terça-feira, 11 de agosto de 2009

Centenário do nascimento de Óscar Ribas


CONSERVAÇÃO DE MEMÓRIAS

A obra literária de Óscar Ribas, como tradição nacional.

Foi-me solicitado pelo Ministério da Cultura que apresentasse uma comunicação sob o tema “Conservação de Memórias – a obra literária de Óscar Ribas, como tradição nacional, o que me colocou enormes dificuldades por razões de força maior, no tempo que me iria permitir elaborar um trabalho mais condigno deste magno evento. Impossível de não dar atendimento ao amável convite que me fora endereçado, optei por uma trabalho mais ligeiro sobre a obra deste grande intelectual, considerado com toda a justiça e justeza o precursor ou o fundador da ficção literária moderna angolana,
Óscar Ribas nasceu em Luanda a 17 de Agosto de 1909, filho de um português nativo da Guarda, Arnaldo Gonçalves Ribas e de Maria da Conceição Bento Faria, natural de Luanda, que, como escreveu Luís Kandjimbo, “era o protótipo das senhoras africanas do outro tempo, mantendo vivas as fontes originais da sua própria sabedoria”. Aliás, a influência da figura mãe foi sempre marcante na vida do escritor.
Fez os estudos primários e secundários em Luanda e, após uma estada em Portugal, regressou a Angola, tendo-se empregado na Direcção dos Serviços de Fazenda e Contabilidade. Foi todavia, em Benguela onde se revelam os primeiros sinais de uma cegueira aos 22 anos, e que aos 36 se consumou em definitiva.
Não obstante, escreveu ao longo dos anos, com ajuda de familiares, sobretudo de um irmão, para quem ditava.
Poder-se-á estabelecer o início da sua fase de escritor com as duas novelas publicadas em 1927 e em 1929, “Nuvens que passam”, e “Resgate de uma falta”, nomeadamente. Seguiram-se “Flores e Espinhos” em 1948, “Uanga” em 1950 e “Ecos da Minha Terra” em 1952.
Será, a partir desta década, que o escritor revela a sua veia para os diversos aspectos da literatura oral das populações da área de Luanda, consolidada numa vasta obra da qual emergem “Ilundu – Espíritos e Ritos Angolanos (1958)”; “Missosso”, obra de três volumes, (1961, 1962, 1964)”; “Alimentação Regional Angolana (1965)”. “Izomba – Associativismo e Recreio (1965)”; “Sunguilando – Contos Tradicionais Angolanos (1967)”; “Kilandukilu – Contos e Instantâneos (1973)”; “Tudo isto aconteceu – Romance autobiográfico (1975)”; “Cultuando as Musas – Poesia (1992)” e “Dicionário de Regionalismos Angolanos”.
Óscar Ribas foi distinguido com vários prémios e títulos honoríficos, o último em 2000, o Prémio Nacional de Literatura e Artes de Angola.
Foi pois no contexto do quotidiano da vida africana urbana, sobretudo a partir da década de 50, que se revela como o colector laborioso dos temas ligados à literatura oral africana, à mística, à religião tradicional e à filosofia das pessoas da área de Luanda.
É nesta época que vê merecidamente aumentada a sua reputação, com a publicação dos romances “Uanga (Feitiço), por si chamado de folclórico, e de “Ecos da Minha Terra”, trabalhos literários que, com o registo de usos e costumes, contribuíram de maneira indelével para a etnografia angolana.
Quando o escritor afirma que “Uanga” é um romance folclórico, (…) “quis declarar que ele era feito a partir dessa observação, desse estudo, dessa vivência. Por isso folclore e romanesco puderam fundir-se e puderam resultar neste estranho documento que é “Uanga”, por certo uma das obras mais válidas – literária, artística e sociologicamente – da cultura angolana dos nossos dias, a dar continuidade a um trabalho de documentação que a antecedeu”. (1)
Pesquisador infatigável das várias manifestações da psicologia das populações negras, Óscar Ribas sempre soube que a memória viva dos povos africanos reside principalmente nos mais velhos das sociedades tradicionais, já que são eles os seus depositários, ou seja, os fieis guardadores e transmissores das tradições milenares, estabelecendo assim as pontes entre o passado e o presente.
Em “Uanga”, publicado em 1951, Óscar Ribas remete-nos para os fins do Século XIX em Luanda, num trama em que a vida diária dos luandenses da época é ricamente traduzida.
Neste seu romance, o escritor revela-nos o tema do ressentimento e da vingança, onde o amor de Joaquim por Catarina é ameaçado por António Sebastião, ambaquista de artes e ofícios que, pelo seu estatuto social, se vem a sentir ofendido quando instado a explicar-se perante todos, já que tinha mandado chorar as pessoas ao lhe ser solicitado para ler uma carta não sabendo ele, afinal, ler. Despeitado e rancoroso, usa as crendices e o feitiço para pôr cobro a esse amor e relação.
Numa entrevista concedida a Luís Kandjimbo, na TPA, no programa “Leituras”, em 2000, Óscar Ribas ao referir-se a Catarina, diz ter buscado o padrão virtuoso da mesma em sua própria mãe, Dona Maria da Conceição Bento Faria.
“A Catarina, que é uma das principais protagonistas, eu fui mais ou menos pela minha mãe, tem as características da minha mãe, a Catarina. E fui obrigado, vá, permita-me esta expressão, a matá-la, enfim, quando leio isso vêm-me as lágrimas aos olhos, só para poder depois descrever as práticas resultantes de um falecimento”. Fim de citação.
Não deixa de ser comovente, neste caso particular, sentir que o escritor tem que sacrificar sua heroína a fim de que, como etnólogo, o valor descritivo de um falecimento tradicional sirva de referência grafada para o futuro.
Um outro protagonista, é o ambaquista António Sebastião. Para as novas gerações, impõe-se certamente a definição de ambaquista, o que fazemos pelo punho do próprio Óscar Ribas:
“O ambaquista… pela superioridade intelectual, que o impõe à consideração de seus irmãos de raça, é preferido pelos sobas para o cargo de conselheiro. Então ele, sempre munido de papel, caneta e tinta (antigamente supridos com folha seca de bananeira, pedaço aguçado de madeira e infusão de folhas de tomateiro), redige as petições às autoridades superiores, no que é useiro e vezeiro. Para melhor se definir a astúcia de que é dotado, basta dizer-se que, certa vez, desejando um grupo de ambaquistas endereçar uma representação ao chefe da Colónia contra determinada autoridade, assinaram em círculo, isto para evitar que a responsabilidade recaísse ao primeiro!!!” Um dos exemplos mais acabados de ambaquismo e ambaquista, encontramos nos discursos do famoso Mestre Tamoda, criado genialmente por Uahenga Xitu..
Voltando à entrevista conduzida por Luís Kandjimbo, Óscar Ribas quando indagado por este sobre o ambaquista António Sebastião, que recorrera
ao feitiço por ter sido humilhado e transformado em motivo de chacota e de zombaria ao ser descoberto que afinal não sabia ler, o responde: “(…) do António Sebastião, sim. Bem, a explicação que deu… chorem… ele quando disse “chorem” foi, como mais tarde ele explicou, ele sendo um homem de prestígio lá na sua terra, no seu meio, homem com dinheiro, com propriedades e não sabe ler. “Chorem”, chorem por eu não saber ler”. E claro isso foi interpretado de maneira diferente. A Catarina, quando ouviu “chorem, supôs que o homem, o Joaquim tivesse morrido”.
É em Luanda que decorre toda a trama desta obra que… “nos relata as vicissitudes sentimentais de um negro e de uma negra que se amam, se casam, se vêem separados pelas intrigas do meio, se vêem novamente juntos, até à morte de Catarina após um parto a que não são estranhos os sortilégios, os ódios e as rivalidades… A história de Joaquim e de Catarina é uma história só na aparência igual ás outras histórias de amor”. (2)
Com uma preocupação permanente voltada para a recolta etnológica, Óscar Ribas arrecada uma vasta e variada gama de contos tradicionais, provérbios, adivinhas, canções, receitas gastronómicas, etc., o que nos lega um extenso monumento patrimonial e espiritual.
Em “Ecos da Minha Terra – Dramas Angolanos”, outra obra de referência, primeiramente publicada em 1952, o autor alerta o seu público que “os contos, ou antes, dramas, que enfeixam esta obra, não reproduzem produto de imaginação, mas episódios transportados de vida real. Portanto, além de recreativos, sobrepõem-se pela matéria folclórica que proporcionam aos estudiosos”.
Nesta obra, onde sobressai o conto “A Praga”, distinguido em 1952 com o Prémio Margaret Wrong do “International Committee on Christian Literature for Africa”, desenrola-se perante nós uma maravilhosa representação dos referidos dramas sociais, aqueles vividas por gente humana, que ama, que sofre, que vive no dia a dia as contingências da existência.
Num belo conto, a ganância, a quebra às regras de convivência social acaba por ser punida, quando Musoko, ao encontrar duzentos e dez escudos, uma pequena fortuna, não os devolve à legítima dona que, prontamente alarmara o bairro com o seu clamor:
- Quem apanhou duzentos e dez escudos? Quem os apanhou que os entregue, fui eu que perdi! Digam! Quem apanhou esse dinheiro? Vocês que trabalham, que conhecem o sacrifício dos pobres, não escondam o que procuro! São duzentos e dez escudos que perdi! Quem os apanhou? Dou o olho de ver (Alvíssaras)! Quem tem o coração duro, dura será a sepultura! Ouçam, eu bem grito para todos!”
Quando Musoko, atenta ao chorar da vizinha, Donana, e à praga nele contido, menciona que vai devolver o dinheiro, de imediato a sua tia-avó se opõe:
- Qual entregar! Roubaste o dinheiro? Não o apanhaste na rua? Portanto, é teu! Para que ter medo?
Entretanto, “o aviso já passado por toda a cidade, agora percorre novamente os mesmos lugares, não em dolência de queixume. Mas em aspereza de revoltada ameaça:
-Gritei pelo dinheiro que perdi, ninguém só abriu o seu coração! Ouçam, ouçam bem, não digam amanhã que sou feiticeira: vou cubar (Amaldiçoar)! Estão a ouvir? Vou cubar! Vejam lá, não se queixem depois!... Quem levar esse morto, morre também! Quem lhe cortar o cabelo, morre também! Quem lhe cortar as unhas, morre também!
Mesmo assim, Musoko mais uma vez se submete às tias mais velhas que dizem que a vizinha Donana pode ir cubar à vontade, isso era só conversa para meter medo. Todavia Donana desloca-se a terras do Ambriz. “Aí, segundo a fama, acharia quimbandas abalizados na arte do cubamento. Pelos jimbambi (Sortilégio exercido pela acção da tempestade), era num ápice que se despachava o patife. Ai, era, era”.
Não é desprevenido que o leitor será apanhado quanto ao desenlace natural do drama. Adivinha-se a caminho, a imagem tradicional da morte, começando sua colheita com Musoko, para depois arrebatar Donana, e não mais parar a ceifa pródiga, recolhendo aparentemente de maneira inexplicável e indiscriminada homens e mulheres por Luanda fora, no cumprimento da praga rogada. “No fatalismo do esconjuro, inexoravelmente se cumpria a vingança: “Quem lavar este morto, morre também! Quem lhe cortar as unhas, morre também! Quem lhe cortar o cabelo, morre também! Quem o vestir, morre também! Quem for ao seu óbito, morre também! Morre também quem disser aiué!”
Face ao imprevisto e ao desconhecido, os médicos contrapunham ser uma epidemia, uma maleita qualquer que a todos dizimava indistintamente. Mas o povo não acreditava, sabia que a razão da mortandade se encontrava nos jimbambi, nesses sortilégios desencadeados através das fúrias da natureza nos ventos, nas chuvas e nos raios que tudo e todos reduzem numa furor sem precedentes.
Diz-nos Óscar Ribas, que o episódio que originou o conto lhe foi relatado, em sua vivência geral, por Rita Manuel e pormenorizado, em certos passos, por outras informantes suas.
Muito mais poderia aqui ser dito sobre Óscar Ribas e sua tão vasta, quanto importante obra, que emerge cada dia mais como padrão imorredouro da nossa memória colectiva, mas o tempo nunca seria em demasia, sempre faltaria.
Não tivesse sido ele, não se teria hoje este património cultural, espiritual e humano incomensurável. Bem-haja o dia em que nasceu.
Muito Obrigado

(1 e 2) Dr. Amândio César, em Diário Popular (Lisboa, 07-06-1970)

1 comentário:

  1. Realmente é um conteúdo que veio estabilizar as minhas pesquisas concernete a vida e a obra deste que é o tão frequente colaborador da literatura Angolana de modos a incentivar os mais novos o amor pela leitura !..

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