terça-feira, 23 de junho de 2009

A PRECE DOS MAL AMADOS - IN SEMANÁRIO AGORA


Das mãos do director do Semanário AGORA recebi o exemplar autografado do excelente livro "A Prece dos Mal Ama­dos", com a incumbência de o comentar nesta página, tendo-me eu comprometido em fazê-lo na edição que antecedeu o seu lançamento, que teve lugar no dia 17/08/ 2006, sob os auspícios da Associação e Editora Chá de Caxinde. Agradeço, de todo o coração, a deferência dispensada à minha pessoa. Da minha parte, tratou-se infelizmente de uma promessa feita de ânimo leve; e só quando - após um amá­vel telefonema do escritor Jacques dos Santos, dando-me a conhecer a temática da obra em apreço, aliás muito do meu agrado abordar, como toda a gente sabe e é verdade, - tomei consciência de que me seria inteiramente impossível honrar o compromisso, em tão curto espaço de tempo. Precisava de, pelo menos, 1-2 me­ses para fazer a apreciação literária que me era pedida, considerando por um lado que me encontrava em vésperas das pro­vas ou exames de frequência e, por ou­tro e sobretudo, porque um livro de 343 páginas, como é "A Prece dos Mal Ama­dos" de Fragata de Morais, ainda que ro­mance, não se analisa nem comenta "so­bre o joelho". Ou seja, requer necessaria­mente uma prévia e pausada leitura gótica, atenta e cuidadosamente anotada, tais são a dimensão e os contornos polí­tico-filosóficos, sociológicos e sociais das teses subjacentes ao seu enredo e con­teúdo. Na verdade, está-se perante ques­tões abordadas de forma muito corajosa e frontal, em tomo da problemática da "mestiçagem ou, mais especificamente ­como refere na sua apreciação o Profes­sor Doutor Carlos Venâncio – a do lugar do mestiço (ideológico) na sociedade an­golana em transição". Transição, de quê e para quê? Nos perguntamos desde logo!

Todos sabemos, perfeitamente, quan­to a este respeito se afastou e distanciou a política do Estado angolano indepen­dente, daquilo que seria - e ainda é - o mínimo ético ou de mera justiça, quando não foi só em 1975 e anos seguintes da guerra civil, que os mulatos/as e mestiços! deste país tiveram de entoar "preces de mal amados". Há dias, retorquiu assim um meu amigo de infância, camionista, quando numa conversa amena daquelas de "matar saudades" daqueles tempos, o informei, autocriticando-me do facto, de que estou há precisamente trinta anos sem voltar à Gabela e Porto Amboim. "Mas ir lá fazer o quê, Pinto? Do nosso tempo, já todos morreram e os descendentes, se ainda vivos, não estão lá, nem se sabe já quem são. Só te deparas com pessoas des­conhecidas, que ainda por cima olham para ti como se fosses estrangeiro!... “ (Ri­sos e gargalhadas) Vistos como estran­geiros, na sua própria tem!!! Para onde caminhamos, afinal?

Relevo: personagens principais e secundários do Romance

Nazamba, a heroína do roman­ce, uma bonita jovem mulata, filha de pai português, de raça branca, natural da Beira Alta, comerciante radicado em An­gola até 1975, e de mãe angolana, de ra­ça negra, filha de soba grande, natural do centro-sul do país, da aldeia de Ualali; 2.2 - Nataniel, jovem médico revolucio­nário, formado em Cuba entre 1975 e 1990, negro, general do exército angola­no, também natural de Ualali e neto do soba grande; 2.3 -Juba de Leão, octogenário soba grande de Ualali, avô paterno de Nazamba e de Nataniel; 2.4 - Balan­ta, uma das filhas do soba grande Juba de Leão e mãe da mulata Nazamba; 2.5 ­Marcelo, pai de Nazamba, comerciante branco estabelecido em Ualali, a quem Juba de Leão deu em casamento a filha Balanta, de cuja união nasceram quatro filhos mulatos, dois rapazes e duas rapa­rigas; 2.6 - Tomás, mulato, filho de Mar­celo e de Balanta, irmão mais novo de Nazamba, e general das forças militares da UNlTA, formado em Marrocos; 2.7 ­Comandante Pablo, general cubano, des­tacado em Angola em 1975 em missão revolucionária e internacionalista das for­ças armadas de Cuba; 2.8 - Nehone, ir­mão mais novo e assistente do soba gran­de Juba de Leão; 2.9 - Mestre Tuluka, grande adivinho e curandeiro de Ualali; 2.10 -Lucinda e Tadeu, casal amigo e compadres de Nataniel e Nazamba, resi­dentes em Luanda; 2.11-Padre Celesti­no, missionário católico da Missão de Ualali; 2.12 - Natália, linda enfermeira mulata e secretária do médico Nataniel, no Hospital Militar de Luanda; e 2.13 -Samukongo, o mensageiro enviado por Nehone a Luanda, para se encontrar com Nazamba na qualidade de escolhi­da pelos espíritos dos antepassados e pela assembleia de anciãos de Ualali, pa­ra suceder a Juba de Leão como soba grande da região.

Estrutura da obra. Caracterização e resumo do enredo/acção

Com 343 páginas, "A Prece dos Mal Amados" compõe-se de 11 capítulos ou partes, sugestivamente bem intituladas, a saber: 1 - O início do mundo; 2. - Os sem rumo; 3 - Os que vieram pelo mar afora; 4 - O fusco do espelho; 5 - A re­dondeza da vida; 6 - As preces dos mal amados; 7 - O voo sinuoso dos medos; 8 - O regresso impródigo; 9 - Espelhos da alma; 10 - Lágrimas e risos; e 11 ­Quando o rio desagua sobre a terra.

Cada um dos capítulos ou partes, tal como aliás é hoje uma prática corrente entre os escritores modernos de literatura de ficção (e não só), abre com uma cita­ção, um pensamento ilustre, provérbio ou adágio popular, a servir-lhe de mote ou suporte temático-literário, destacan­do-se entre os demais o provérbio kim­bundu "Ua-mu-mona mu luanha u - mu - ijiia uê m'suku" ("A pessoa conhecida de dia, à noite não deve ser esquecida"), capítulo 5, p 129, e o pensamento de An­tónio Cardoso, que Deus tenha, "Peque­na dúvida, pequeno espinho, tão de leve cravado na minha carne: Qual o caminho? Qual a estrada do meu Destino?", capí­tulo 11, p.305.

Enredo/Resumo

Tudo acontece entre 1975 (data da assinatura dos acordos de Alvor entre o MPLA, FNLA e UNlTA com Portugal para a descolonização de Angola) e 1992 (data da realização das primeiras eleições ge­rais decorrentes dos acordos de Bicesse, entre o MPLA e a UNlTA, sob a égide de Portugal e da ONU, para o fim da guerra civil). Toda a acção da narrativa tem co­mo ponto de partida e de chegada a su­posta aldeia ou povoação de Ualali, si­tuada algures na província do Huambo ou Bié, numa zona de influência da UNl­TA

Elementos míticos e sobrenaturais na literatura angolana de ficção, relevante ou redutor?

A Prece dos Mal Amados" é um ro­mance que se embrenha com mestria no imaginário animista, lendas fantásticas, crenças e mitologias dos povos africa­nos em geral, onde vai buscar todo um conjunto de cenários que se confrontam hoje (século XXI) com a modernidade e com o desenvolvimento do mundo (p.p. 23, 78, 86, 180, 181,213,214,215 e 216). Neste aspecto, a sua leitura impressiona-nos profundamente quando retrata os poderes sobrenaturais do grande soba de Ualali, Juba de Leão (p.p. 20, 21 e 36), os poderes do curandeiro/adivinho Tuluka (p.p. 213, 214, 262, 263, 264, 265, 267 e 268), as bruscas transformações operadas em Nazamba por força da mediação do curandeiro e dos espíritos dos antepassa­dos (p.p. 272,273, 277, 293, 294, 295, 296,297,298,303,304,314,315,316, 317,318,319,320,321,340,341 e 342) e os rituais da tradição africana/angolana a que ela teve de sujeitar-se para poder ser empossada como soba grande de Ualali (p.p. 309, 310, 311, 312 e 314). Pode afirmar-se, sem qualquer receio de erro nem de exagero, que "A Prece dos Mal Amados" faz ressurgir na literatura angolana de ficção – ainda que sem esse propósito e se é que em algum caso iso­lado não marcou presença – a coexistên­cia ou coabitação do real e do mítico, do obscurantismo ancestral e da modernida­de, do empirismo e da ciência, do atraso e do progresso. Não sei se é de continuar a incentivar uma tal tendência ou propen­são da generalidade dos nossos escrito­res, nem se enveredando pelos caminhos do imaginário tradicional e do maravilho­so animista, não se correrá o risco de fa­zer retrogradar a nossa literatura, regio­nalizando-a ou reduzindo-a na dimensão que desejamos que ela tenha.

Com efeito, sem de forma alguma lhe retirar os grandes méritos literários a se­rem referidos mais adiante, jogam nesta obra um papel de grande relevo, senão mesmo decisivo, as crenças, tradições e rituais que já não se compadecem com a época em que vivemos. Pessoalmente, sou de opinião e defendo que a literatura angolana seja, cada vez mais, "universal", "aberta", "progressista", e não o contrário. Porque continuar a escrever hoje sobre coisas ou de coisas em que a humanida­de desenvolvida já não acredita?

Apreciação literária e linguística

Uma particularidade, entre muitas outras, nos chama especialmente a aten­ção no decurso, desde logo, dos primei­ros capítulos: é que está muito bem es­crito em português, constituindo-se nu­ma importante referência da literatura angolana contemporânea. Trata-se de um romance e, como tal, possuindo um nar­rador, temática, enredo, herói, persona­gens (principais, secundários e meros fi­gurantes), um fio condutor de pensamen­to, princípio, meio e fim. O primeiro ca­pítulo é, digamos, a introdução, seguindo-se-lhe a acção ou a história que se es­tende pelos capítulos 2 a 11. Como nar­rativa aberta que é, o seu desenlace ou conclusão não vem expresso pelo autor/ narrador, que os remete para o leitor. Reú­ne, por conseguinte, as principais carac­terísticas que definem a natureza do gé­nero literário narrativo/descritivo, na mo­dalidade do romance, que no caso presen­te tem inclusivamente um sabor a histó­rico.

"A Prece dos Mal Amados" não é, seguramente, um livro qualquer ou sim­plesmente mais um livro, pelas questões do romance, que no caso presen­te tem inclusivamente um sabor a histó­rico. Mesmo admitindo que Nazamba seja uma pura criação do autor, não ten­do existido na realidade como filha de Marcelo e de Balanta, neta de um soba do centro-sul de Angola chamado Juba de Leão, quantos mulatos/mulatas (Os Mal Amados Filhos da Cobra), como Nazamba e Tomás, não tiveram um des­tino trágico ou dramático idêntico, entre 1974 e 1990, pelo menos na forma bru­tal como terão sido chacinados ou força­dos a deixar a sua terra natal (Angola) a caminho de uma qualquer diáspora, donde poderão não ter jamais regressa­do... "A Prece dos Mal Amados" não é, seguramente, um livro qualquer ou sim­plesmente mais um livro, pelas questões que inventaria (em forma de autênticas teses) – para cima de vinte – por mim contabilizadas (p.p. 49, 50, 51, 55, 59, 61, 62,63,65,81,156,212,216,220,222, 223,224,243,270,271,298 e 320) e que fazem dele um precioso acervo de mate­rial de estudo e reflexão "em tempo de g]obalização e de desterritoralizaçôes culturais na procura de uma pátria ou mátria", como escreveu o Doutor José Carlos Venâncio, "em tempo de desterri­torialiiações étnico/raciais dos mulatos/ mulatas", diria eu. Mas, não se restringe apenas às questões inerentes à mestiça­gem o riquíssimo conteúdo temático-li­terário desta obra, fulcradas sem dúvida a páginas 270, 271, 298 e 320. Há muito mais: história recente de Angola, teorias, filosofia existencial, carga política, dia­bolizações, realidades e utopias, tradições, costumes e linhagens, direito natural e costumeiro, simbolismo, provérbios, so­nhos, críticas, preces, enfim, o cruzamen­to extraordinário de todo um manancial de ideias que fazem do autor de "A Prece dos Mal Amados" um homem de filoso­fia política e pensador profundo. Parabéns e bem-haja, pois, pelo seu valioso contri­buto!

Considerações finais e comentários

Porquê "A Prece dos Mal Amados"? Qual é a razão ou o sustentáculo do títu­lo dado a um dos capítulos do livro (o ca­pítulo 6) e que, afinal, deu o nome à obra? A sua leitura atenta leva-nos a identifi­car aquilo que, saindo da boca da heroí­na do romance - desculpem-me os pre­zados leitores se estou errado - constitui, de facto, na verdade e ainda hoje, a pre­ce ou súplica maior dos mulatos/mulatas de Angola, e que passo a transcrever in­tegralmente: 1 - "Rogo a Deus que este­ja vivo (o meu avô Juba de Leão) e possa falar com ele. Amaldiçoou a vida do meu pai, da filha dele e a nossa, o meu irmão não sei se vive"(p. 155); 2 - "Esta maldita guerra nunca mais acaba, só porque há um facínora que sonhou ser presidente. Há-de acabar um dia, esse monstro não poderá viver para sempre" (p. 163); 3 ­"Ai, Tomás, leva-me lá, já hoje, já agora (p.235); 4 - "Então não continuamos a ser filhos da cobra? Continuamos mula­tos como éramos em 1975, ou agora já somos pretos... e podemos regressar?" (p. 243) 5 - "Tenho uma missão...É uma farsa, há sim racismo, racismo bran­co, racismo negro, racismo económico e por aí fora...

Não pretendo salvar mun­do nenhum, pretendo participar na cons­trução de uma nação mais honesta para os meus filhos (mulatos). Isso de raças é biologia e cientificamente inexistente, a raça a existir só poderá ser a humana" (p. 320); 6 - "Achas que desejo mais al­guma vez na minha vida ouvir dizerem­-me que tenho de me ir embora, nem sa­beria para onde, por ser mulata? Ou que possam vir a dizer isso aos meus filhos? Nunca!" (p.321).

Por António Pinto

Discente da Faculdade de Direito da Universidade Independente de Angola (UNIA).

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