terça-feira, 23 de junho de 2009
INKUNA MINHA TERRA
RUMOS
Victória Pimenta tem actualmente oitenta anos, vinte e cinco dos quais vividos em maravilhadas batucadas de amor. Amor puro e refinado de electricista engenhosa dos prazeres do corpo e dos alívios da alma.
Nas últimas três décadas, auto-reformada, vendera os negócios e remetera-se à reminiscência, à contemplação, não do invivido, mas da curteza da obra a que se dedicara com empenho parceiroso de formiga.
Excepção era feita no seu aniversário, por uma elite de pais e filhos penhorados em ocasional manifestação de carinho, com farra de arromba celebrada até altas horas da madrugada. Esse testemunho advinha do gesto reformador e altruísta de Victória, que só não teve continuidade na geração dos netos, por a madrasta natureza ser exigente, indecorosa e cobradora.
Tudo começara no ano de 1939, numa cidade do litoral inkunino, Tubela. Cidade em que raro era a casa, da alta ou pequena burguesia negra, branca ou mestiça, que não tivera seus gaiatos iniciados no prazer dos prazeres, ás mãos da carinhosa Dona Victória, senhora digna e tratada com todo o respeito, não meretriz alguma que dispensasse serviços a troco de moeda ou favores outros desrespeitosos.
Por vicissitudes e incongruências da vida, especializara-se em tirar os tampos a mancebos cujos extremosos pais lhos levavam pelas mãos, a africanizada parisiense cegonha já não escorregava pelas cada vez mais afuniladas chaminés dos conhecimentos carnais dos púberes, adquiridos em nocturnas escapadelas com donzelas duvidadas. Também, por religiosamente acreditarem que, sem prescrita alternativa, a masturbação constante, remeteria os danados rebentos para o remidor fogo eterno, ou , pior ainda, os tornaria inapelavelmente tísicos e manetas.
Em 1936, com vinte risonhas primaveras, Victória Pimenta conheceu Arnaldo Lima, galante e bem falado guarda-livros duma próspera firma de muitos secos e mais molhados. Arnaldo, ou melhor, Arnaldinho, português que chegara a Inkuna uns cinco anos antes, fugindo ás inquiridoras navalhas de três maridos cujas testas ornamentadas pesavam sobremaneira, na lusa metrópole. Como tinha parentes nesta pequena cidade das Áfricas, para lá se dirigiu.
Conheceu Victória, namoraram ás escondidas durante dois anos, aos dezanove convenceu-a que a hora de comprovar o seu amor chegara. Casaram-se finalmente aos vinte, quando a jovem anunciou que se o não fizessem, apregoaria aos quatro ventos que tinha sido indevidamente abusada na sua inocência e escaldante boa fé. Arnaldinho, dando conta da vida a andar caranguejadamente, concluiu que lhe seria muito mais fácil e proveitoso esposar-se.
O pai dela era próspero comerciante, folgado. O futuro emprego estava automaticamente garantido, talvez mesmo uma sociedade de interesses futuros, sem falar na casa para viverem.
Para os momentos da boémia inveterada e enquistada, as aborrecedoras brancas dos afamados bairros da capital portuguesa, substituí-las-ia pelas lustrosas negras da região e isto sem preocupação de ornamentar a testa de ninguém.
Há muito que aprendera que uma multa resolvia os aparentemente insolúveis problemas sociais dos bons nativos. Por tradição, cornos e corneados era uma coisa que não existia em África. Isso era invenção dos capados dos padres e desses franco-mações que não entendiam nada do relacionamento entre raças e dos valores próprios da terra, afirmava de bom tom.
Quando lhe saiu, voluntariamente, das mãos o primeiro cabrito e uns tostões como compensação da desfeita ao desfeiteado, teve a plena certeza que África era sua terra natal e seus habitantes seus irmãos. Gente pacífica e compreensiva, nada de navalhas e correrias loucas com fitos de o deixar exangue!
Victória não soubera resistir à lábia do português. Gradualmente foi achando o homem engraçado, deixou-se seduzir pelos galanteios baratos mas viscosos, e aos dezoito anos rendeu-se, porém ainda casta, à paixão. Seus encontros eram fugidios e curtos, o tempo suficiente para troca de duas palavras babosas, um olhar saturado de labaredas de intenções pecaminosas, e logo o coração a disparar em furiosa cavalgada deserto afora já que os olhares do malandro carregavam toda a experiência dos bairros afamados de todas as colinas da terra onde nascera.
Como poderia uma mestiça donzela, de pequena cidade provinciana, resistir incólume a tal provação? Já incorria em transgressão grave e faltosa ao encontrar-se com Arnaldinho no armazém da loja do pai, por trás dos sacos de milho. Mas como se sabe, o coração tem razões que só dele são, e assim, ao fim de quase um ano de muitos beijos sôfregos, esfreganços rebolados, apalpões propositadamente impenitentes e promessas avassaladoras, Victória entregou-se sôfrega ao madraço. Em cima de três sacos de farelo, perante a vigia de varias ratazanas que, das vigas do armazém, curiosamente os observavam.
Semanas depois, começou a preocupar-se como chegar ao anúncio familiar. Aliás o burgo mexericava sobre os desaparecimentos ocasionais e repentinos do guarda-livros, que tinha fama de putanheiro, malandro, estouvado, rabo se saia, enfim, adjectivos não faltavam para qualificar a vida que levava no burgo.
Mas quem escuta um coração apaixonado, sobretudo se de mulher?
O drama seria os pais, certamente por um lado a desejariam ver casada com um branco. Mestiços que eram, almejariam melhorar a raça, como se dizia então, todavia, por outro, o que se cochichava de Arnaldinho deixava muito a desejar para se lhe entregar pacificamente a filha.
Os meses foram passando e Victória pressentiu que Arnaldinho se tornava obviamente escuso. Após a desfloração, aparecera uma só vez, sem aqueles olhares abrasadores e invocando receio de serem descobertos. Ela, sedenta da memória anterior, bem o puxou para os sacos de milho, porém em vão, o saciado biltre resistiu e solicitou pudor e compostura. Safando-se das garras ardentes da jovem, pulou porta fora dizendo que depois combinariam o próximo encontro.
Escusado será dizer que as olheiras de Victória aumentaram e o seu estado macambúzio levou a mãe, D. Firmina, a falar com a filha. Com poucos meses para completar vinte, em torrentes de vergonha que produziram cataratas de lágrimas, abriu seu coração à progenitora e relatou a odisseia tim-tim por tim-tim. Só não falou das ratazanas porque as não vira.
D. Firmina, que há muito desconfiava das manias e desmodos ocasionais da filha, todavia nunca relacionado com Arnaldinho, manteve-se calma e aconselhou-a a convocar o patife para um encontro.
Depois que o encostasse à parede.
Mesmo não estando, afirmar, em copioso choro, que estava grávida de quatro meses e que ele ou declarava suas intenções mais honestas ao senhor seu pai, e casar-se-iam de véu, grinalda e flor de laranjeira, ou denunciá-lo-ia publicamente que a desvirginara com falsas promessas e pretensões, e que a abandonara abusada da sua honra e castidade O caminho para a igreja seria, deste modo, percorrido sob a mira duma caçadeira, senão várias, pela fama do marmanjo.
Perante argumento tão convincente, Arnaldinho, homem fraco de oposições, mas visionário, anuiu. Voltar para Portugal é que ele não podia... num cair cinzento de tarde, declarou seu amor por Victória, face a um estupefacto e despreparado pai e uma mãe concordante. Informou o senhor Abelardo que não ousara antes insinuar seus sentimentos para com o anjo que lhe iluminara a vida de pecador, porque esperava primeiro formar fortuna. Trabalhava para o comerciante Antunes com fito de amealhar uns tostões que permitissem abrir seu próprio negócio. Já estabelecera contactos com as caravanas que se deslocavam para o interior, a fim de entrar no comércio da borracha, da cera e do mel, talvez mesmo do marfim. Não era homem que se contentava com pouco, ou desejar viver ás custas de outro, e para levar Victória da casa paterna, seria para lhe dar melhor vida, nunca antes. Mas agora, ah!, as torrentes liberadas pelo amor pio que dedicava a Victória, eram tais que soçobrara e seus intentos originais de riqueza não eram mais do que mera ilusão a desnavegar em mares perdidos e vastos.
Quem não ficou muito impressionado foi o futuro sogro que, após a oratória republicana do quase genro, e ouvir a filha babada e a mulher apressada, consentiu. Mas ante a má fama do finório, impunha incondicional condição que este abandonasse o comércio do Antunes e ficasse a trabalhar e viver com eles. Sem alternativas, testemunhado pelos olhares felizes das mulheres, apertou a mão do sogro e abraçou-o efusivamente. Estampou dois sonoros beijos nas faces de D. Firmina, a quem chamou mãe, e saiu apressado, sendo conduzido à porta por Victória, braço no braço do sedutor enganado.
Claro está que quando foi revelado o noivado, as línguas viperinas da cidade logo juntaram dois e dois e adivinharam qual teria sido o passatempo de Arnaldinho naquelas desaparições metódicas e repentinas, sobretudo por que o casamento fora proclamado para breve.
Cinco meses depois, a aliança consumou-se, Arnaldinho sentindo-se tinhoso, mas sempre na desportiva. Conhecia bem as regras do jogo e nunca reclamara da desaparecida barriga da noiva. A população da pequena praça compareceu em peso, Abelardo Pimenta era um comerciante antigo e respeitado. Victória, toda de branco em vestido imponente de cauda de três metros arrepanhada pelas afilhadas Betinha e Finura, ambas de doze anos, trajadas cor-de-rosa, Foi o sucesso e a inveja das solteironas encalhadas. Arnaldinho, cabelos rebocados de brilhantina, igualmente trajado de branco e de sapatos a duas cores, castanho e branco, ostentava um enorme cravo encarnado na lapela, talvez monumento tauromáquico em memória dos muitos enchifrados que deixou na sua querida e distante Lisboa. Como concessão, raspara as suíças marca registada de sempre, o velho Abelardo impusera o peso e respeito de futuro pai e sócio maioritário.
A cerimónia religiosa foi longa, o padre, que já antes bebera à saúde dos noivos e familiares, que não eram poucos, em voz semi-pastosa, elaborou eloquente discurso nupcial, no qual, por entremeio, fez descer todas as bênçãos do mundo sobre a cabeça dos nubentes. Da pequena igreja, a comitiva partiu para a casa de Abelardo e Firmina, por volta das doze da manhã, e a festança começou. Para acabar dois dias mais tarde, já com Victória oficialmente nos braços de Arnaldinho, rumo a Katola, para um mês de lua-de-mel, oferta parental e da recentemente inaugurada casa Abelardo e Arnaldo Limitada.
Durante um ano Victória foi verdadeiramente feliz. Com uma estreita vigilância, apoiada e dirigida pela mãe, reduziu o campo de possível acção extraconjugal de Arnaldinho a zero. O homem parecia reformado e contente com a situação.
De facto, contente estava, reformado não.
O bem torneado corpo de Victória, os seus vinte e um roliços anos bem como a flamejante
consumidora inocência provinciana em questões de alcova, iam mantendo o malandrim com o moral elevado, feito garanhão em permanente cio. Os pais, envergonhados pelos suspiros e gemidos da filha noite afora, mandaram edificar uns anexos amplos nos fundos do quintalejo e para lá transferiram o arrulhante casal de pombos.
Mal sabiam que, ao alforriá-lo da casa grande, reabririam os portões do arrojo ao genro.
Sem ninguém dar por ela, Betinha e Finura iam a caminho dos quatorze, meias mulheres, sobretudo Finura, traseiro farto e arredondado revelando as noites profundas de África, busto montanhoso por onde escorriam volúpias de chovidas promessas, mais parecia ter dezasseis. Igualmente sem ninguém dar por ela, o fadista começou a olhar para a garota de maneira mais acintosa e a fazer contas de cabeça. que tiveram como resultado, oito meses mais tarde, a prova real e dos três fora, em rendição incondicional ao tratante, numa tarde em que Victória fôra a casa da modista.
O caso durou quatro viscosos meses até os dois serem apanhados, na cama do casal, pela própria Victória, que havia esquecido o tecido de um outro vestido em confecção. A coitada, olhos esbugalhados e engasgada ao rubro na patifaria do velhaco, não ousou crer, e desmaiou num surdo “Ai minha mãe”.
Finura, acreditando a madrinha morta, aos gritos, abalou porta fora toda nua, indo-se afogar no rio. O magarefe, foi corrido da cidade a tiros de caçadeira, com o Intendente e um grupo de cipaios atrás do velho Abelardo, para que este não desgraçasse, mais, a vida da família. Conseguiram desarmar e acalmá-lo, prometendo que Arnaldinho seria trazido a justiça, levasse o tempo que levasse.
Efectivamente, meses mais tarde, é devolvido à pequena cidade pela polícia de Katola, e julgado, tendo sido condenado a três anos de cadeia.
Victória, que durante o julgamento jurara vingança, via-se que estava alterada, não era a mesma pessoa. Perante todos, anunciou que a partir da data do seu vigésimo segundo aniversário, para mais ou menos breve, iria ser a fada benfazeja dos jovens virgens do burgo. Deixai vir a mim os pequeninos, anunciava risonha. Que quando assim o desejassem, os papás que lhe levassem lá os catraios, que ela se encarregaria de os devolver ministrados nos becos e caminhos do amor. Tivera bom mestre.
Foi uma comoção pela cidade, o velho Abelardo e D. Firmina julgaram a filha louca, levaram-na a Katola para consultas médicas, que incluíram ainda, pelo sim e pelo não, famosos tululas quer de Katola quer lá de Tubela, mais tarde.
Todavia nada demoveu Victória, vozes internas desarrumavam sua cabeça, quarto por quarto, vassourando que amor com igual amor se consome. O homem fizera, chegara a vez da mulher, é na cegueira dos subterrâneos que a toupeira caminha sua vida e a minhoca enrola suas comidas na terra para a fertilizar.
De regresso abandonou o lar paterno e arranjou casa modesta na periferia.
É evidente que ninguém acreditou no que Victória dissera, sabiam que o seu desgosto era profundo e que, com o tempo, o coração sararia e tudo voltaria ao normal. Não houve, pois, pai que ousasse levar a oferta a sério. Mas quando, ao fim de um ano o velho Abelardo Pimenta morreu de desgosto, logo seguido de D. Firmina, a dádiva tornou-se uma tentação para os jovens adolescentes que, à revelia do consentimento paterno, puseram à prova a oferta da fada do amor, no que foram bem sucedidos.
Victória, como filha única, herdou o comércio dos pais, regressou a casa, colocou gerente à frente dos negócios e, nos amplos anexos, agora reformados para não lembrarem mais a imagem do maldito, deu aso ao que o seu coração de mulher lhe ditava. Pelos vinte e cinco anos seguintes, em altruísmo digno de registo, recebeu os jovens burgueses da cidade, muitos vindos pelas mãos dos pais, para a iniciação carnal.
A cidade cresceu, é hoje urbe importante de província igualmente importante e para muitos e muitos, Victória não só é mitologia. É a pátria agradecida.
Continua viva, sem remorsos de nada e querida de todos. Mesmo dos que não a conhecem, porque sabem que o que fez foi por despeito a um grande amor, entregue e dedicado a um finório, e ainda que o biltre não o mereça, o que está feito está feito.
Etiquetas:
MENÇÃO HONROSA PRÉMIO SONANGOL DE LITERATURA
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Uma grande historia, muita imaginaçao, valeu.
ResponderEliminar