me.
A amiga olhou para ela em espanto, não era a Nazamba que conhecia, rebelde sim, mas não revolucionária. Segurou-lhe a mão e acariciou-lhe a carapinha, em afago.
- Não faças isso, vamos conversar melhor depois das aulas.
- Quanto ao fugir para Lisboa, não sei, mas que logo vou começar a fumar, juro-te que vou. Vão ver, vão os dois cair para o chão com chiliques –levantou-se, entre risos.
No dia seguinte, quando o pai chegou, ao anoitecer, encontrou-a sentada na escada de entrada da casa, cigarro na mão. Assim que o viu, acendeu-o e puxou forte o fumo, conforme vira seus colegas fazer. Não sentiu a pesada mão paterna a lamber-lhe o rosto porque a tosse causada pelo trago irreverente do fumo a asfixiava, engasgada na saliva. E foi isso que a salvou, pois o pai ao vê-la a perder o ar e a cambalear, agarrou-a pelos ombros e fê-la sentar. Em sua mente ébria não percebia o que estava a acontecer, sentiu-se traído pela vida, vieram-lhe imagens antigas da filha a brincar em seu colo, na varanda da loja.
Papá, papá porque é que os pirilampos acendem à noite?
Não aguentou a facada que recebera, e sentou-se a seu lado em soluços que pareciam balidos. Nazamba levantou-se, agarrou o cigarro que tinha ido parar junto à porta, levou-o aos lábios e tragou, sem engolir, o fumo que atirou à cara do pai, numa vasta baforada. O fumo de todas as grandes queimadas africanas que em si ardiam há muito, ele fora e era o vento indómito que as alimentava.
- Pronto, já sou puta, puta que a minha mãe nunca me chamaria, ainda que eu o fosse – disse, entrando na casa com o cigarro na boca.
A tia, que observara da porta entreaberta a última cena, amedrontou-se e deixou-a passar, benzendo-se. Depois, dirigiu-se ao irmão e agarrou-o pelos braços, sacudindo-o com força.
- Se bebesses menos e procurasses alguma coisa para fazer, talvez te soubesses impor. Nunca a deverias ter trazido, tem a alma tão negra quanto a cor, essa gente é filha do diabo, já diz a Bíblia.
Exaurido de vontades, entrou, agarrado pela irmã que o sentou no cadeirão habitual, onde ficou a soluçar até adormecer.
Horas mais tarde, já com a casa embalada no primeiro sono da madrugada, Nazamba veio com um manta e cobriu-o. Do seu rosto tombaram tímidos fios de tristeza que pingaram para a mão sapuda do pai. Limpou-os, suavemente, com as costas da mão.
Ai meu pai, o quanto nos magoamos...
Abaixou-se, deu-lhe um beijo na testa, encostou o rosto no dele por breves segundos e volveu ao quarto. Tentou adormecer, confusa e embrulhada em imagens da infância, das visitas que faziam ao avô que sempre a tratara como alguém especial. Por volta dos sete anos, teve plena consciência de que era neta de um homem importante, mas não tão importante quanto o chefe do posto, perante quem ele se dobrava em fantasias e salamaleques. Apreendeu ainda a razão e motivo das poucas brancas, esposas de um ou outro comerciante da região, raramente os visitarem, mesmo sendo a casa do pai a mais abastada e de importância reconhecida por ser o maior comerciante da área.
Quando apareciam, era porque os maridos as traziam a reboque, nos seus rostos lendo-se a indisfarçável contrariedade, despeito ou a eterna condescendência dos que se sentem superiores.
Não vá o homem ofender-se, olha que ele é genro do soba grande e isso aqui conta para o comércio.
Observava com curiosidade infantil o desconforto e os incómodos tanto da mãe quanto os da visita, numa desastrosa falta de comunicabilidade, ambas tentando parecer e ser o que não eram.
Vamos daí, não custa nada, pergunta-lhe pelos negócios do marido, da vida da casa, faz um esforço, tens que começar a conhecer a mentalidade desta gente, é aqui que nós vivemos.
A mãe, desajeitadamente a procurar o trato europeu do marido, a outra a tentar mostrar que era amiga dos negros, todavia no discurso o natural sobressair do que era: branca e supostamente dona de um Portugal imenso que vinha e ia pelos mares fora, estendendo-se que nem peste pelos quatro cantos do mundo. O Portugal que Nazamba apenas intuíra nas conversas do pai com os demais comerciantes, abstracto e grandioso e que lhe era revelado nos falares quando se juntavam para um trago de vinho ou para a sueca. Não o Portugal pequenino e real que agora conhecia e a amordaçava nos sentimentos, porque forçada a quase esquecer o berço do nascimento e o íntimo, a alma.
Sofria um Portugal de dor e de raiva, convergido na figura do pai.
Como ousava ofender as mulheres, a memória de sua mãe, chamando-as, ainda que ela, Nazamba, não fumasse? A avó, cujo nome já não lembrava, sim, essa fumava interminavelmente aqueles longos rolos de folha de tabaco enrolada, que empestavam o ar e o hálito, fumados com a ponta acesa ardendo dentro da boca fechada.
Puta?
Puta pela qual pagara riquezas e à custa de quem fizera a sua, comerciando à vontade nas terras do avô, o grande soba Juba de Leão.
Sou tão infeliz, meu Deus!
Agarrou-se à almofada para não gritar no vazio nocturno a dor, embrenhou o rosto nela, e carpiu todas as raivas ancestrais, novamente o juramento quebrado.
Foi para as aulas sem ter dormido toda a noite. Quando a tia acordou, há muito que saíra.
- O raio do diabo hoje abalou cedo, deve estar com vergonha – disse para si mesma.
Relançou os olhos para o cadeirão onde o irmão dormia e estranhou a manta, não se recordava se o cobrira ou não. Condoeu-se, por uns momentos.
O que a vida faz às pessoas, ainda ontem era um homem abastado e olha para ele agora, feito um trapo e humilhado pela filha, mal sabe o que essa cobra lhe fará, vai levá-lo à cova.
Benzeu-se e foi preparar o pequeno almoço, a mão levada ao peito, contricta, no sentir involuntário da pena.
Nazamba continuou a fumar e a pintar-se a seu belo prazer, ainda que não sentindo prazer. Fazia-o para demarcar o espaço que ganhara. A vida tornou-se asfixiante, sentia-se tolhida e sem futuro, já completara o secundário, almejava partir á descoberta do mundo que os televisores e as revistas revelavam, à conquista do desconhecido. Não encontrara ainda a coragem para os informar que um dia abalaria para Lisboa, sabia que com esse gesto afundaria por completo o pai e libertaria a tia que, à medida que os anos corriam, se sentia cada vez mais insegura e ameaçada, julgando que talvez a sobrinha a embruxasse com qualquer doença ou praga africanas, nem os conselhos do padre demovendo-a de tais disparates.
Sentada num banco do jardim público, Nazamba falava com a amiga, enquanto vasculhava as páginas do jornal à procura de emprego.
Meninas com boa apresentação, precisam-se para trabalhar em restaurante/bar selecto e discreto.
Nazamba nem acabou de ler o anúncio, com emoção fechou a página e soube que aí estava a via para a realização do seu sonho mais imediato, Lisboa. Trabalharia à noite e frequentaria a universidade durante o dia.
- Mas tu acreditas nisso?- perguntou-lhe, meia incrédula Rita.
- Olha, se desejas permanecer nesta espelunca o resto da tua vida, isso é contigo, mas eu vou para Lisboa, não fico aqui a apodrecer.
- E o teu pai, Nazamba, o que vai ser dele, já viste como ele vai ficar?
Olhou para Rita e não soube o que responder. O pai, sim, o que seria do pai, que nunca se separara dela desde os dias em que, pela mão, a trouxera consigo, não obstante o relacionamento terrível que os consumia?
O meu pai? Por acaso pensou em mim e no que seria, longe da minha mãe e donde nasci?
Olhou intencionalmente para a amiga e tentou responder, sem o conseguir.
Por acaso mostrou vontade de ficar, lutar, enfrentar o sogro?
- O meu pai?!... – balbuciou novamente, enquanto Rita a olhava.
Fez valer que ganhara o direito à terra, com os laços de sangue?
- O meu pai?... – sussurrou.
- Puxa, até pareces um papagaio. Engasgaste-te ou quê? – riu Rita, meio espantada.
Ao primeiro grito do meu avô, entreguem os mulatos aos pais, agarrou em nós e abalou com o rabo entre as pernas.
- Porque terei que me preocupar com ele? – respondeu.
- Não fales assim, Nazamba. Deus pode castigar-te.
Pelo menos está na sua terra. O meu pai que se dane, irei para Lisboa trabalhar e estudar, a vida é minha.
A amiga, estranhando o novo silêncio e o olhar vago, reformulou a pergunta.
- Nazamba, e o teu pai? Não estás a ser sincera certamente.
- Será duro de início, depois habitua-se. Olha, também me habituei.
- Não digas isso Nazamba, ele sempre esteve aí para te apoiar.
- O que sabes tu? Não imaginas o quanto odeio o meu pai quando penso na minha mãe, nem me lembro da cara dela.
Rita sempre se sentira constrangida ao ouvir Nazamba falar da mãe. Observara como ao longo dos anos as recordações de infância se esvaneceram, cada vez mais ensandecida contra o pai. Não estranhava pois que desejasse partir, embora não acreditando que o fizesse.
- Só que eu acho que devias acabar os teus estudos e depois pensar em regressar à tua terra.
- Disso podes ter a certeza, Rita. Com estudos ou sem eles, hei de regressar, nada me impedirá. Só espero encontrar o meu avô vivo, tem que saber o que me fez.
- Será que vais viver a tua vida com essa amargura?
Olhou para a Rita como se tivesse acordado de um sonho, a amiga involuntariamente mexera na ferida há muito embrulhada no íntimo. Para disfarçar, acendeu um cigarro e voltou a cara.
- Não sei, esse problema é meu.
- Não te quis ofender. É que vejo a tua mágoa crescer de ano para ano. Nazamba, sou a tua única amiga e se te fechas por completo, com quem vais falar?
As amizades são de oportunidade, que amizade, se porventura entre pessoas do mesmo sangue...
- Sei que és minha amiga, mas a nossa amizade não condiciona o rumo das nossas vidas, amanhã casas-te e tudo se tornará nubloso face às tuas novas responsabilidades, trocaremos correspondência ocasional, e pouco mais do que isso será. E quando eu regressar a Angola, então aí tudo se tornará mais longínquo ainda.
- Não vejo as coisas assim...
- Não vês as coisas assim porque não tens que as ver, é só isso. A tua vida foi diferente da minha, sempre viveste aqui. – disse Nazamba, atirando o cigarro para o chão e apagando-o com a ponta do sapato, esmagando uma memória desagradável e pondo fim à conversa.
Que importa com quem vou falar, em Lisboa farei novos amigos e com eles me entenderei.
Ao chegar a casa ao fim da tarde encontrou o pai sentado no cadeirão, olhos vidrados no televisor, a mente a esvoaçar, fraca de virtudes para se alçar mais acima do ver etílico das imagens no tubo electrónico. A tia estava ausente. Quedou-se por largos momentos a testemunhar o quadro, num escondido desejar de ser capaz de o alterar, remover as nuvens que encobrem tanto a montanha quanto o sol, pôr as águas do riacho tortuoso a correr escorreitamente. Recompôs-se e considerou que deveria ir ao assunto sem rodeios, ser-lhes-ia menos doloroso e custoso. Pigarreou para atrair a atenção do pai para a sua entrada.
- Pai, quero ir-me embora. Arranjei trabalho em Lisboa.
Marcelo olhou para ela e não soube o que responder. Percebeu que não valia a pena tentar dissuadi-la, só lhe renovaria a vontade e tudo acabaria numa discussão azeda, para a qual já se encontrava cada vez mais exaurido de forças e vontades. Há muito que aceitara, dilacerado, que perdera a filha. Vira-a transformar-se num corpo estranho, sempre a balbuciar-lhe farpas afiadas que o atingiam no coração, e que só Baco as diluía. Duas lágrimas escorreram-lhe pela face enrugada, limpou-as logo com a mão, não desejou que a filha o visse assim.
- Trabalho, que trabalho? Não conheces lá ninguém...
- Conheço, umas pessoas de Angola que vivem em Lisboa, estiveram aqui durante as férias.
- De Angola, onde de Angola? E porque não me falaste disso?
- Não te falei disso para não te magoar, vejo como ficas quando vês as imagens de Angola aí na televisão. Uma delas trabalha na TAAG e arranjou-me lá um furo. Preciso que me emprestes algum dinheiro, depois pago-te.
- TAAG?... dinheiro?...
- Sim pai, preciso de dinheiro para a camioneta e para uma pensão nos primeiros dias, depois os meus amigos ajudam-me.
- Mas aonde é que vou arranjar esse dinheiro, bem sabes que a pensão que recebo é uma miséria.
Miséria? Miséria que chega para te embebedares todos os dias, não me vais amolecer, não senhor.
- Pede à tia que te empreste. Sabes que ela tem dinheiro, eu pago quando começar a receber.
- Mas o que vai ser de ti em Lisboa, sozinha, sempre estivemos juntos?...
- Algum dia teria que partir, se não for hoje, será amanhã. Estou uma mulher, pai, não sou mais aquela menina que trouxeste pela mão, espantada e amedrontada.
Sentiu a frechada, não mais desejara evocar as memórias e imagens dessa tragédia, afogadas no vinho. Levara as palavras do sogro a peito, e entendera em perplexidade que afinal Angola não era Portugal, não desejara saber o que lhe aconteceria, e aos filhos, caso ficasse. Juba de Leão fora peremptório, levem os mulatos com vocês, e as mães, se desejarem ir. Palavras de investidura nova e que não pertenciam àquela África que conhecera e na qual se sentira à vontade, a continuidade do seu Portugal metropolitano. Pela primeira vez vira-se confrontado com uma África desconhecida, arrogante e dona de si mesma. O que acreditar, em quem acreditar, quando Portugal próprio fugira das suas responsabilidades, o abandonara aos desígnios de novos ventos que não entendia como possíveis e que o amedrontaram? Será que a filha nunca viria a apreender que ele fora incapaz de vestir as roupagens de uma nova situação que requeria coragem, atrevimento e, sobretudo, uma forte dose de inconsciência face ao desabrigo e ao desconhecido pintados no horizonte próximo? Não se apregoara que os pretos viam chegada a hora da vingança, que os comunistas iriam arrebatar todas as casas, as fazendas, os haveres e as mulheres dos brancos? No íntimo sabia que assim não fora, mesmo sentindo cada vez mais a sua raiva e frustração justificadas na carnificina a que os angolanos se remeteram, irmão contra irmão. Talvez até o sogro já não existisse, morto por uma outra qualquer razão mais forte do que a saída dos mulatos, que ordenara. Teve vontade de se levantar e de a sacudir até que as palavras que há anos desejava ouvir sair da sua boca, brotassem para lhe aliviar a alma e o ser. Seria o conforto que facilitaria deixá-la partir em paz e que lhe compraria o sossego que agora cabia no oblívio proporcionado pelas mãos balsâmicas de Dioniso.
- Amedrontada? – gritou, atirando o copo de vinho para o chão – Amedrontada? O que sabes tu de medo, o que sabes tu de construir uma vida e perdê-la depois num ápice, num sopro que nem é teu? Há anos que me culpas da desgraça que se abateu sobre nós, como se tivesse sido eu que te colocou fora da tua terra. Basta!...
Nazamba olhou para o pai e pela primeira vez após o longínquo regresso, viu nele o homem que fora seu pai em África, e pensou que fosse vacilar. Logo se recompôs.
- Não foste, mas não lutaste, abandonaste a tua mulher, a minha mãe - gritou de volta.
- O que querias que fizesse, que me cortassem a cabeça, não vês aí todos os dias na televisão como se matam uns aos outros? Percebes porque o fazem, percebes?
- Mas há lá muitos brancos que ficaram e não morreram.
O pai olhou para ela com tristeza, deu um pontapé na metade do copo partido, limpou a testa e suspirou fundo.
- Os brancos que lá hoje há são outros, não são os que ficaram, são os que nos vieram substituir, os que colocam os negros à frente e que só lá vão de vez em quando para controlar o roubo que é feito para eles. Achas que estão no interior de Angola, fubeiros como nos chamavam, que vivem o que nós vivemos? Que conhecem África como nós a conhecemos? Achas que há lá médicos que praticamente abandonaram a família para se embrenharem nas matas e nas aldeias, médicos que graças ao seu esforço quase irradiaram o paludismo, a doença do sono, a lepra? Angola para nós era uma pátria, um lar, uma vida entregue. Para essa gente de agora, Angola é um sugadouro, uma conta de banco e um riso de escárnio nas costas dos angolanos, porque estes venderam a alma e a riqueza do país para adquirirem fortunas fáceis, não se dando ao respeito. Não os vês aqui em Portugal? Como é que uma pessoa, com os salários que lá se ganham, consegue comprar uma vivenda de luxo em Cascais ou no Estoril, ter a família inteira a viver aqui para os meninos não irem à guerra onde os outros, os pés descalços, morrem? Quantos anos me levou para conseguir ter a nossa casa comercial e um pouco de dinheiro no banco? Trabalhávamos uma vida inteira e tudo lá enterrávamos, prova disso é que hoje nada tenho... O que sabes tu disso, filha?
Parou de falar, a dor não lho permitia. Seu peito arfava com o esforço despendido. Guardara para si a frustração durante os anos, nunca aceitara ver o seu trabalho laborioso ir por água abaixo, nunca aceitara a partida intempestiva de Angola sob ameaças, e a ferida que inadvertidamente pusera agora a sangrar ameaçava jorrar em catadupas.
- Pronto, talvez não saiba. Mas vou para Lisboa, vou cuidar de mim e da minha vida, não posso ficar aqui agarrada a memórias tuas.
- Memórias minhas...- sussurrou para consigo mesmo, exausto – ...memórias minhas, de facto.
Não o faças sofrer mais, pede-lhe o dinheiro e desanda para Lisboa...
- O pai fala à tia e emprestam-me o dinheiro. Eu pagarei tudo de volta. Nada mudará a minha decisão, e será melhor que eu vá com o vosso consentimento.
Nazamba jogava com a certeza de que a tia iria colocar a questão na balança e que decidiria ser mais útil investir uns contos de reis e vê-la finalmente partir, nunca nutrira qualquer tipo de sentimento positivo para com ela. Certamente que, no íntimo, faria uma festa de despedida com foguetes e tudo entre as rezas de sempre, e até seria bem capaz de mandar benzer e rebenzer a casa, o quintal incluso.
- Se é isso que desejas, vou falar com a tua tia. Sei que não te poderei guardar para sempre, esperava que não fosse assim.
- Depois mando-vos dizer onde estou. Vou trabalhar e estudar, quero ter um curso, voltar a Angola formada.
- Sei que és capaz disso, filha. Mas quanto ao voltar a Angola, pensa bem.
- Já pensei, não quero falar deste assunto. Terei lá família, não terei?
- Deus queira que sim, e espero que encontres a tua mãe e o teu avô, que estará bem velho, e quando esse dia chegar, talvez entendas então o que nos aconteceu.
Nazamba fingiu que não ouviu, o que menos desejava de momento era entender o que lhes acontecera e retirou-se, consumida de uma enorme e inexplicável mágoa dentro de si.
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