sábado, 3 de agosto de 2013

MEMÓRIAS DA ILHA - CRÓNICAS


 
 
 
 
 OS MALDIZENTES
Recordo-me de, na minha infância, o meu pai receber o Reader’s Digest, que eu lia com muito deleite pelas estórias e informação que continha. Havia uma secção que logo procurava, por me fascinar com a descrição de personagens e seus feitos em prol de qualquer causa que concorria para a felicidade ou alegria do próximo.
Evidentemente que a personalidade em descrição aparecia sempre pela positiva, conta tida os sentimentos carinhosos que gerava. Creio que a coluna intitulava-se “O carácter mais inesquecível” ou algo similar. Não sei se a revista ainda existe e continua a publicar tal secção, todavia a evocação advém do facto de constatar que a maledicência e a intriga é ainda hoje característica comum, sobretudo nos locais de trabalho, onde é utilizada como forma abjecta de pretensa ascensão carreirista por uns, ou, por outros, como laxativo libertador da bílis mental, tornando pessoas normais e sãs em vasos sanitários duma diarreia psíquica própria.
O maldizente profissional é aquele que, indelevelmente marcado por qualquer traumatismo recalcado, e se digo indelével é porque sei que ele pessoalmente não acredita na psicanálise, incapaz portanto de se ver sofrendo de um mal-estar psíquico, nunca encontra no próximo valia ou qualidade reconhecidas, a não ser por motivos escusos ou de bajulação. Torna-se assim uma espécie de surucucu iluminada que na perene sapiência que a autodivinisação lhe impõe, para tudo tem teoricamente solução, sem nunca ser parte dela. Age sempre pelas costas numa rigidez de caracter que tem todas as características caninas, menos a atinente lealdade.
Uma vez gratificada a sua mesquinhice, mas nunca se livrando da incómoda frustração, aparece como um vaso exteriormente untado de mel, todavia pleno de fel, querendo ajudar sua próxima vítima, numa comédia perniciosa de pretensa boa vontade, impingindo a ideia de que só graças a ele se consegue unir os cacos estraçalhados por sua acção purgativa e merecida.
Isto leva-nos um pouco à questão da moralidade, onde este tipo de comportamento se revela como uma invasão a fronteiras específicas criadas pela sociedade que, para sua própria protecção, determina regras sociais de convivência e de ética, que tanto hoje lutamos para ver aplicadas e absorvidas.
O autor do livro “O que é a Ética”, o professor Luís Montenegro Valls, ensina-nos que para um comportamento socialmente correcto o cidadão tem que não só ter confiança no Estado como “agir de tal modo que seja bom não só para mim mas também para os outros”. Quanto à confiança no Estado, “ela está directamente relacionada ao nível de organização da sociedade: os direitos e deveres do cidadão para com o Estado (e vice-versa) precisam ser respeitados. Quando há falência do Estado as pessoas deixam de agir moralmente. Cada pessoa passa a lutar pela própria sobrevivência e abre-se o caminho para a lei do salve-se quem puder”.
Felizmente para todos nós, o Estado tem-se movido na direcção inversa dessa inadiplência passada com passos determinados, tem-se constituído paulatinamente no garante da nascente democracia, tem visado e vindo a consolidar a organização da sociedade, sobretudo com o fim da guerra que a tudo isto levou. Mais do que nunca, a lei do salve-se quem puder vai sendo banida do nosso meio e a sociedade começa a reganhar formas e conteúdos onde os direitos e os deveres do cidadão são respeitados, e a questão do civismo, da moral e da ética passam a ser preocupação premente da maioria.
Só assim, nos iremos transformando de maldizentes em bendizentes, em benefício de todos, sobretudo na nossa paz interna e do nosso amor-próprio.

10/07/05


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