Das mãos do director do Semanário AGORA recebi o exemplar autografado do excelente livro "A Prece dos Mal Amados", com a incumbência de o comentar nesta página, tendo-me eu comprometido em fazê-lo na edição que antecedeu o seu lançamento, que teve lugar no dia 17/08/ 2006, sob os auspícios da Associação e Editora Chá de Caxinde. Agradeço, de todo o coração, a deferência dispensada à minha pessoa. Da minha parte, tratou-se infelizmente de uma promessa feita de ânimo leve; e só quando - após um amável telefonema do escritor Jacques dos Santos, dando-me a conhecer a temática da obra em apreço, aliás muito do meu agrado abordar, como toda a gente sabe e é verdade, - tomei consciência de que me seria inteiramente impossível honrar o compromisso, em tão curto espaço de tempo. Precisava de, pelo menos, 1-2 meses para fazer a apreciação literária que me era pedida, considerando por um lado que me encontrava em vésperas das provas ou exames de frequência e, por outro e sobretudo, porque um livro de 343 páginas, como é "A Prece dos Mal Amados" de Fragata de Morais, ainda que romance, não se analisa nem comenta "sobre o joelho". Ou seja, requer necessariamente uma prévia e pausada leitura gótica, atenta e cuidadosamente anotada, tais são a dimensão e os contornos político-filosóficos, sociológicos e sociais das teses subjacentes ao seu enredo e conteúdo. Na verdade, está-se perante questões abordadas de forma muito corajosa e frontal, em tomo da problemática da "mestiçagem ou, mais especificamente como refere na sua apreciação o Professor Doutor Carlos Venâncio – a do lugar do mestiço (ideológico) na sociedade angolana em transição". Transição, de quê e para quê? Nos perguntamos desde logo!
Todos sabemos, perfeitamente, quanto a este respeito se afastou e distanciou a política do Estado angolano independente, daquilo que seria - e ainda é - o mínimo ético ou de mera justiça, quando não foi só em 1975 e anos seguintes da guerra civil, que os mulatos/as e mestiços! deste país tiveram de entoar "preces de mal amados". Há dias, retorquiu assim um meu amigo de infância, camionista, quando numa conversa amena daquelas de "matar saudades" daqueles tempos, o informei, autocriticando-me do facto, de que estou há precisamente trinta anos sem voltar à Gabela e Porto Amboim. "Mas ir lá fazer o quê, Pinto? Do nosso tempo, já todos morreram e os descendentes, se ainda vivos, não estão lá, nem se sabe já quem são. Só te deparas com pessoas desconhecidas, que ainda por cima olham para ti como se fosses estrangeiro!... “ (Risos e gargalhadas) Vistos como estrangeiros, na sua própria tem!!! Para onde caminhamos, afinal?
Relevo: personagens principais e secundários do Romance
Nazamba, a heroína do romance, uma bonita jovem mulata, filha de pai português, de raça branca, natural da Beira Alta, comerciante radicado em Angola até 1975, e de mãe angolana, de raça negra, filha de soba grande, natural do centro-sul do país, da aldeia de Ualali; 2.2 - Nataniel, jovem médico revolucionário, formado em Cuba entre 1975 e 1990, negro, general do exército angolano, também natural de Ualali e neto do soba grande; 2.3 -Juba de Leão, octogenário soba grande de Ualali, avô paterno de Nazamba e de Nataniel; 2.4 - Balanta, uma das filhas do soba grande Juba de Leão e mãe da mulata Nazamba; 2.5 Marcelo, pai de Nazamba, comerciante branco estabelecido em Ualali, a quem Juba de Leão deu em casamento a filha Balanta, de cuja união nasceram quatro filhos mulatos, dois rapazes e duas raparigas; 2.6 - Tomás, mulato, filho de Marcelo e de Balanta, irmão mais novo de Nazamba, e general das forças militares da UNlTA, formado em Marrocos; 2.7 Comandante Pablo, general cubano, destacado em Angola em 1975 em missão revolucionária e internacionalista das forças armadas de Cuba; 2.8 - Nehone, irmão mais novo e assistente do soba grande Juba de Leão; 2.9 - Mestre Tuluka, grande adivinho e curandeiro de Ualali; 2.10 -Lucinda e Tadeu, casal amigo e compadres de Nataniel e Nazamba, residentes em Luanda; 2.11-Padre Celestino, missionário católico da Missão de Ualali; 2.12 - Natália, linda enfermeira mulata e secretária do médico Nataniel, no Hospital Militar de Luanda; e 2.13 -Samukongo, o mensageiro enviado por Nehone a Luanda, para se encontrar com Nazamba na qualidade de escolhida pelos espíritos dos antepassados e pela assembleia de anciãos de Ualali, para suceder a Juba de Leão como soba grande da região.
Estrutura da obra. Caracterização e resumo do enredo/acção
Com 343 páginas, "A Prece dos Mal Amados" compõe-se de 11 capítulos ou partes, sugestivamente bem intituladas, a saber: 1 - O início do mundo; 2. - Os sem rumo; 3 - Os que vieram pelo mar afora; 4 - O fusco do espelho; 5 - A redondeza da vida; 6 - As preces dos mal amados; 7 - O voo sinuoso dos medos; 8 - O regresso impródigo; 9 - Espelhos da alma; 10 - Lágrimas e risos; e 11 Quando o rio desagua sobre a terra.
Cada um dos capítulos ou partes, tal como aliás é hoje uma prática corrente entre os escritores modernos de literatura de ficção (e não só), abre com uma citação, um pensamento ilustre, provérbio ou adágio popular, a servir-lhe de mote ou suporte temático-literário, destacando-se entre os demais o provérbio kimbundu "Ua-mu-mona mu luanha u - mu - ijiia uê m'suku" ("A pessoa conhecida de dia, à noite não deve ser esquecida"), capítulo 5, p 129, e o pensamento de António Cardoso, que Deus tenha, "Pequena dúvida, pequeno espinho, tão de leve cravado na minha carne: Qual o caminho? Qual a estrada do meu Destino?", capítulo 11, p.305.
Enredo/Resumo
Tudo acontece entre 1975 (data da assinatura dos acordos de Alvor entre o MPLA, FNLA e UNlTA com Portugal para a descolonização de Angola) e 1992 (data da realização das primeiras eleições gerais decorrentes dos acordos de Bicesse, entre o MPLA e a UNlTA, sob a égide de Portugal e da ONU, para o fim da guerra civil). Toda a acção da narrativa tem como ponto de partida e de chegada a suposta aldeia ou povoação de Ualali, situada algures na província do Huambo ou Bié, numa zona de influência da UNlTA
Elementos míticos e sobrenaturais na literatura angolana de ficção, relevante ou redutor?
A Prece dos Mal Amados" é um romance que se embrenha com mestria no imaginário animista, lendas fantásticas, crenças e mitologias dos povos africanos em geral, onde vai buscar todo um conjunto de cenários que se confrontam hoje (século XXI) com a modernidade e com o desenvolvimento do mundo (p.p. 23, 78, 86, 180, 181,213,214,215 e 216). Neste aspecto, a sua leitura impressiona-nos profundamente quando retrata os poderes sobrenaturais do grande soba de Ualali, Juba de Leão (p.p. 20, 21 e 36), os poderes do curandeiro/adivinho Tuluka (p.p. 213, 214, 262, 263, 264, 265, 267 e 268), as bruscas transformações operadas em Nazamba por força da mediação do curandeiro e dos espíritos dos antepassados (p.p. 272,273, 277, 293, 294, 295, 296,297,298,303,304,314,315,316, 317,318,319,320,321,340,341 e 342) e os rituais da tradição africana/angolana a que ela teve de sujeitar-se para poder ser empossada como soba grande de Ualali (p.p. 309, 310, 311, 312 e 314). Pode afirmar-se, sem qualquer receio de erro nem de exagero, que "A Prece dos Mal Amados" faz ressurgir na literatura angolana de ficção – ainda que sem esse propósito e se é que em algum caso isolado não marcou presença – a coexistência ou coabitação do real e do mítico, do obscurantismo ancestral e da modernidade, do empirismo e da ciência, do atraso e do progresso. Não sei se é de continuar a incentivar uma tal tendência ou propensão da generalidade dos nossos escritores, nem se enveredando pelos caminhos do imaginário tradicional e do maravilhoso animista, não se correrá o risco de fazer retrogradar a nossa literatura, regionalizando-a ou reduzindo-a na dimensão que desejamos que ela tenha.
Com efeito, sem de forma alguma lhe retirar os grandes méritos literários a serem referidos mais adiante, jogam nesta obra um papel de grande relevo, senão mesmo decisivo, as crenças, tradições e rituais que já não se compadecem com a época em que vivemos. Pessoalmente, sou de opinião e defendo que a literatura angolana seja, cada vez mais, "universal", "aberta", "progressista", e não o contrário. Porque continuar a escrever hoje sobre coisas ou de coisas em que a humanidade desenvolvida já não acredita?
Apreciação literária e linguística
Uma particularidade, entre muitas outras, nos chama especialmente a atenção no decurso, desde logo, dos primeiros capítulos: é que está muito bem escrito em português, constituindo-se numa importante referência da literatura angolana contemporânea. Trata-se de um romance e, como tal, possuindo um narrador, temática, enredo, herói, personagens (principais, secundários e meros figurantes), um fio condutor de pensamento, princípio, meio e fim. O primeiro capítulo é, digamos, a introdução, seguindo-se-lhe a acção ou a história que se estende pelos capítulos
"A Prece dos Mal Amados" não é, seguramente, um livro qualquer ou simplesmente mais um livro, pelas questões do romance, que no caso presente tem inclusivamente um sabor a histórico. Mesmo admitindo que Nazamba seja uma pura criação do autor, não tendo existido na realidade como filha de Marcelo e de Balanta, neta de um soba do centro-sul de Angola chamado Juba de Leão, quantos mulatos/mulatas (Os Mal Amados Filhos da Cobra), como Nazamba e Tomás, não tiveram um destino trágico ou dramático idêntico, entre 1974 e 1990, pelo menos na forma brutal como terão sido chacinados ou forçados a deixar a sua terra natal (Angola) a caminho de uma qualquer diáspora, donde poderão não ter jamais regressado... "A Prece dos Mal Amados" não é, seguramente, um livro qualquer ou simplesmente mais um livro, pelas questões que inventaria (em forma de autênticas teses) – para cima de vinte – por mim contabilizadas (p.p. 49, 50, 51, 55, 59, 61, 62,63,65,81,156,212,216,220,222, 223,224,243,270,271,298 e 320) e que fazem dele um precioso acervo de material de estudo e reflexão "em tempo de g]obalização e de desterritoralizaçôes culturais na procura de uma pátria ou mátria", como escreveu o Doutor José Carlos Venâncio, "em tempo de desterritorialiiações étnico/raciais dos mulatos/ mulatas", diria eu. Mas, não se restringe apenas às questões inerentes à mestiçagem o riquíssimo conteúdo temático-literário desta obra, fulcradas sem dúvida a páginas 270, 271, 298 e 320. Há muito mais: história recente de Angola, teorias, filosofia existencial, carga política, diabolizações, realidades e utopias, tradições, costumes e linhagens, direito natural e costumeiro, simbolismo, provérbios, sonhos, críticas, preces, enfim, o cruzamento extraordinário de todo um manancial de ideias que fazem do autor de "A Prece dos Mal Amados" um homem de filosofia política e pensador profundo. Parabéns e bem-haja, pois, pelo seu valioso contributo!
Considerações finais e comentários
Porquê "A Prece dos Mal Amados"? Qual é a razão ou o sustentáculo do título dado a um dos capítulos do livro (o capítulo 6) e que, afinal, deu o nome à obra? A sua leitura atenta leva-nos a identificar aquilo que, saindo da boca da heroína do romance - desculpem-me os prezados leitores se estou errado - constitui, de facto, na verdade e ainda hoje, a prece ou súplica maior dos mulatos/mulatas de Angola, e que passo a transcrever integralmente: 1 - "Rogo a Deus que esteja vivo (o meu avô Juba de Leão) e possa falar com ele. Amaldiçoou a vida do meu pai, da filha dele e a nossa, o meu irmão não sei se vive"(p. 155); 2 - "Esta maldita guerra nunca mais acaba, só porque há um facínora que sonhou ser presidente. Há-de acabar um dia, esse monstro não poderá viver para sempre" (p. 163); 3 "Ai, Tomás, leva-me lá, já hoje, já agora (p.235); 4 - "Então não continuamos a ser filhos da cobra? Continuamos mulatos como éramos em 1975, ou agora já somos pretos... e podemos regressar?" (p. 243) 5 - "Tenho uma missão...É uma farsa, há sim racismo, racismo branco, racismo negro, racismo económico e por aí fora...
Não pretendo salvar mundo nenhum, pretendo participar na construção de uma nação mais honesta para os meus filhos (mulatos). Isso de raças é biologia e cientificamente inexistente, a raça a existir só poderá ser a humana" (p. 320); 6 - "Achas que desejo mais alguma vez na minha vida ouvir dizerem-me que tenho de me ir embora, nem saberia para onde, por ser mulata? Ou que possam vir a dizer isso aos meus filhos? Nunca!" (p.321).
Por António Pinto
Discente da Faculdade de Direito da Universidade Independente de Angola (UNIA).
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