domingo, 2 de agosto de 2009

A PRECE DOS MAL AMADOS - CAPÍTULO IV


CAPÍTULO QUATRO
O FUSCO DO ESPELHO

Vá, Gravoche. Rouba uma estrela do céu.
Quando o sol fechar os olhos, tu roubas a mais bela.

(António de Almeida Santos)

Eram seis e meia da manhã quando despertou do sono meio dormido, ao som da voz da hospedeira a anunciar que em breve momentos aterrariam no Aeroporto Internacional 4 de Fevereiro, em Luanda. Atirou com a manta para o chão e, sem levar as costas da cadeira à vertical, olhou pela janela, ansiosa. A companheira de viagem, notou o nervosismo de Nazamba e sorriu. Apresentara-se como Lucinda do Nascimento ao chocarem uma com a outra no free shop do aeroporto de Lisboa e pronto entabularam conversa, numa empatia mútua. Lucinda insistira que se o avião da nacional fosse vazio, solicitaria permissão ao comandante, seu primo, para que viesse para a primeira classe fazer-lhe companhia.
- Tem medo da aterrissagem?
- Não, é que já não venho a Angola há muito tempo.
- Há muitos anos?
- Sim, há quinze. Saí daqui miúda, em 75.
- Então vai encontrar um outro país, espero que esteja preparada.
Estar preparada? Claro que estou, seja o que Deus quiser...
Não fazia a mínima ideia do que iria encontrar, o que ouvira e vira nas televisões não servia de padrão, sabia que a informação portuguesa sempre fora contra os donos do poder em Angola, a pérola da coroa ainda não tinha sido tragada, infelizmente tanto de um lado quanto do outro, por razões certamente diferentes mas que concorriam para esse relacionamento de amor-ódio mútuo. Vira os angolanos a regalarem-se com o bom bacalhau, como se se deleitassem com um prato de funji, observara-os, curiosa, a verterem o tinto para os buchos sempre ressequidos, tanto o das tascas quanto o do mais caro nos restaurantes. Vira-os, muitos anos depois, afirmarem serem do Benfica, do Sporting ou de qualquer outro clube, com tanta paixão quanta a dos portugueses, que não faziam a mínima ideia do nome de um único clube angolano.
Preparada, claro que tinha que estar, só que não sabia como, não era um penteado que se produzia diante um espelho, risco ao lado, ao centro ou à esquerda, cabelo curto ou à afro. Pensara que sim, estava preparada para o que desse e viesse, agora mal se controlava, sentia vontade de vomitar, tão aflita se via.
Tenho que ser forte, tenho que ser forte!
- É que não sei se está efectivamente alguém à minha espera.
- Não tem família? – perguntou espantada Lucinda.
- A minha mãe vive no interior e nem sabe que estou de regresso, nunca mais nos contactámos, perdemo-nos uma da outra, com a guerra. Espero que o meu irmão esteja no aeroporto e que me reconheça, eu que nem dele me lembro... – disse a meia-verdade.
- E se não estiver, o que vai fazer?
- Tenho uns dois telefones de amigos de amigos meus em Portugal, estão avisados. Assim que desembarcar, telefono-lhes, pois não conheço Luanda
Lucinda riu e afagou-lhe a mão para a tranquilizar.
Coitada, pensa que vai encontrar telefones a funcionar no aeroporto, ou táxis.
- Deixe lá, não se preocupe. Se não tiver ninguém à sua espera vem comigo e depois logo se verá. Temos quartos suficientes em casa, poderá utilizar um deles – disse, sem arrogância.
Nazamba olhou para ela e sentiu-se grata, afinal a hospitalidade da sua terra ainda existia.
Lembrava-se de como os estranhos eram recebidos na casa paterna e tinha uma vaga mas grata recordação dos caixeiros viajantes, homens de carrinhas carregadas de bugiganga diversa, tecidos, e sabe-se lá mais o quê, sempre faladores, sempre bons acompanhantes para o lazer e o beber. Perante olhares atónitos e de expectativa, sobretudo os das mulheres, não só atiravam para cima do tampo do balcão das lojas as quinquilharias e os tecidos garridos, os fatos de material duvidoso que só mesmo o isolamento do mato fazia comprar, como igualmente desembrulhavam todas as notícias de outros lugares, de outras gentes, e transcreviam cena por cena os filmes que haviam visto quando passavam em locais a que chegava o cinema ambulante. Era gente que remetia ocasionalmente os matuenses para um outro mundo, o da ilusão, o do fantástico, o dos sonhos onde viagens inconcebíveis acabavam por ter lugar logo ali e então, ou no recôndito dos lençóis à hora que precedia o adormecer, com o pensamento em divagações de aventura e portento.
- Não quero dar maçada alguma. Se não estiver ninguém à minha espera, telefono para me virem apanhar.
- Não faz a mínima ideia como Angola se encontra. Já disse, vem connosco e depois logo se verá. Saiu daqui criança e volta quinze anos depois, não senhora, não a deixaria aqui sozinha.
- Mas o seu marido, a sua família?...
- Não se preocupe com isso, o meu marido é boa pessoa... estamos de acordo?
- Olhe D. Lucinda, este gesto nunca lho poderei agradecer, não sabe o que representa para mim.
- Posso imaginar, esta guerra tem sido um drama para todos nós. Vai ficar lá em casa até encontrar a sua família, depois vemos isso com mais calma, agora prepare-se que daqui a pouco estamos em terra.
Nazamba sentiu-se falha de palavras. Considerou bom augúrio ter recebido esta prova de humanidade. Achou que os desígnios da sorte indicavam os rumos que sua vida levaria, depois dos longos anos de afastamento. Pela primeira vez em muitos anos, teve vontade de chorar, o que achou ser bom sinal, a flor há muito murcha reganhava a seiva original e dava mostras de quer desabrochar. Implorou a Deus que assim fosse, que lhe desse a almejada paz e o reencontro do seu eu abandonado na aldeia do avô há séculos, assim lhe parecia.
- O meu marido é oficial superior das forças armadas e médico, ainda não lhe tinha dito – disse Lucinda.
- É uma profissão muito nobre, não como eu, que tirei direito comercial só para ficar rica – disse Nazamba, rindo.
- Bem vai precisar, sobretudo se se encontrar sozinha. Já tem trabalho?
- Creio que sim, fiz uns contactos em Lisboa com uma companhia petrolífera americana, implantada aqui em Angola.
- Aterramos! Agora vamos passar outras duas horas à espera da bagagem.
- Duas horas? A D. Lucinda deve estar a brincar comigo...
- Olhe Nazamba, vamos chegar a um acordo, esse D. Lucinda faz-me sentir uma pessoa muito mais velha e afinal somos quase da mesma idade...
- Mas não posso tratá-la por Lucinda. – disse, com sinceridade.
- Pode sim, chama-me Lucinda e eu chamo-a Nazamba, não se fala mais nisso.
Nazamba olhou pela janela e viu um amontoado de casas que se estendia pela rede que delimitava o aeroporto. Não se lembrava se elas já lá estavam quando partira, em 1975, certamente que não. Ao sair do avião, sentiu com agrado o calor e um cheiro que lhe pareceu estranho. Seria esse o odor do continente, dos trópicos? Ao entrar para a área da recolha das bagagens, o seu entusiasmo esmorecera um pouco. Começou por não encontrar carros de mão para a bagagem, o ar condicionado, se é que existia, não funcionava e as pessoas apinhavam-se à volta do tapete rolante, muitas com crianças a tiracolo que berravam sufocadas pelo calor e desconforto.
- Não desanime, amiga, não obstante este cartão de visita inicial, as coisas não estão assim tão más.
Como resposta Nazamba sorriu. Seu ar atarantado fez Lucinda rir por sua vez.
- Tenho pena de não ter uma máquina de filmar. Daqui a uns tempos iria rir da sua cara de espanto. Não era nada disto o que esperava, não é?
- Se quer que lhe seja franca, não. Bem me tinham dito, todavia achava que havia exagero. Mas enfim, estou de volta e isso é o que conta, logo me habituarei.
- Trouxe-a de propósito por aqui para se ambientar e porque é a única que pode reconhecer as suas malas, poderíamos ter saído pelo outro lado.
Que outro lado, por quantos lados se sai aqui?
- Não tem importância, de facto fico logo a entrar na vida luandense.
- Olhe lá vem o guarda do meu marido.
Guarda, meus Deus, as pessoas têm que andar com guarda?...
- Bom dia, dona, fez boa viagem? O chefe como não lhe viu no outro lado mandou verificar aqui. – disse ele.
- Olá, como estás? Vai dizer que estamos aqui e que venha.
O guarda partiu e pronto se remeteram a verificar a chegada das malas, atiradas de qualquer modo para cima do tapete rolante. Muitas chocavam umas contra as outras e acabavam por rolar para fora, sem que ninguém se preocupasse em endireitá-las ou em remetê-las para o tapete. Pacotes abertos ou rotos, esventrados de propósito ou por acidente, revelavam parte das suas entranhas e assim que alguém visse o que lhe pertencia, partia para o tapete aos empurrões, sem um desculpe, um com licença, mas sim com a férrea vontade de não permitir que a bagagem partisse para mais uma volta, como se de lá não mais voltasse.
- O meu marido, já o vejo. – disse Lucinda, num largo sorriso, momentos após.
Nazamba viu um senhor alto, fardado, barba bem aparada, a andar para elas. Ao detectar a mulher sorriu e acelerou o passo. Abraçaram-se fugazmente e beijaram-se nas faces.
- Então, como correu a viagem? Mas o que te deu para saíres por aqui?
- Correu bem. Quero-te apresentar a Nazamba, saiu de Angola em 1975 e regressa agora. Como não tem família em Luanda, convidei-a para ficar connosco até a sua situação estar resolvida, fiz bem, não fiz, foi por isso que saímos por aqui.
- Tadeu do Nascimento, muito prazer e seja bem-vinda. - respondeu, estendendo-lhe a mão, que ela apertou com afeição.
- Já disse à sua esposa que nunca haverá gratidão suficiente para vos retribuir o gesto, tinham-me dito que aqui já ninguém ajudava ninguém. Sinto-me feliz por constatar que assim não é.
- De facto a nossa sociedade está mais egoísta, os males são tantos que as pessoas viram-se para si próprias, mas continuamos a ser basicamente hospitaleiros.
- Olha filho, está ali uma das minhas malas – disse Lucinda, apontando.
O general chamou o guarda que a retirou do tapete rolante, e, depois, acenou para alguém que o cumprimentava à distância.
Momentos mais tarde, instalados num espaçoso 4x4, o fresco do ar condicionado e a massajem suave da música de Cesárea Évora, pronto fizeram olvidar as agruras do desembarque.
- A sua família vive em que parte de Angola? – perguntou Tadeu.
- Tenho um irmão que deveria estar à minha espera – mentiu novamente- Talvez até tenha estado, mas como não o conheço e ele tão pouco se deve recordar de mim... A minha mãe vive no interior, fui com o meu pai para Portugal em 1975, poucas são as lembranças que tenho dela.
- Quando souber a localidade exacta, iremos lá, isto é, caso se possa, como sabe há muitas zonas ocupadas pelos bandidos.
- Eu sei qual é a localidade, está nos meus documentos, nasci em num sítio que se chamava Ualali ou Ualili, não sei bem, creio que no centro sul do país. Era lá que o meu pai tinha o seu comércio.
Sentiu que não tinha mais informações a dar sobre a família, de resto o pai já falecera, a questão estava encerrada, quanto ao irmão nada dele sabia, talvez até fosse uns dos bandidos a que o general se referira, talvez não, talvez tivesse morrido trucidado por uma mina, talvez vivesse num país vizinho, talvez nem nunca tivesse existido.
O meu irmão... sempre um grande talvez, desde aquele dia!
A mãe, se estivesse viva, descobri-la-ia nem que para isso removesse montanhas e cavasse abismos, ela era o útero da vida, sua progenitora e a esposa do homem que, por vias diferentes, as abandonara a ambas.
- Se não se importam não gostaria de falar da minha família agora, é-me um pouco doloroso, e a vossa ajuda, a vossa bondade, ainda o torna mais. Queiram-me perdoar.
O silêncio tornou-se pesado. De facto não tinham pensado que ela pudesse estar atribulada com o regresso, quinze anos após. Nem sabiam em que condições partira, naquele fatídico ano em que as famílias angolanas se dividiram, ao que parecia, para todo o sempre. Sentiram-se egoístas e falhos de tacto.
- Quem lhe pede perdão somos nós – disse Lucinda – às vezes não vemos o que está à nossa frente. Olhe, amanhã como é sábado vamos à praia, temos uma casa no Musulu e pelo que vejo está a precisar de sol, até parece que tem hepatite – riu, segurando-lhe a mão.
- Bem estou a precisar, isso é verdade, os da minha cor quando vivem na Europa ficam amarelos. – riu igualmente, agradecida com o gesto.
- Não só, até nós, tornamo-nos meio acastanhados - disse Lucinda.
- Afinal é a culpa de tudo é o sol – brincou Tadeu.
Ao chegarem, Nazamba admirou-se com o tamanho da casa e com os guardas postados à entrada. Pensou que o general deveria ser pessoa muito importante e que tivera sorte, os espíritos dos antepassados por certo que velavam por si, lembrava-se das palavras últimas da mãe ao entrar na carrinha que a conduzia à capital da província.
Filha lá onde vais, nunca esqueças os teus para que eles nunca te esqueçam.
Salvo o avô e a mãe, por razões diferentes, esquecera-os a todos, nem sabia quantos tios e primos tinha, recordava-se vagamente de um irmão mais novo do seu avô que era quem mais mandava logo a seguir a ele, e pouco mais. As imagens da casa comercial do pai e tudo a elas ligadas tinham sido enuviadas. Marcelo, seu pai, morrera dois anos antes, amargurado, prematuramente envelhecido, feito um farrapo humano de tanto beber, sempre em choros pelo passado, pela mulher cuja imagem lhe roía a mente, pela filha ausente e que só espaçadamente lhe dava notícias curtas e secas por cartas que seriam não mais do que bilhetes lacónicos e despidos de qualquer sentimento ou emoção, por vezes parecendo um relatório de contas a ser prestado duas ou três vezes ao ano, nos aniversário dele, no Natal e por este ou aquele motivo mais premente. Teria que varrer a poeira do tempo e do sofrimento, olhar para si em catarse, reganhar o gosto pleno da vida, curar e reconstruir as raízes afectadas e, sem mágoas, dar descanso e paz à alma e memória do pai, anichá-lo em seu coração com o carinho e amor que lhe pertenciam antes da saída precipitada para Portugal, perdoar-lhe para que pudesse repousar em Paz, longe da sua Angola. Sabia que enquanto assim não procedesse, não seria feliz, viveria nos remorsos das atitudes e actos passados que apenas pressentira não serem correctos e justos, pela ocasional crise de consciência que geravam. Desejava antes de tudo voltar a Ualali, enfrentar o avô, que teria agora uns oitenta anos, e encontrar sua mãe, que teria uns sessenta, rezava fervorosamente para que tanto ele quanto ela estivessem vivos, todavia sabia que primeiramente teria que arranjar um bom trabalho, casa e integrar-se na nova sociedade que descobria e esperar que o local estivesse livre da guerra.
Entraram, para uma espaçosa sala de visitas e Nazamba estranhou não encontrar crianças.
- E os filhos, estão na escola? – perguntou, não contendo a curiosidade.
- Só a mais nova, deve estar a chegar daqui a um pouco. Os outros dois estão a estudar em Londres. Vamos tomar um refresco e comer qualquer coisa que depois mostro-lhe o seu quarto, deve estar exausta – retorquiu Lucinda.
- De facto estou, pouco dormi no avião, encontrava-me muito excitada e um bom sono vai fazer maravilhas, mas só depois de um pequeno mata-bicho. – disse, tentando agradar com o uso antiquado da palavra.
- Olhe, - disse Lucinda sorrindo – aqui quase que não mais se usa esse termo. Durma o que quiser, não se preocupe connosco, quando precisar de qualquer coisa é só chamar pela empregada, a Zulmira. Vou esperar a minha filha e pode ser que quando desperte tenhamos ido ver uns familiares, ligue a televisão e esteja à vontade, tem aí livros e revistas.
Após o pequeno almoço, sorriu ao recordar a palavra mata-bicho e o uso de que dela fizera, dirigiu-se ao quarto e sentou-se na cama, olhar perdido na lonjura do futuro que temia, reflectido nebulosamente na sua imagem no espelho do armário. Que lhes deveria contar, até que ponto abrir a alma e purgar-se de um passado que teria que definitivamente deixar para trás? Escutou a campainha soar melódica na sala. Entreabriu a porta do quarto e espreitou para baixo, pela fresta, curiosa. Ouviu a voz infantil, excitada.
- A mamã já chegou, a mamã já chegou!
- Já, está no quarto à espera da menina. – disse Zulmira
Ao perceber a criança subir as escadas em correria, Nazamba fechou a porta, sentindo uma angústia antiga ao recordar o aborto que fizera dois anos após a saída da casa do pai. Tentou afastar o pensamento com um gesto involuntário sem contudo o conseguir e, como que invocado, à sua frente se materializou Malaquias, ao empurrá-la sem querer, numa das ruas de Lisboa.
- Não vê para onde vai? –perguntara, meio irritada.
- Queira-me desculpar, mas quem não vê para onde vai é a menina – respondeu-lhe, numa voz rouca e olhando-a descaradamente nos olhos.
A resposta suave e o tom da voz atrapalharam-na. Sondou aqueles olhos negros como a noite, o bigode farto e tratado e notou que, pela sua tez escura, o homem seria, talvez, eslavo ou cigano.
- Desculpe, ia distraída, já agora, por acaso sabe onde fica o restaurante Las Noches?
- Las Noches? Sim, se quiser posso levá-la, não fica muito distante –ofereceu, solícito.
- Se não for incómodo, é que não conheço Lisboa.
- Não será incómodo nenhum, terei muito prazer. Como se chama?
- Nazamba, muito prazer – estendeu-lhe a mão.
- Malaquias, ser servidor, – retorquiu, começando a andar- que nome lindo, de onde vem?
- Sou natural de Angola, mas estou cá há muitos anos, vivia com o meu pai e a minha tia na Beira Alta.
- E o que quer no Las Noches?
- Vou em resposta a um anúncio, preciso urgentemente de trabalhar.
- Por acaso até conheço bem o dono – disse Malaquias, mais conhecido por O Cigano, olhando-a intencionalmente.
- A sério? – respondeu Nazamba, mal contendo a expectativa.
Tivesse ela pensado nas probabilidades de alguém se materializar abruptamente na sua vida, talvez tivesse desconfiado dos acontecimentos fortuitos, aparentemente predestinados. Teria seguido seu caminho, descrente do tamanho do óbolo que a coincidência lhe colocava aos pés, feito tapete aflorado de pétalas fragrantes. Um muito obrigado, desejava só saber qual a direcção, não, não se incomode, muito obrigado e passe bem, teria sido mais que suficiente para que sua vida fosse outra, mas como nunca se sabe o que o futuro reserva em termos de arbítrio, acaba-se por optar pelo que parece mais correcto, o mais lógico, o mais à mão de semear, mesmo que sejam ventos e tempestades, pedregulhos ou abismos. Só quando neles se tropeça ou se cai em cascatas de tardias consequências, se revelam as demais possibilidades, todas elas certamente sofríveis de igual e possível catástrofe. A isso os cínicos ou moralistas chamam de crescer, de aprender na escola da vida, de se formar na universidade onde os únicos cursos são os da adversidade, da iniquidade, da perversidade dos furúnculos psicológicos que amadurecem, enfim, a simbólica pele ainda por curtir.
- Que idade tem a menina?
- Sou maior e vacinada, se é isso que quer saber. Não está a brincar comigo, pois não?
- Por amor de Deus, claro que não. Mas deixe que lhe faça um pedido, já que não tem ninguém cá em Lisboa, permite-me que seja o seu protector ?
Nazamba olhou para ele e não soube o que responder. A cidade grande amedrontava-a com o movimento e vida a que não estava habituada, o pequeno quarto da pensão velha e escura em que se hospedava desde que chegara, recordava-lhe a dispensa em que vivera por longos tempos. A voz rouca e suave bem como os modos gentis de Malaquias eram um conforto, mas desconfiava das suas intenções.
- Mal nos conhecemos, nem sei bem quem é.
- Teremos muito tempo, não se preocupe com isso. O principal agora é o emprego. Onde vive?
- Na pensão Sol Dourado, não muito longe daqui.
- A pensão da D. Carminda, no beco dos Moleiros?
- Sim – respondeu Nazamba, olhando para ele admirada - Mas o senhor conhece toda a gente?
- Bastante... sou agente privado de relações públicas. Tem aí consigo o anúncio?
Agente privado de relações públicas, deveria ter-se perguntado o que é isso, nunca antes ouvi falar dessa função, trabalha para si mesmo, tem escritório, tem telefone ou fax, ai não tem?, que relações públicas são essas, muito limitadas, não é? Mas o título soou grandioso e de prestígio, alguém que trabalha para si próprio é sempre um empreendedor, uma pessoa de recursos, habituada à luta e à labuta, a prova é que era conhecido e a todos conhecia, oferecera-se para a ajudar, para quê rejeitar o que lhe era colocado a seus pés? Nazamba procurou na carteira e entregou-lho. Pararam, enquanto ele lia, um olho no anúncio, o outro a estudá-la de soslaio, medindo as coxas, os seios.
- Muito bem, já que simpatizei consigo, vou ajudá-la.
- Não brinque, preciso seriamente do trabalho.
- Acha-me capaz de tal? Por favor, confie em mim, o emprego é seu, o dono do Las Noches deve-me muitos favores.
Outra oportunidade para ter indagado que favores, que favores tantos deve o dono de um restaurante a um agente privado de relações públicas, que tenha que sucumbir aos seus desejos, às suas vontades e caprichos?
O bater suave na porta despertou-a das recordações. Ajeitou o cabelo e levantou-se para a abrir. Era a criança.
- A minha mãe falou em si e pediu-me para a vir cumprimentar. Eu sou a Isabel.
- Olá Isabel, eu sou a Nazamba, entra.
- Não, obrigada. Vim só conhecê-la, eu e a mãe vamos sair, depois falamos quando eu regressar, está?
- Está bem Isabel, eu vou aproveitar para descansar um pouco. Até logo minha querida, és uma menina muito bonita e educada.
Menina bonita e educada, o feto que havia deixado para trás numa clínica sombria de bairro periférico lisboeta, seria de menina? Meus Deus – pensou - mas porque me vêm agora à mente estes pensamentos? Deitou-se de costas sobre a cama, cobrindo com o braço os olhos, talvez para não recair no devaneio das recordações e suspirou fundo.
- Não lhe prometera que o emprego era seu? – indagou Malaquias, semanas mais tarde quando celebravam a ocasião, dançando numa obscura boate do Bairro Alto.
- Tem sido muito bondoso comigo, isso é verdade.
- Nazamba, gostaria que nos tratássemos por tu, afinal fica mal tanto formalismo para duas pessoas que se vêm todo os dias desde que se conheceram. Já somos muito mais íntimos, não acha?
Ao fazer a afirmação, Malaquias apertou-a suavemente contra si - Não acha? – sussurrou-lhe ao ouvido.
- Sempre duvidei dos homens, são fracos e egoístas..
- Mas porquê, o que lhe puderam ter feito, na sua idade?
- Não interessa, mantenho o que disse.
- Também me inclui nessa desconfiança? – fingiu-se zangado.
Era evidente que o incluía, e daí te-lo afastado meio abrupta, fingindo que tropeçara no seu pé. Recordando que lhe devia o emprego, aproximou-se um pouco mais, porém evitando o contacto físico dos corpos e como pedido de desculpa, olhou para ele e sorriu.
- Ainda não decidi, parece-me ser sincero.
- Pode crer que sou- disse Malaquias a rir
- Está bem, vou fingir que acredito em si.
- Em ti! –corrigiu Malaquias.
Não teve a certeza se foram emoções ou simples reflexos de sobrevivência que lhe tolheram a mente. Quis fugir, percebia-se suja ao ter que jogar com as emoções e não poder utilizar as palavras livre e espontaneamente como sempre fizera, irreverente. Deu conta que ao alforriar-se da liberdade paterna começara a escravizar-se na sua. Os actos tinham agora consequência e relevância, o jogo era o de ousar e progredir ou o do acanhar e soçobrar e, pela natureza indómita que a caracterizava, jamais aceitaria um outro afundar.
- Está bom, em ti. Se queres saber, contigo sinto-me mais à vontade...
- Não faço mais do que o meu dever de te proteger...
- Não é bem assim, em geral ninguém faz nada sem moeda de troca.
O raio da bichinha parece matreira, mas é muito inocente. Não perdes por esperar!
- Se é isso o que pensas de mim... – disse, fingindo amuo.
- Sabes muito bem que não é. – respondeu-lhe, bem humorada.
Aqui, igualmente tivera uma oportunidade de rebate, de ser assertiva e afirmar que assim era, não havia mão nenhuma que fosse estendida sem que a outra se retraísse, era a lei dos iguais ou dos complementos. Preferiu mentir, face ao amanhã.
Malaquias aproveitou para lhe compor uma mecha do cabelo, num gesto de pretensa naturalidade e afabilidade.
- Sempre foste assim, desconfiada?
- Aprendi que se deve confiar desconfiando.
Dançaram durante um tempo sem se falarem, cada um envolto na sequência da conversa, ele contente por ir levando a água ao seu moinho, ela cada minuto confiando na desconfiança, ia-se entregando, sem muita vontade, ao relacionamento que se formava.
- Teremos que pensar noutro sítio para viveres - disse Malaquias, para mudar de assunto.
- Porquê?
- Um pequeno apartamento, mais perto do teu trabalho.
- Não me fales nesse trabalho, tenho tanto medo – disse Nazamba.
- Medo? Medo de quê?
O que farei, meu Deus? Ter que ser agarrada nos braços de qualquer um, cheire ou não a cerveja ou tabaco e dançar, dançar e sabe-se lá o que mais quererão
- Ficar ali sentada à espera de que alguém me convide para dançar.
- Logo te habituarás, isso não é nada. O dinheiro é bom, e como queres estudar é mais fácil, tens o dia livre.
- Tenho medo e não sou bonita, ninguém vai querer dançar comigo.
- Quem te tem andado a mentir? És linda, és jovem e morena, o que interessa, e pelo que vejo, até danças bem.
- Achas?
- Já te faltei à verdade? Vais ser um sucesso, garanto-te.
Sucesso? Sucesso em que? Mas enquanto não arranjar outra coisa vou ter mesmo que aguentar.
- Mas se quiserem aproveitar-se de mim?- perguntou.
- Não te preocupes, estarei sempre atento. Vais habituar-te, verás. Não és a primeira.
Não sou a primeira, o que quererá ele dizer com isso? Nazamba, olha o teu caminho, cuidado!...
- Não sou a primeira, quer dizer que já houve outras? – retorquiu, afastando-o.
- Não foi isso o que quis dizer – corrigiu, lesto, Malaquias - Já houve mais jovens na tua situação, certamente que não és a primeira – brincou, feliz pelo que considerou ser ciúme.
- E as outras, o que lhes aconteceu?
- As outras? Porque te preocupas com as outras, todas elas se iniciaram como tu, não tens que recear. Não tentes é evidenciar-te.
- Eu? Deus me guarde, se soubesses o medo com que estou, é a primeira vez que me vejo numa situação destas...
Malaquias “O Cigano”, em raro momento de fraqueza, aproximou-a um pouco mais e encostou a face na dela, para logo cair em si, descontente com a fragilidade momentânea que poderia ser nefasta para o negócio.
Estás farto de saber que estas pretas têm feitiço!...
- Nada tens a recear, serei um pouco o teu pai.
- Não me fales no meu pai, preciso de uma amigo e não de um pai – respondeu, azeda.
Pressentiu que dera um passo no vazio. Ao testemunhar pela primeira vez a aversão de Nazamba ao progenitor, ficou pensativo, poderia usar o sentimento para proveito próprio.
- Nunca mais o farei, desculpa-me.
- Quem te pede desculpa sou eu, não tinhas como saber.
- Obrigado, afinal és uma menina bonita e educada – disse - dando-lhe um pequeno belisco no rosto.
Nazamba, reconheceu como fora levada ao passado ao dizer a Isabel que era uma menina bonita e educada. Riu, a mente tinha maneiras peculiares de conectar situações, aparentemente díspares e longínquas umas das outras.
Por fim, gasta de sentimentos, deixou-se adormecer numa imensa floresta em que uma única e gigantesca árvore, despida de toda a verdura, deixava pender sobre ela esqueléticos galhos secos, mãos aduncas e carcomidas de um qualquer feiticeiro milenar, em gesto de ameaça. Horrorizada, descobriu talhados no tronco da árvore dois enormes lábios que, aos poucos, se transformaram na boca e, por fim no rosto e corpo do pai da sua infância. Quis fugir e seus passos apenas esboçaram a pretensão do gesto, tolhidos numa tracção incompreensível, enquanto ele se aproximava, temível, para a agarrar e sustê-la em seus braços. Sentiu-se desfalecer num grito de dor e prazer no momento em que a erecção paterna penetrava-lhe o sexo. Ao erguer os olhos marejados de lágrimas para o pai, reconheceu Malaquias, sorridente.
De um pulo sentou-se na cama. Transpirava profusamente. Assustada, assim permaneceu por longos momentos como que anestesiada, incapaz de apreender o que se passava, envolta numa névoa de ânsia e culpa, tentando entender como projectara para Malaquias, ainda que em sonho, os sentimentos recalcados, pelo pai? A lembrança do homem que lhe dera vida e amor primaveril, Marcelo, foi maior que o muro protector erigido no aeroporto português à sua chegada, quando tomou consciência que, também lá, era filha da cobra. Chorou copiosamente com o rosto embrenhado na almofada para que não fosse ouvido o pranto convulso, alimentado pela proximidade incerta do futuro e do que ele lhe abriria, lhe destaparia e lhe revelaria, até que ponto desbarataria as aparentes certezas armazenadas em si e de conveniências desconexas. O cansaço da viagem acabou por adormecê-la novamente.
O som da melodia de um rádio, ou da televisão, despertou-a. Olhou para o relógio, dormira por horas, seis da tarde.
Meu Deus que vergonha!
Levantou-se e dirigiu-se ao quarto de banho, para dar conta que nem a mala tinha aberto.
E se eu dormisse até amanhã de manhã para não aborrecer ninguém, será que me levarão a mal?
Decidiu que tomaria banho, vestir-se-ia e desceria, jantaria com a família. Ligou o rádio da mesa-de-cabeceira e, pouco tempo após, ouviu um leve bater na porta.
- Posso entrar Nazamba, sou a Isabel.
- Entra minha querida, ainda bem que vieste.
Isabel entrou, sorridente e foi-se logo sentando.
- Pensei que ias dormir até amanhã, estavas cansada não é?
- Olha, estava exausta. Ainda não estou habituada e são muitas emoções novas para mim.
- A mãe contou-me que saíste daqui menina e só voltaste agora.
- É verdade minha querida, quando saí daqui teria uns dois ou três anos mais do que tu, já vês.
- E não tens família?
Nazamba pensou por um momento se estariam a usar a filha para tentar saber sobre ela, mas pronto descartou a ideia, não nunca fariam tal coisa, tinham-na acolhido sem mais perguntas e acreditado na sua palavra. Nada exigiria deles tal comportamento.
- Tenho, Isabel, só que não sei onde se encontram ou se estão vivos. Deixei cá a minha mãe, um irmão que também não sei nada dele e tenho um monte de tios e tias.
- E quando vais vê-los?
- Ainda não sei. Primeiro terei que encontrar trabalho e depois uma casa para morar, só então irei procurar a minha mãe.
- E porque não ficas aqui a viver connosco?
- Os teus pais estão a ser muito gentis comigo porque ainda não conheço nada nem ninguém, mas em breve terei que me ir embora.
- Quando arranjares a tua casa posso vir visitar-te, não posso?
- Claro que sim, e sabes, quando eu tiver casa, os meus primeiros convidados serão vocês.
- Ainda bem, eu quero ser tua amiga.
- E já o és. Fazes-me um favor, não saias daí enquanto eu tomo um banho e me preparo, está?
- Não, vou sair porque tenho que fazer o trabalho da escola, vim só para te cumprimentar.
- Está bem minha querida, até daqui a um pouco. Sabes onde posso encontrar um ferro de engomar?
Isabel apontou para o vasto guarda-fatos, incrustado na parede.
- Aí dentro costuma ter uma tábua e o ferro, este é o quarto das visitas. –respondeu, levantando-se e saindo.
Nazamba suspirou e sorriu, enquanto se dirigia para uma das suas malas. Pouco depois, debaixo do chuveiro, deixou a água escorrer em abundância, como que desejando lavar todas as recordações de um passado não muito distante que agora lhe aflorava ao coração e à mente. Tentou compreender o sonho com o progenitor, demasiado evidente para se rever Electra, em rivalidade com a mãe ausente e quase desconhecida. Sentiu nojo e sem querer, as mãos esfregaram com virilidade a vagina, a espuma abundante do gel de banho nos dedos longos penetrando pelas entranhas de um mundo escuro de culpa e fragilidade, aquele da Eva cristã, embebido e oculto em toda a mulher. Fora efectivamente Malaquias quem a deflorara e, numa fatídica repetição a abandonara tal como o pai abandonara sua mãe, ainda que por razões diferentes. Quando ela anunciou a gravidez, Malaquias o Cigano, logo ordenou que a tirasse, o filho ser-lhe-ia prejudicial para as suas actividades públicas, anunciou. Nazamba não teve muita escolha, trabalhadora e estudante universitária. Se o pai e a tia soubessem, o que seria? Quase nunca lhes escrevia, quanto menos deles soubesse melhor para si, bloqueara-os quase por completo, a não ser quando uma reminiscência de culpa aflorava, sobretudo pelo aniversário dele, e então lá escrevia o que podia, duas três linhas, espero que estejam bem e de saúde, pai, muitos e muitos mais anos de vida é o que deseja esta tua filha, a tia está boa, beijinhos da Nazamba, pronto, selava e metia no correio para logo pensar que esquecera a existência deles, figuras dos confins do consciente.
- Malaquias, não, ainda não... – fora com esta frase que repelira brandamente a primeira investida do Cigano, uns três meses após o começo do trabalho no Las Noches.
- Mas meu amor, já vivemos praticamente juntos...
- Eu sei, mas acho que ainda não chegou o momento
- Não me amas? – perguntou Malaquias fingindo amuo.
A eterna prova máxima exigida pelo homem como atestado de garantia de uma relação acalentada, caso seja ele a determiná-la. E não é questão de semântica, este não me amas indagado entre arrufos de satisfação ou amuos de condenação dirigida, deverá significar um amor incondicional com passagem única de ida, nada de meias-voltas ou voltas completas, o ego másculo não se sente preparado para tanto. A gaiola masculina está, há milénios, programada para armazenar a virgindade, a constância, a fidelidade feminina, e só libertá-las quando para sua conveniência e uso pessoais. A mulher tem que demonstrar mas não exigir amor, tem que dar mas não solicitar apego, tem que saber estar próxima e disponível mas alheia, funcionando sob controlo remoto de dois únicos botões, um que diz sexo e o outro, conveniências imediatas ou de curto prazo.
- Não se trata de te amar ou não, mas sim do que acho que devo fazer. Vocês homens nunca percebem nada, sempre apressados e insensíveis.
- Mas se não for hoje será amanhã, o que muda pois, se o sentimento já existe?
- Não é o tipo de vida que vou continuar a ter, quero acabar os meus estudos.
- Claro que deves estudar, não serei eu que to impedirei, mas não vejo porque não aprofundarmos a relação, já vivemos praticamente como um casal...
- São talvez os receios....
- Receios, receios de quê?
- Olha, para exemplo, não quero que sejas tu a pagar-me a renda, assim como não estou preparada que me digam para onde devo ir ou com quem falar, como tu o fazes a toda a hora.
Malaquias vestiu a camisa que antes atirara para cima da cadeira no pequeno quarto de dormir do exíguo apartamento que arrendara para Nazamba. Percebeu que tinha que recuar, criar maior confiança, estava familiarizado com os sintomas demonstrados. As asas, que haviam começado a ser encurtadas imperceptivelmente, na claustrofobia consequente criada, ganhavam coragem e força para tentar um esvoaçar. Havia pois que reconsiderar se não seria melhor deixá-las crescer para que se espatifasse desnorteada contra o primeiro muro no voo experimental, permitindo-lhe um eu bem te avisara, não me quiseste escutar e olha agora, pedes ajuda, afinal parece que eu sempre tinha razão. Em outras palavras, valorizar-se ante a derrapagem inevitável, ou até preparada, de Nazamba.
- Mas se assim procedo é para te proteger...
- Não duvido das tuas intenções, mas não quero que sejas o meu pai que me diz se posso fumar ou não, se chego a esta hora ou aquela. Sou suficientemente crescida para saber cuidar de mim mesma, por pouco que seja.
- Está bem, está bem, não há pressa – disse, em tom mais conciliatório.
- Quando chegar o momento, não será necessário pedires – concedeu Nazamba.
A afirmação excitou Malaquias que voltou ao leito onde Nazamba, de sutiã e calcinhas, ainda se encontrava. Debruçou-se sobre ela e abraçou-a, beijando-a com ardor. Ela correspondeu, mas acabou por afastá-lo com um ligeiro empurrão, em jeito de gracejo quando pressentiu que os fogos do Cigano se reacendiam.
- Não recomeces outra vez, vá, veste-te e vamos sair para comer qualquer coisa.
Retirou-se de cima dela, ajeitou-lhe o sutiã e deitou-se a seu lado. Olhou-a profundo nos olhos e sorriu, feliz. A promessa estava feita, ultrapassara a meta por antecipação, agora era só aguardar com paciência. Quando a desvirginasse, seria toda outra, entregue e meiga, conciliatória e, sobretudo contribuinte pelo amor que julgaria sentir pelo facto de ter que justificar a entrega do que mais valioso pensava possuir, a virgindade, esse pedaço de membrana rompido por variadíssimos motivos e razões e à qual as mulheres tanto valor atribuem, dos mais nobres aos mais obscuros e sinistros. Tivesse Eva tido esses preconceitos, ainda estaríamos a amargar no paraíso. Após a perda dos três, e ainda hoje não se sabe porque só três, porque não perdem as mulheres os nove, os dezoito e meio, os vinte e cinco? Após o desfloramento, após o extirpar dos tampos, após o destruir da inocência, após o bazanço do cabaço, ou após qualquer outro nome que inventem, Nazamba revelar-se-ia incondicional, isso Malaquias sabia através da experiência.
- Vossa Excelência manda! – respondeu, levantando-se e abotoando a camisa.
- Está, já conheço a música. Aguarda enquanto tomo um banho rápido.
Sorriu ao recordar a ingenuidade dos seus dezassete ou dezoito anos. Atirou com a esponja ensopada para o lado e ergueu o rosto ao jacto da água morna. Relaxada a tensão, decidiu que o sonho não teria representado mais do que uma apreensão qualquer, o novo desflorar da sua existência na terra materna, daí a imagem do homem que a deflorara se revestir da do pai. Fechou a água, saiu da banheira e cantarolou enquanto se enxugava. Sentiu-se apta para a vida que começava.
Prepara-te Nazamba, a tua vida está apenas agora a iniciar, todo o resto foi paisagem.
Arranjou-se de maneira elegante, porém sem querer dar a impressão de sofisticação propositada, e desceu para a sala de visitas.
Tadeu, que se encontrava a ler uma revista, ergue-se.
- Pelo que vejo o descanso fez-lhe bem, parece outra pessoa.
- Nada como um repouso merecido, não estou habituada a viajar de avião e sobretudo à noite. – sentou-se onde ele sugeriu com um pequeno gesto.
- Sei que viu pouco, mas as suas primeiras impressões? - disse, para fazer conversa.
- Francamente, ainda é muito cedo, todavia o sentimento de estar de volta é bom.
- Acho que o mais difícil já passou, verá que tudo se irá recompor.
- Espero que assim seja, força de vontade não me falta...
Lucinda e Isabel entraram, e dirigiram-se a Nazamba que pronto se levantou e a elas se dirigiu.
- Refrescada?... Deve estar com uma fome enorme, não?...
- Nem tanto, creio que a emoção tirou-me o apetite. E a Lucinda, como está?
- Já fiz as visitas que se impunham, isto de regressar de férias é uma andança, levar os presentes e pedidos aos familiares....
- E tu Isabelinha, estás contente por ter a mãe de volta, não é? – perguntou Nazamba.
- Já disse à mamã que as próximas férias têm que ser quando eu também tiver as minhas.
Perturbada ao ouvir planos familiares, sentiu-se intrusa e não soube o que dizer.
- Amanhã vou começar a procurar emprego – meio gaguejou.
- Para além de amanhã ser sábado, não tenha pressa – disse Tadeu- e olhe que aqui não funciona assim.
- Deixe isso por conta do meu marido, ambiente-se um pouco mais.
- Não me sinto bem nesta situação...
- Não se preocupe, quando menos esperar tem trabalho, casa própria... – disse Lucinda, puxando-a para o sofá, onde se sentaram as duas e Isabel.
- Não vai beber nada? – perguntou Tadeu.
- Acho que vou tomar um martini com gelo, obrigado.
Tadeu dirigiu-se ao bar e preparou as bebidas, um whisky para si, um gin tónico para a esposa e o martini para Nazamba. Numas taças de vidro verteu castanha de cajú, jinguba torrada e salgadinhos variados. Deu um sumo à filha, e sentou-se, uma vez todos servidos.
- Já tem uma ideia por onde começar? – perguntou o general.
- Para ser franca, não...
- Já alguma vez trabalhou?
- Não, acabei os estudos e foi preparar-me para regressar a Angola. Achei que os desenvolvimentos políticos apontam para uma solução do problema da África austral, que esta guerra tem que acabar um dia e que quando isso acontecesse eu queria estar cá.
- De facto assim parece, a independência da Namíbia, o fim do apartheid, tudo indica que mais tarde ou mais cedo a paz chegará.
- Espero que não comecem já a falar de política. – disse Lucinda.
- Não, não!... – balbuciou Nazamba, meio atrapalhada.
- Olhe que aqui só se fala de política, até a minha filha Isabel, somos um país de politizados, não é, Tadeu?
- A Lucinda está a brincar consigo, mas de facto somos um país de políticos, começa logo nas escolas com a OPA.
- OPA, desculpem a minha ignorância mais o que é isso?
- É uma organização infantil partidária, assim como existe uma outra juvenil e outra ainda para a mulher.
- Pois, esqueci-me que isto aqui é um regime comunista, não é? Pelo menos é o que o meu pai dizia.
Tadeu não soube o que responder, de facto não desejava enveredar para uma conversa política, por outro lado receava melindrar a sua hóspede, desconhecia como interiorizara a saída intempestiva do pai e dela própria e por último porque achava que o regime em momento algum fora comunista.
- Olhe Nazamba, se quer que lhe diga a verdade, não sei como lhe responder, uma coisa foi o que se pretendia como política de Estado, outra coisa foi a vida quotidiana e as pretensões mais íntimas das pessoas, o seu desejo ao acesso a uma vida melhor e cada vez mais desafogada.
- Queiram-me perdoar, acabei de chegar e não saberia do que estaria verdadeiramente a falar.
Lucinda esboçou um sorriso da satisfação.
- Pois mudemos de assunto. E quanto ao seu trabalho o Tadeu cuidará disso.
- Se fosse por mim, era já hoje. – disse Nazamba a sorrir.
- Ofereça-se uns dias de repouso. Na próxima semana resolvo isso, está prometido. – respondeu Tadeu.
- Estamos combinados para a ida ao Musulu amanhã? – perguntou Lucinda.
- Sim papá, vamos, não é Nazamba? – perguntou Isabel, ansiosa.
- Por mim nada mais desejo, até porque será a minha primeira vez.
- Vai gostar, irá ver, o Musulo é um paraíso e toda a gente de bem tem lá uma casa. – disse Lucinda.
- Eu gosto porque tenho lá muitos amigos. – fez eco, Isabel.
- Combinado então, Musulu seja. – disse Lucinda.
- No Musulo há bichos?
- Bichos? – indagou, admirada, Isabel
- Sim sei lá, cobras, macacos!...
- Talvez, mas que eu saiba não. Porquê? – quis saber Tadeu.
- Só por perguntar, recordo-me das cobras e dos macacos na minha infância.
- Há muitos caranguejos, kitetas e mabangas, vamos apanhá-las juntas. – ofereceu-se Isabel.
Tadeu desatou a rir, enquanto retirava umas castanhas de caju, que levou à boca. Lucinda e Nazamba olharam para ele, inquiridoras.
- Lembrei-me agora de um episódio interessante quando a Nazamba falou de macacos?
- Conta, papá, o que foi?
- Lá vem ele com mais uma das suas estórias da guerrilha!... – disse Lucinda, jocosa.
- Se queres saber, até adivinhaste!
- Da guerrilha, então o Tadeu foi guerrilheiro? – perguntou Nazamba.
- Já foi há tanto tempo, que às vezes até duvido.
- Mas o que foi, conta papá?
- Calma, filha. Já vou contar.
Olharam para ele com interesse, não obstante Lucinda já ter ouvido muitas.
Estórias da guerrilha eram sempre motivo de alegria, tanto para quem as contava quanto para quem escutava. Representavam momentos vividos numa era que agora, no início da década de noventa, parecia romântica e mística. Os que as contavam, reviviam os factos com emoção e até saudade e colocavam tal intensidade no relato que às vezes se transfiguravam, percebendo-se que o mundo de então nada tinha a ver com o momento do presente, egoísta, centrado e limitado. Este novo mundo perdera a intimidade, a camaradagem e a comparticipação, a não ser naqueles raros momentos em que os casamentos, as recepções ou as festas reuniam uns tantos e então, juntos em confraternização, sem intenção tornavam-se novamente naquilo que tinham sido, amigos, camaradas a comer no mesmo prato, fosse de alumínio, de chapa ou de cartão. Nesses momentos, mais pareciam uma elite ou confraria de gestos e linguagem sincrética, com o seu emaranhado de nomes, regiões, zonas, sectores, jargão, e geografias íntimas das terras de passagem e presença, sempre cortadas por rios, riachos, por florestas ou chanas.
- Isto vem a propósito de macacos. Eu estive durante uns tempos largos na nossa segunda região político-militar, Cabinda, mais precisamente na zona A, e como sabem a vida nas matas não oferecia grande conforto, a comida escasseava, chovia muito, etc.
- Havia fome, papá?
- Havia e por isso comia-se de tudo. Assim, um dia eu e uns outros quatro camaradas matamos uns três chimpanzés para comermos, e quando os levamos para a base e os entregamos para serem preparados, um guerrilheiro ficou todo indignado.
- Então os camaradas querem que a gente coma esses camaradas aí? – indagou.
- Camaradas? Mas são macacos e podem ser comidos muito bem!...
- Não aceito, vou pedir uma guia de marcha para ir contar no camarada presidente Agostinho Neto que vocês querem comer esses camaradas?
- Mas o camarada deve estar a brincar!...
- A brincar, eu? Olha só nas mãos deles, olha só!
- E depois?
- Então os camaradas não estão a ver que as mãos deles são mãos de pessoa?
- E daí, mas não são pessoas e pára de lhes chamar camaradas.
- O focinho deles, então não é o focinho de pessoa? Como é que vamos então comer os nossos camaradas?
Lucinda e Nazamba olhavam para ele como se estivesse a apelidá-las de mentecaptas. Isabel, ria toda contente.
- Mas ó filho, tu queres que a gente acredite nisso? – pergunto Lucinda a rir. onde desejava que Nazam
- Mas juro-vos por tudo que é mais sagrado que é verdade.
- Se o papá está a contar é porque é verdade!...
- Obrigado minha filha, claro que o teu pai não iria contar para a sua família uma mentira. Foi verdade, esse camarada causou-nos uma confusão dos diabos.
- Está bem, está bem. Mas olha, com essa estória da fome e de macacos, quem está com apetite sou, e se fossemos jantar? – sugeriu Lucinda, levantando-se.
Todos levantaram-se e dirigiram-se para a mesa, Isabel correndo à frente e a indicar a Nazamba para que se sentasse, ao lado dela.

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