terça-feira, 23 de junho de 2009
MOMENTO DE ILUSÃO - CONTOS
DESALMAR
A Vuíla Sabata fugira-lhe a assustada alma.
Precisamente ás quatorze horas e vinte e cinco minutos do dia 15 Junho de 1975, quando, emaranhado na mais recôndita raiva animalesca, entre medos incompreensíveis e razões descontroláveis, esvaziou o carregador da Aka no crânio de um soldado já morto mas ainda inimigo. Coitada, aterrorizada, afugentou-se por entre fendas e buracos obscuros.
Entretanto, com a cabeça feita passador, tantos eram os buracos, o espírito do falecido, quem desfalece morte arrogante vira alma vadia, manteve-se no corpo mais cinco horas.
O que observava lá fora amedrontava-o, como é sabido, as sombras só se habituam a tal, depois dos vivos apagarem a lembrada luz que as faz vaguear, assim com elas não mais bulindo. Assim, acanhou-se, sobretudo por não ter a certeza do furo mais seguro por onde escapulir.
Acabrunhado, no seio de tanto miolo esfarelado e sentindo-se ainda matéria, não entendia por que Sabata, não obstante pertencerem a partidos políticos armados diferentes, esvaziara na cabeça de seu corpo, já inerte, todo um carregador de Aka, outrossim pontapeando-o feito louco desvairado, até se sentir exaurido. Em circunstâncias similares, teria ele feito o mesmo?
Com este ainda humano receio, não apreendendo que doravante seria mera essência desincorporada, que as abusivas balas lhe haviam tornado o material corpo descartável, o espírito do soldado outrora inimigo de Vuíla Sabata, optou por habitar enquanto fosse possível ou permitido, a moradia perversa, o esburacado crânio de que fora dono.
Todavia intuía a mudança e estranhava não se achar ambientado. Faltava ao corpo inerte a ligeireza física habitual, o reboliço das correrias pelos bairros pobres da cidade desconhecida para onde viera impor a desliberdade do seu partido armado, em relação ao outro.
Dali a umas horas estaria escuro, e seu cadáver já velado por cães vadios e esfomeados. Seria a hora do adeus mundano. Por enquanto ia-se entretendo a observar a rigidez a assenhorar-se do corpo, ao qual durante dezoito anos se colara e apegara.
Pasmado, descobriu novas perspectivas, como, por exemplo, a de ver de perto as rodas dos poucos carros que ousavam passar naquela rua, raspando-lhe o furado crânio. Porque não o socorriam? Unicamente os cães a rondá-lo, farejando, farejando e gemendo arreganhados ganidos em alimentadas esperanças de lauta ceia
Ás dezanove horas ganhou coragem, e de um pulo, saiu lesto pelo furo de bala mais cerca.
Os cachorros fugiram como se algum garoto os tivesse apedrejado uns, outros sentaram-se no alcatrão deserto a uivar, até que uma rajada curta de metralhadora os pôs em silvante debandada.
O espírito do então inimigo de Sabata, novamente assustado, subiu célere e ficou a rondar as árvores do bairro desconhecido, motivo de sua morte inesperada, até que as estrelas, sombras de perdidos antepassados, lhe anunciaram o caminho dos errantes, porque morrera fora e longe dos seus, o corpo apodrecido no alcatrão, restos do farto repasto dos cães, atirado, no dia seguinte, para um qualquer buraco e tapado a pressas nauseabundas. Estava desprendido dos vivos, já que quem mantém os espíritos em permanente amofinação, são os que deles se lembram.
Quanto a Sabata, perdeu a alma porque de repente ela sentiu-o gelado, tanto quanto a água matinal na cachoeira. Apavorada, nunca antes se vira em tal estado, comprimida com ocultos medos ancestrais incompreensíveis, anichou-se sem querer no dedo que apertava o gatilho, testemunhando e participando de todo aquele dano. No momento em que Vuíla Sabata pôs a Aka a tiracolo, para poder pontapear o falecido soldado ainda inimigo à vontade, a alma, de tão pequenina e contrita, caiu com o enorme peso da culpa bíblica para o chão, escoando pela primeira fresta do alcatrão.
Sabata sentiu-se ligeiro e etéreo. Com o pecado ora esvaecido do seu humano horizonte, tornara-se, enfim, dono absoluto da inconsciência. Doravante a abjuração principesca e fria seria sua rédea, o raciocínio o inimigo visceral, a razão, moral e a ética os vermes com que saciaria os desejos irreprimíveis da concupiscência da guerra.
Com a ilegalidade de Deus decretada por despacho oficial em gazeta da república, Vuíla Sabata, sabendo-O na clandestinidade, afiou os instintos, metamorfoseou-se no abstracto concreto e reinou senhor incontestado dos irreflexos. Tornando a enfiar um cano de fuzil pelo recto de Federico García Lorca, apregoou por tudo quanto é canto de Inkuna, “viva la muerte”.
Por essas sendas marchou, ao som dos tambores marciais, a juventude forjada para as desigualdades entre iguais. Amor sobretudo com desamor se paga, seria o moto, durante o que pareceu ser uma eternidade opaca.
Mais de duas décadas depois de Vuíla Sabata ter perdido a alma, alguns muitos ainda se indignam ao lerem no jornal diário, ao verem e ouvirem nos noticiários da televisão, que o crime, a amoralidade, o apatriotismo, tomou conta das vidas inviáveis de quase todos.
Esses, devem ser os que constantemente fustigam a esperança jamais banida, para a busca da alma de Vuíla Sabata, a fim de que seja restituída e redimida
Alma porventura agrilhoada no mais fundo de uma arca libanesa ou indiana, trancada a sete chaves com cadeado electrónico inkunino numa caixa forte suíça, após ter forçosamente penado longo e tortuoso trajecto, da fenda no alcatrão por onde escorregara.
Triste consolação de se saber que o que estava feito, afinal poderia nunca ter sido ou estado feito.
MARTINHA
A manhã, pródiga em luz e calor, aportava, não obstante, uma brisa húmida que já anunciava a vinda do cacimbo.
A praia, despida dos banhistas habituais por ser terça-feira, espreguiçava-se pela areia suja e furada por miríades de tocas de caranguejos. No verde-claro da água próxima, duas jovens banhavam-se onde havia pé. A mais velha teria uns catorze anos, a outra, de tronco nu e no qual dois bicos de chucha apenas despontavam, não poderia ter mais do que onze, talvez doze.
Serafim enterrou a estaca da sombrinha na areia e, depois de a ter aberto, estirava a toalha estampada, quando a voz o despertou.
“Amiguinho, amiguinho... vem!”
Novamente olhou à volta e não ligou. Sentado, agarrou na revista, quando percebeu que a jovem saía da água e a ele se dirigia, lesta e sorridente. Anichou-se junto a seus joelhos, e entabulou conversa, como velhos e conversados amigos.
“Amiguinho, como te chamas? Eu sou a Martinha”, disse sem esperar resposta.
Serafim sentiu-se pouco à vontade, não descortinando o interesse da garota. Incessantemente olhava ao redor, receando que o observassem feito um mais velho a engatar quatorzinhas.
“Muito bem, o que queres?”, disse seco.
“Nada, amiguinho. Não tem medo, aquela é a minha irmã, samo deslocado de Malange, e só queremo falar contigo”.
Já ouvira muitas estórias sobre crianças da rua e sabia que uma grande quantidade era nativa de Luanda e foragida de suas casas, por vários motivos, sobretudo o da fome. Conhecia ainda que muitas delas actuavam nas praias praticando pequenos furtos, ou introduzindo-se nas casas dos mais desavisados, onde conduziam depois o seu grupo de assalto para uma limpeza maior e mais determinada.
“Deslocadas de Malange, ou são mesmo dum bairro aqui de Luanda?”
“Não amiguinho, te juro samo memo de Malange, nos mataram a família e tivemo que fugir”, continuou Martinha, agora acenando à irmã para que se chegasse igualmente. “Foi a UNAVEM que nos trouxe até Luanda e agora vivemo aqui”.
Serafim olhou para a garota e tentou descortinar se o que contava era verdade. Estava um pouco espantado com o ar vivo e desenvolto da criança, mostrava um à vontade incomodativo, até porque à medida que falava, descontraída e casualmente, numa carícia sub-reptícia, que ele não percebia se intencional, ia-lhe riscando a perna com o dedo.
A irmã optou por chegar-se e sentou-se do outro lado. Já era uma mulherzinha, embora visivelmente criança. Pouco tinha que denotasse o laço de sangue, se em verdade fosse real. Mais reservada, manteve-se à margem, olhos pousados na areia.
“Esta é a minha irmã, chama-se Joaninha, é minha mais velha”.
“E quantos anos tens tu?”, quis saber Serafim.
“Eu?”, perguntou Martinha.
“Sim, tu, quantos anos tens?”
“Amiguinho, como te chamas?”, indagou Martinha, mais uma vez acariciando-lhe a perna com o dedo.
“Para que queres saber do meu nome?”, perguntou desconfiado e cauteloso.
“Para nada, tamo só a conversar. Como te chamas, amiguinho?”, insistiu.
Receando que as jovens pudessem ser uma armadilha, tornou a olhar para os lados. A praia continuava deserta, na pequena lanchonete a uns sessenta metros, duas empregadas trabalhavam e na paragem do machimbombo, umas três crianças, igualmente deslocadas, abrigavam-se do sol.
“Chamo-me Toninho”, disse, mentindo.
“Toninho, queres-me tirar o cabaço?”, perguntou com toda a naturalidade Martinha.
Serafim deu um pulo instintivo e pôs-se de pé. Não acreditando no que ouvira, olhou espantado para tudo à sua volta, como que procurando testemunhas que confirmassem que aquela criança tivesse efectivamente feito tal oferta. Durante uns tempos rondou a sombrinha até que, pelo espanto na cara das jovens, deu conta da figura ridícula que fazia e sentou-se.
“O que disseste?”, quis confirmar.
Martinha riu, riu e olhou para a irmã. Depois chegou-se outra vez a ele.
“Perguntei se o amiguinho me quer tirar o cabaço”, repetiu com a mesma naturalidade.
Serafim quedou-se calado por muito tempo. Tão absorto estava que nem notou que Martinha continuava a acariciá-lo com um dedo, pela perna, como que escrevendo.
“Se me perguntas isso é porque já o não possuis...”, disse, como que falando para si próprio. “Que idade tens então?”, indagou despertando.
“Tenho doze anos, fiz o mês passado. Olha, amiguinho, és casado?”, insistiu.
“Dizem que são de Malange, onde vivem?”
“Vivemo na Mutamba”, respondeu Joaninha, falando pela primeira vez. “Vivemo na casa dum braga, ele é que nos ajudava, mas agora nos enxotou”.
“Braga, o que é isso de braga?”, perguntou Serafim.
“Não sabe o que é braga? É assim pula como tu, branco!”, respondeu pronto Martinha, rindo a bandeiras despregadas pela ignorância de Serafim.
O riso das miúdas ajudou-o a relaxar, descontraiu-se, tentou ver porque é que um branco seria chamado de braga, e voltou à carga.
“E quem te tirou o cabaço então?”, quis saber para pôr aquela estória a limpo.
“Foram uns senhores da UNAVEM quando a gente veio de Malange. Estivémo com eles um pouco, eram assim castanho escuro, já não sei que país. Depois andamo com indiano e brasileiro, mas fugimo porque os brasileiro não prestam, não têm dinheiro. Nos levavam só e depois nos deixavam, não davam nada, só coca-cola ou cerveja. Hoje já não andamo mais com os da UNAVEM, bom memo é os pula português. Nos levam nos apartamento deles, nos mandam tomar banho, nos dão de comer e depois a gente fica lá. Se-deitamo com eles, amiguinho, nos dão biquini, sapato e outras coisas. É bem fixe... Mas amiguinho, responde só então, és casado?”
Serafim sentiu o peito crescer amotinado.
Tinha conhecimento que os contentores espalhados pela ilha de Luanda, sobretudo os que se encontravam ao fundo, do lado da baía, serviam para a prostituição infantil, todavia sempre pensara que as jovens fossem de pelo menos quinze anos, nunca de doze.
Que sociedade produzira tal fenómeno e o alimentava, desconcertantemente?
“Não, não sou casado, mas tenho uma filha que tem só um pouco mais da tua idade e o que me contas deixa-me muito preocupado”, disse Serafim, com bastante amargura.
“Amiguinho, não faz essa cara. Se vives sozinho a gente pode ficar lá contigo, limpamo a casa, fazemo a tua comida. Vamo-te tratar bem, juro!...”
“Já foram à Assistência Social, nunca ninguém vos lá levou?”
“Sim já fomo, mas ninguém nos ajuda. Querem nos mandar numas casa que a gente não sabemos, ou então ficamo só ali. É melhor aqui, os mais velho nos ajudam, temo memo um tem uma casa grande que nos leva lá, xê, quantidade de guardas!..., deve ser chefe. Mas quem nos ajuda memo é os braga. Esse da Mutamba, a gente conseguiu fazer lá dois meses, no outro dia disse podemo ir embora, nos mandou sair”, respondeu Joaninha, que se limitava a olhar, ouvir e sorrir.
“E não voltam para Malange porquê, já se pode viajar para lá?”
“Nada!... temo medo, eles ainda estão lá, a gente sabe”.
“Se quiserem eu posso vos ajudar, talvez vocês não são é nada de Malange, são aqui de Luanda e só querem andar nesta vida”.
“Nada, amiguinho, juro, somo de Malange, pergunta só na minha irmã. Viémo memo com os da UNAVEM que nos trouxerem junto com eles. Agora voltar em Malange, não queremo ainda. Mataram nossa mãe e nossos irmãos, aqui em Luanda está mais fixe”, disse Martinha.
Um grupo ruidoso de rapazes, na sua maioria de quinze ou dezasseis anos, ocupou aquele troço da praia com um desafio de futebol. Eram os lavadores de viaturas e os faz tudo do mercado cerca. Nas horas vagas, fumavam liamba escondidos nas pedras dos pontões, e dedicavam-se ao roubo nas viaturas e aos banhistas incautos. Igualmente compravam peixe ás peixeiras, para o revenderem aos estrangeiros, na estrada. Sempre se ganhava qualquer coisa para a comida ou para a liamba.
“Esse braga é daqui!”, gritou um deles, como que avisando do desforço delas.
“Vives aonde então?”, quis saber Joaninha, agora mais familiarizada.
Serafim não sabia como agir. Por um lado sentia que tinha que fazer qualquer coisa, no mínimo encaminhar as jovens, por outro, rendia-se à evidência da futilidade do acto. Eram crianças já viciadas que só com muito carinho, tempo, compreensão e amor contínuos poderiam revirar o rumo que suas vidas levava, e essas associações profissionais não existiam, a não ser a igreja. A guerra, que não era guerra, mas uma ausência da paz, o egoísmo perturbante dos que dirigiam, a acção dos que agiam na penumbra para manter a paz indefinida e o espectro da guerra nos corações, não levava a que os problemas sociais fossem resolvidos. Tudo era paliativo, remendo de suposto luxo em traje podre e irrecuperável.
“Amiguinho, vives então aonde? Deixa que a gente te ajuda, vamo cuidar bem de ti. Samo criança ainda, mas já temo coração de mulher”, voltou Martinha à carga.
“Não interessa onde vivo. Já viste em algum sítio um mais velho como eu, que pode ser teu avô, a viver com duas netas que não são netas e que pensam como vocês?...”
“Eh, deixa lá isso. Os mais velhos é que nos ajuda, e a minha irmã tem quatorze anos, ela pode então ficar contigo, eu fico só em casa para lh’ajudar”.
Serafim não soube se ria ou se zangava-se. A desenvoltura da criança, por um lado, dava-lhe vontade de continuar a conversa, jornalista que era, saber mais sobre as suas vidas, quiçá fazer um programa para a televisão sobre o drama das meninas de rua já que ninguém falava delas. Por outro, achava que mantendo o diálogo justificava a esperança das duas em encontrarem um abrigo, um apoio, um calor humano, que só seria legitimado para elas se o corpo fosse a moeda de compensação, o equilíbrio emocional no relacionamento.
“Há pouco disseste que tinham coração de mulher, sabem o que isso quer dizer?”, perguntou Serafim.
“Sabemo sim, nós já sofremo muito, mais que a nossa mãe que está morta. Samo criança, mas nossa vida é lutar, é não morrer, assim temo que aprender com o mal que nos segue sempre. Só nosso corpo é de criança, nosso sofrimento é de mulher”.
Contrita, enrolava as mãos uma na outra e foi assim que Serafim sentiu que Martinha falava a verdade. O nervosismo e a amargura envoltos no relembrar, no avivar da memória, nunca poderiam ser um jogo no consciente da criança. Por muito duro que estivesse seu coração, por muito empedernidas que estivessem suas emoções, haveria o momento, como agora, que revelaria o sangue a escorrer pela pétalas duma infância sofrida, verdadeiro e imolado.
“Olha amiguinho, os mais velhos nos abusam porque não temo onde ficar, nosso corpo tem então que ser a casa deles para nós comer e ter roupa, sapatos. Por isso temo que nos divertir e procurar um mais velho que cuida de nós, tu memo amiguinho, podes ficar com nós duas, estás sozinho. Vamo cuidar bem de ti, te cozinhar, lavar a roupa, minha irmã fica então contigo, podes dormir com ela”.
Um helicóptero da companhia petrolífera nacional sobrevoou o local, em direcção ao norte, aos campos da milionária miséria angolana.
“Minha irmã está falar bem, tem razão. O morteiro rebentou nossa casa, só nós escapamo. Memo nosso irmão caçula de um ano, só lhe encontramo um braço, o resto desapareceu, ficou tudo colado nas parede no chão. Depois, foi só fome e fugir. Foge aqui, esconde ali, alegria de viver só memo os cães é que encontravam, tanto morto pra comer. Hoje a gente quer é se divertir e encontar um mais velho que cuida de nós. Só memo um braga, os negro como nós é só para nos fazer de criada e nem nos dá nada”, ajuntou Joaninha.
“Mas o braga o que vos dá também? É tudo igual. Uns e outros só querem o vosso corpo e sobretudo porque são crianças. Vocês deviam estar é na escola, a aprender, a brincar com bonecas e não com homens...”
Ambas riram ao mesmo tempo, como se Serafim tivesse dito algo de anormal ou repreensível. Martinha deu-lhe um carinhoso soco no peito, divertida com a ignorância do braga. Este, não percebeu o riso trocista e franco das duas.
“Xê, não vives em Angola então? Escola? Boneca? Brincar? Amiguinho, nossa escola arrebentou, morreu quarenta e cinco crianças. Aprender é só memo andar na rua, a rua é que nos ensina a viver, e boneca?... Boneca anda aonde?”
Boneca anda aonde, perguntou-se a si mesmo Serafim? Caindo dos céus nas asas sibilantes dos morteiros, no morno embalar do fétido cheiro da guerra.
“Nosso coração já não aguenta boneca, brincadeira é aqui memo na água, no mar, na areia. A água, a onda é nossa brincadeira, nossa alegria, faz nos’quecer o resto. Quando temo fome, esses aí que estão a jogar com a bola é que nos dão de comer, mas depois temo que ir no contentor com eles. À noite vem a polícia, nos tira o dinheiro que ganhamo e temo também que entrar com eles. Só memo esses miúdo é que nos ajuda. Mas pra ter casa para viver, só memo com um braga”, disse Martinha com uma leveza e candura que o surpreendeu, já que sua angústia aumentava à medida que ia ouvindo o que lhe era relatado.
“Meu Deus, mas isso é mesmo verdade o que estão a contar-me?”
“O amiguinho pensa então que esta conversa é só pra t’engatar? A gente já viu que você é de cá, se estamo te pedir para viver contigo é porque você vive sozinho e nós pudemo te ajudar. Não queremo viver no contentor, levamo porrada, tem que dormir com este ou com aquele, as outras estão nos roubar. Não dá. Agora, em casa de braga, memo se é angolano, a vida é melhor e como o amiguinho não tem mulher...”
”Esqueçam isso de eu ter ou não ter mulher. Na minha casa ninguém vai viver, estão malucas?... O que posso fazer é tentar ajudar-vos, ver se consigo fazer alguma coisa, mesmo quando vocês próprias já me disseram que ninguém vos ajudou. Vou falar com o órgão que cuida da criança...”
Desataram a rir outra vez por causa da angústia de Serafim. Ou estava a gozar com elas ou então era maluco. Quem já viu alguém ajudar só assim à toa?
Retiraram-se para uma distância razoável e conferiram, entre risadas múltiplas, tendo chegado à conclusão que seria melhor deixar o braga em paz, não batia bem da bola. Estavam certas, pelo seu comportamento, que se o convencessem a deixá-las viver com ele acabariam por se arrepender. Esses bragas angolanos também são feiticeiros, e tudo nele indicava isso.
Lembravam-se ainda de ter ouvido, com espanto e maravilha, os mais velhos lá na aldeia contar como os soldados cubanos haviam engravidado os homens de Malange. E muitos desses soldados tinham ficado em Angola, quem sabe este não fosse um deles?”
“Tchau amiguinho, a gente vai já’ué?...”, acenaram de onde estavam.
Serafim olhou para elas e sentiu-se ludibriado nas intenções. Estiveram a gozar com ele sem dúvida, a fazerem correr as águas do tempo, pensou.
Encolheu os ombros e remeteu-se à leitura, com uma vaga e estranha tristeza no subconsciente
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