quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

A PRECE DOS MAL AMADOS


CAPÍTULO SETE
O VOO SINUOSO DOS MEDOS

Mamba nto na nto
(provérbio kikoongo)

Pela aldeia soou o rufar inesperado dos tambores, o eco reverberando pelas árvores das matas e a assustar muita gente. Não era hora para batucadas mas sim de labutas várias, portanto os pensamentos foram muitos.
Largaram os foles do ferro, os pilões, o trançar das esteiras, o secar da carne e correram para a povoação.
Retiraram as nassas a colocar para apanhar o peixe, pararam o lavar da roupa, esqueceram os brinquedos de vime e de lata, os laços para agarrar passarinhos.
Amarraram os panos à cinta, colocaram as crianças às costas, abandonaram as enxadas junto aos milharais e abalaram em ânsia pelos vários carreiros para a aldeia, mas logo o divisaram, o soba grande, a caminho do jango, precedido do portador da cadeira do poder, que a colocou no local próprio. Nela se sentou de imediato, com o ar mais feliz de sempre, rodeado de Nehone e demais anciãos do conselho.
Evidenciava rejuvenescimento, o porte o mais erecto que a idade lhe permitia, a velha barba arrumada e o brilho resplandecente do sol, há muito raspado dos olhos com a lâmina fina dos desgostos, fulgurava novamente em chamas cintilantes.
Tranquilizaram-se, afinal não fora a desgraça que batera à porta, as novas teriam que ser boas, não se tira a gente dos seus afazeres sem causa justa, restava agora aguardar que lhes fosse comunicado o motivo, a razão da convocação. A jovialidade do velho era sinal de boa nova. Os comentários estalavam por toda a parte, a curiosidade não tem natureza para ser domada, ela é mãe de todas as formas e sussurros possíveis, soltos em catadupas sinuosas ecoando à flor da pele de cada. A curiosidade rasteja, como a minhoca, pelos buracos escuros que cava, abrindo sulcos que arejam a ansiedade.
Foram-se acocorando, formando num vasto semicírculo, na boca aberta da floresta. Cochichando felizes uns, outros resmungando porque arrancados da labuta, o fogo ia esfriar, o ferro quente perderia o ponto de molde. Todos expectantes, todos ansiosos a arderem de uma bisbilhotice quase infantil. Por fim Juba de Leão levantou-se, fez um sinal com o cabo de rabo de boi para os músicos, que irromperam em batucada. Pouco depois, confiante da força que a alegria o impregnara, ergueu-se, avançou uns passos caducos, quase de maneira grotesca, e saracoteou o corpo numa dança da sua infância, marcando o compasso com o espanta raios ou enxota-moscas. Os mais velhos, de memória avivada pela dança há muito semi esquecida, bateram palmas de contentamento, os mortos de há muitas décadas iriam ser relembrados. Há largas décadas que não se mencionava o seu descanso, para que fosse de paz e a terra não lhes pesasse sobre os ossos. Enfim iam relembrar os de ontem, os de anteontem e os de sempre. Foram-se juntando um a um, os que ainda podiam, à dança comandada por Juba de Leão, entre o grito estrídulo das mulheres e a surpresa das crianças e jovens. Um imenso murmúrio de aprovação, sobrevoou os milharais, por cima dos batuques.
Cansado, sentou-se, logo seguido pela maioria. A alegria escorria-lhe por todos os sulcos do rosto cavados pela vida.
Um velho avançou, inclinou-se perante o soba grande e logo se fez silêncio, o porta-voz, aquele que anunciava ao povo as mensagens de Juba de Leão, iria falar. Apenas se percebia o longínquo balir dos cabritos e o cacarejar desta ou daquela galinha, as crianças nem buliam, talvez retidas pelo momento electrizante. As cigarras nos paus vários que circundavam o jango, pararam o seu trinar estridente.
Boas novas, boas novas! – Anunciou o porta-voz, acenando os braços.
Gozando as atenções concentradas em si, pigarreou, coçou a barba, cuspiu para o chão e pareceu não querer anunciá-las de imediato. Ensaiou dois passos em frente e levantou ambas as mãos, as palmas voltadas para o povo, os dedos meios dobrados pela arterite.
- O nosso rei está muito feliz... Gritai! – Comandou.
Todo o povo gritou, um longo e unido ehyeeeee, várias vezes, à medida que o soba levantava o enxota-moscas. Quando se deu por satisfeito, levantou ambos os braços e todos se calaram, felizes e risonhos.
- Quando acordou pela manhã ouviu o cantar do pássaro da sorte, tuí-piu-piu uma vez, tuí-piu-piu, duas vezes, tuí-piu-piu três vezes. Ficou feliz e pensou, que notícia é essa, que boa nova me vão trazer, mas como tinha receio dos maus-olhados, guardou no coração, só para ele, o pressentimento.
Parou e olhou à volta. Juba de Leão meneava a cabeça em aprovação, como que se as palavras do mestre arauto tivessem acabado de sair da sua boca. A plateia, continuava em atenta expectativa. Com um gesto quase imperceptível, um levantar ligeiro do cabo de cabo de boi, revelou que ao mestre porta-voz que devia continuar.
- Ao meio da manhã chegou o senhor enfermeiro, que trouxe as boas novas. – Calou-se, enquanto ajeitava o traje, propositadamente.
O silêncio tornou-se ensurdecedor. O mestre proclamador perscrutou novamente à sua volta, como que meditando se o momento para dar o bote chegara, ou se os fazia aguentar ainda um pouco mais naquele sofrimento. De soslaio, viu que Juba de Leão de igual modo gozava a tensão gerada.
- É verdade, o pássaro da sorte cantou três vezes – repetiu – tuí-piu-piu, tuí-piu-piu, tuí-piu-piu... gritem! – Ordenou.
Novamente o povo gritou, três vezes repetido, o longo ehyeee, gozando a excitação.
- E quando esse pássaro canta toda a gente sabe que a felicidade não está longe, não é verda...?!
- Verdade!... – Gritaram todos em uníssono.
- Não é verda?!... – Repetiu.
- Verdade!... – Aclamaram.
- Logo-logo chega, e foi o que aconteceu... O nosso irmão enfermeiro trouxe as boas novas... gritai!
O povo eclodiu em novos gritos de excitação e contentamento, muitos dançando mesmo sem o batuque. Quando o silêncio subsistiu, o porta-voz pigarreou e lançou a notícia.
- O nosso filho general doutor, o nosso Nataniel finalmente vem-nos visitar.
As mulheres romperam a bradar, enquanto os homens batiam as palmas de satisfação e alegria. O burburinho foi enorme e generalizado, o batuque furou toda aquela alegria e Juba de Leão levantou-se ensaiando os passos de dança anteriores. Pouco tempo após, cansado e ofegante, sentou-se.
Ai as minhas pernas, a idade já não me ajuda, estou mesmo velho.
Mandou parar a percussão e aos poucos as pessoas foram-se sentando, as mulheres a cochichar entre si.
- Já é casado? – Quiseram saber.
Quando a preocupação chegou aos ouvidos do soba, mandou o porta-voz anunciar que o enfermeiro afirmara ser Nataniel casado, com a sua prima Nazamba, aquela que fora na terra do pai, muitos anos atrás, e sua própria neta, encontrando-se grávida do primeiro filho.
O burburinho foi enorme, era verdadeiramente uma notícia importante e as pessoas começaram a indagar-se sobre o que faria o soba, mas todos estavam felizes e esperaram que ele orientasse a celebração da boa nova. Ordenou a morte de vários cabritos e a busca da sua reserva de cerveja para a festa, que durou a noite inteira.
Quando despertou, mais tarde do que o costumeiro, encontrou a comida, já fria, pousada no local habitual. Sem perceber onde estava, olhou para a mesma com enjoo, a boca abrasada pela ressaca. Os olhos percorreram o interior da choça como que buscando orientação. Tudo lhe parecia abstracto, uma névoa povoada de formas inquietas e movediças. Ao fim de muito percorrer com o olhar as paredes e o tecto, conseguiu concentrar a mente no que o envolvia. Apercebeu-se que estava deitado no catre e reconheceu o interior da sua casa, sendo então assaltado pelas imagens da véspera. Ao recordar os netos, foi invadido por uma vontade involuntária de vomitar e o estômago contraiu-se furioso em espasmos.
Vêm-me cobrar? Vou ter que me proteger, ai Kalunga, estou velho... velho!
Bateu as palmas, esperando que alguém ouvisse. Uma cabeça espreitou e ele pediu que mandassem uma das suas mulheres, a mais nova, para cuidar dele.
Vou ter que falar com o mano Tuluka. Preciso ter a certeza, saber tudo.
Horas mais tarde, refeito e alimentado, saiu da choça e foi-se sentar nos troncos estendidos debaixo de uma árvore frondosa cerca, e ordenou que Nehone viesse ter consigo.
A chegada do casal fora anunciada para dali a umas semanas, a aldeia tinha pretendido que se deslocasse antes, todavia Juba de Leão fez-lhes notar que o neto e a neta eram pessoas importantes, com trabalho importante na capital do país, haveriam de se deslocar a Ualali em devido tempo e oportunidade, saberia quando, no seu coração.
Pobre coração de velho que, temeroso da longa mão da morte a vaguear não muito distante, com dificuldade distinguia o traço fino que separava a intenção, dos factos que desejava ver acontecer antes de poder fazer o sucessor para evitar as malditas lutas intestinais com feitiços a sujarem este ou a limparem aquele. Inconsciente de que o poder dos reis e sobas fora há séculos esmagado, aniquilado e, com a independência, empacotado em papel de embrulho e levado para Portugal com o colono, para não mais voltar, almejava ser sucedido por um homem moderno, educado. Os novos donos do poder sabiam que os avanços da economia, da educação, da cultura, da tecnologia, da ciência política, não permitiriam o retrocesso ao feudalismo, à autocracia, à gerontocracia asfixiante, às doutrinas ocultas e à inevitável incompatibilidade com o Estado, detentor de técnicas de gestão modernas de administração onde os legados do oculto pouco contavam ou pudessem exercer preponderância no seu dia a dia, a não ser que viessem dos adivinhos ou feiticeiros para o fechamento do corpo da dirigência reinante, ou para a anulação intriguista dos que lhes fizessem sombra. Pouco importava uma montanha sagrada ou um vasto terreno de túmulos milenares, ou grutas gravadas de animais rupestres, se estivessem repletos de ferro ou de qualquer outro mineral precioso e brilhante de futuros promissores. Ele próprio sabia nunca ter sido rei como fora seu avô, como fora seu tio, que ainda impuseram impostos e direitos de passagem aos brancos e que ditaram quem vivia ou não nas suas terras. Ele nunca efectivamente governara, nem no tempo do branco nem agora. Lá bem no fundo de si mesmo reconhecia que os tempos não recuam, que a água do rio não anda para trás, o que vestia como sentimento era a saudade de um passado que lhe fora trazido pelas vozes dos antepassados onde a memória já nebulosa se fundia, sem querer, na lenda e no mito, destapando apenas factos ocasionais acontecidos consigo mesmo, como a morte do leão que levara a que o seu nome fosse mudado, que a sua reputação viajasse para alem das fronteiras do potentado e fosse, até, considerado pelo colono como um negro destemido e valente, agora tudo tão longe, tão inacessível à própria mente, tão sem importância, tão imaterial!
Cada vez percebia menos das coisas e dos acontecimentos, a mínima situação ultrapassava-o, não entendia as ordens recentes chegadas para mobilizar as populações a votarem nas eleições, não percebera o complicado sistema de listas, cartões de registo, caixas de voto. Sem entender o que dele se esperava, o que se pedia, o que era isso de votar?
Votar mais o quê, como?
Veio-lhe á memória a única experiência que tivera quando o quiseram tirar da herdada cadeira do poder, ele sobrinho escolhido pelo tio e pelos anciãos, porque descendente da aristocracia, filho de Mabunda, neto dos originários da linhagem. Desejavam que compreendesse que o poder era agora, com a independência, popular e revolucionário. O soba tinha que ser eleito democraticamente, e se dependesse deles, ser substituído pelo comissário comunal onde e quando possível. Não percebera as vozes novas que vituperaram contra si, que xingaram, que exigiram fora, rua com ele, abaixo o obscurantismo, viva a revolução proletária, a terra para quem a trabalha, a cada um segundo o seu esforço e a sua capacidade, a mulher é igual ao homem, com os mesmos direitos, como se não percebessem que desde a primeira voz humana, a mulher é escrava do campo, é esposa e fêmea parideira, sua única validade é dar continuidade, seguimento, e saber sofrer. Não tivesse sido o povo teimoso, resoluto e conhecedor dos seus valores reais a fazer face aos desígnios dessa meia dúzia de pretensas vozes antibióticas, talvez até tivesse morrido, de morte matada ou de morte de desgosto face à incompreensão dos valores novos e alienígenas.
Então que diferença havia nesse votar de agora, nessa escolha de gente, nomes e partidos de que nunca ouvira mencionar, quando só conhecera um que sempre mandara nele e no país, e o outro que, em morte anunciada, passava pela região num cavalgar de ciclopes ateando labaredas alimentadas em vendavais sulfúreos? O que dizer ao seu povo, o que lhe explicar, ele, velho e deserdado dos tempos? Só mesmo o neto Nataniel, homem formado em Cuba, general aos seus olhos, possível ministro da defesa ou mesmo presidente um dia, só ele podia herdar a sua cadeira, explicar aos seus os tempos novos na linguagem dos que mandavam, dos que diziam vive ou morre, vai em paz ou para a cadeia, paga ou não paga, um para ti cinco para mim, fica aqui ou fica ali, já que com eles aprendera e convivera e lhes era igual ou superior. Mas antes de morrer, teria que saber isso tudo, aprender o mínimo desse jogo de interesses e movimentações estranhas, tinha que virar aprendiz político de feiticeiro, saber andar em cima da linha. Não queria descer ao fundo das lagoas sem poder explicar aos antepassados como estavam os novos horizontes no seu pequeno mundo e nele, o lugar do herdeiro natural, Nataniel, homem que deveriam bafejar com sorte eterna, dar-lhe alento e talento para ser o que se esperava, tanto dos vivos quanto deles os mortos. Já chegara o susto que tivera quando lhe vieram anunciar que Nazamba, a neta que ele rejeitara, estava em Luanda e que iria casar-se com Nataniel, segredo que guardou para si a sete chaves fechado. Mas porque não ficara na terra do pai, tantos anos passados para voltar e no meio de quanta gente, ir logo conhecer o primo e ambos se apaixonarem? O que lhe dizer, como poder explicar-lhe que sua mãe Balanta fora agarrada, nem sabia se estava viva, com sorte talvez agora aparecesse vinda de onde fosse.
Ai, Kalung’ééé!...
Era o que mais ansiava, nem que dos fundos do mundo, feita escrava, velha, gasta, acabada, pronta a morrer ainda que injuriando com pragas terríveis seu pai Juba de Leão, o homem que só lhe trouxera desgraça na vida, mas que se plantasse ali diante dele. Não tinha idade nem estatuto para estar a gagueja perante os netos uma qualquer e despropositada desculpa, pretensa inocência amarfanhada que nem nela ele próprio acreditaria.
E agora, ai Kalunga ajuda-me! O que fazer com a minha neta, o que vou fazer quando ela chegar aqui nos seus?
Tudo isto foi o que Juba de Leão conversou consigo próprio, buscando uma luz para os escuros sentimentos em luta que a notícia da vinda dos netos produzira. Tinha umas semanas para recompor emoções e ideias, para se aperceber das conversas das gentes a fim de poder encontrar um caminho que não fizesse desagravo ao povo, que não fosse motivo de murmúrios e desagrados. A neta, ainda que por alguma via tivesse conhecimento da ausência da mãe, certamente iria perguntar-lhe, assim como sobre a casa do pai, agora destruída e coberta por mato de cobras e gafanhotos. Não iria imaginar, nunca seria capaz de visualizar, de entender o sentimento das suas explicações esfarrapadas, a guerra era uma experiência única, pessoal, intransmissível e indescritível em termos de emoção, de marcas, de vazios sentimentais e psíquicos, de acções e reacções, de passado e de futuro. Para ela seria a imagem antiga da bonança e da felicidade, do ritmo monótono da certeza e da segurança, da união familiar, da paz e da tranquilidade.
A imagem da infância e da inocência prevaleceria, lá bem atrás no subconsciente sobre o pretenso entendimento dos acontecimentos e da compreensão possível dos rumos que o destino delineara ao longo dos anos. Assim não fosse, seria a racionalização a imperar em asfixia sobre as leis do coração, a negar à alma sangrada e dolorida a evasão. Isso intuía o velho soba, não obstante desconhecer as leis da mente e as filosofias, as dele eram as da vida. Ninguém cala um coração dorido de mulher, sabia que iria confrontar um animal acuado nas memórias, e ele, velho decrépito, procurava febrilmente por uma saída. Com o nervosismo, os gases revoltados no ventre soltaram-se num longo assobio seco que lhe aqueceu a alma e o baixo ventre. Riu e pensou que o peido solta-se para libertar as cólicas e os gases, e ali parou, porque se soubesse filosofar, teria ajuntado que igualmente se solta para lhe apalpar o odor, julgar a intensidade, verificar-se a densidade no espaço circular e concêntrico da sua acção, antes que de se esvair, de se diluir nos espaços diáfanos das lembranças, por fim apaziguado e integrado, feito memória de si mesmo, nada mais.
Talvez fosse melhor, mais prudente, ver, ouvir e calar e decidir a maneira de agir face aos resultados. Já presidira a muitos conselhos de anciãos, casos sem fim passaram-lhe pelas mãos e para todos encontrara uma solução. Até problemas que tinham a ver com os céus, a terra, o sol e a lua, resolvera. Já fizera cair águas em catadupas, das nuvens ressequidas na terra árida da seca, e muitas mais maravilhas que as guardava só para ele, os segredos profundos das noites. Todavia este espinhoso assunto envolvia directamente os seus mais chegados. Teria que aguardar pelo que a neta lhe dissesse, não valia a pena estar a pôr a cabeça a fervilhar, estava velho e, mais do que tudo, desejava paz e tranquilidade.
Quando Nehone chegou mandou-o sentar-se a seu lado, carícia que este estranhou, não vislumbrava o motivo de tal deferência, ainda por cima pública. Ponderou usar o mocho próximo, mas acabou por considerar não valer a pena antagonizar o gesto oferecido. Com cuidado, sentou-se nos troncos, um pouco afastado do irmão mais velho. Esperou que ele falasse.
- A festa foi grande, bebi muito. – Disse, mais para si mesmo, Juba de Leão.
Que conversa quererá deste vez?
- É verdade, foi uma boa festa, a cerveja não faltou. – Respondeu Nehone, olhando-o de soslaio.
Juba de Leão levantou os olhos para o ar, e com a mão fez pala para poder observar um bando de aves que passava. Nehone imitou-o e continuou à espera. Sabia que a conversa chegaria, as regras são para serem cumpridas.
- Patos, parecem... – disse o soba grande, baixando a mão e coçando os pés um no outro.
- É, parece, se para a semana ou depois ainda tiver, é o cacimbo que não vem muito longe.
- O nosso filho Nataniel está a chegar, com a Nazamba...
- É verdade, grande dia, todo o povo está feliz.
O silêncio tornou a imperar. Um, não sabia como começar para chegar ao que desejava. O outro, aguardava teimosamente não loquaz porque adivinhava qual a questão e o embaraço. Nehone tinha bem gravada na memória a humilhação que sofrera anos antes quando Juba de Leão agarrara o seu medo na concha da mão e o fizera escutar as palavras cobardes negando-lhe a cadeira e o chapéu, a ascensão ao poder reservado para Nataniel, segundo seu desejo, mesmo sem consultar o conselho de anciãos.
- Sim, está feliz mas também está a falar. - Respondeu o velho.
- A falar, senhor? O que o povo está a falar? – Fingiu surpresa, Nehone.
O soba olhou para o irmão a perscrutar a seriedade, a intenção, da questão. Dando-se por satisfeito, desviou a olhada, baixou a cabeça e, enquanto suspirava fundo, esfregou a carapinha como que a afastar qualquer dúvida. Bateu as palmas e logo apareceram, não se sabe vindos de onde, dois moleques.
- Vão buscar a mutopa e a cabaça da cerveja. – Ordenou.
Nehone mexeu-se no assento. As coincidências entre a conversa mantida há anos sobre a sucessão e o que agora se anunciava, tudo começara com o mesmo cerimonial, inquietavam-no, Juba de Leão sabia que ele pouco bebia e que não fumava.
Ai não, não vai repetir tudo outra vez, não vou aceitar.
- Vieram-me informar sobre conversas...
- Que conversas? – Quis saber Nehone.
- Já lá vamos chegar. Deixa primeiro vir a bebida, tenho sede.
- A casa já está quase pronta. – Disse logo de seguida Nehone, como que a fugir ao assunto.
- Casa? Que casa? – Perguntou Juba de Leão, atónito.
- A casa. A casa para o casal ficar, já esqueceu?
- Cobriram bem o tecto, o capim estava bom?
- Está tudo bem, só falta trazer a cama com o colchão e o armário, que vem do município também a mesa e as cadeiras, mais os pratos e o resto. Fizemos como na cidade, uma sala e um quarto, mas o resto, vão no mato?
O velho levou algum tempo a pensar, o que queria Nehone dizer com o resto vão no mato? Quando se fez luz na sua mente, sorriu abertamente.
- Isso... Fez bem perguntar! Mandem cavar um buraco por trás da casa, cimentar e fazer uma casota à volta. No quarto de dormir põe o alguidar e a jarra que estão na minha casa, mais o espelho.
- Tudo vai ficar pronto para quando chegarem. – Confirmou Nehone.
- Ainda bem, não deixa nada em falso, nossos netos são da cidade.
- É verdade, e são pessoas importantes, doutores.
- Doutores só? – Perguntou o velho, com orgulho mal contido. – Nataniel é coronel ou general. A Nazamba é doutora de advogado e directora.
Os moleques voltaram com a mutopa, as brasas, duas canecas de alumínio e a cabaça da cerveja, que destaparam para o velho ver. Juba de Leão agarrou na concha de madeira e remexeu a bebida, afastando para o lado as impurezas.
- Sirvam. – Ordenou a um deles. - E vão buscar comida, estou com fome.
O facto de o velho soba estar faminto agradou a Nehone, a bebida seria para acompanhar o conduto e não para lhe soltar a língua e os espíritos. Juba de Leão esperou que o moleque que ficara agarrasse nas brasas e as colocasse na boca do cachimbo, para logo em seguida começar a puxar o fumo, duas, três baforadas que o fizeram tossir e cuspir com força para o lado. Mais duas ou três, e considerou o tabaco aceso. Sorriu com satisfação como se o dia começasse então, e olhou para o irmão.
- Você não fuma, nunca te vi a fumar, fazes mal, todo o homem devia fumar e beber.
- É verdade, mas eu nunca acostumei.
- Talvez seja melhor assim, mas isso não importa.
A comida chegou aportada por duas mulheres, que estenderam a esteira no chão, ajoelharam-se diante do velho e destaparam as iguarias para ele ver, uma panela com uma galinha cozida inteira e a outra com as papas endurecidas de milho. Com as mãos, uma delas agarrou na galinha e desfê-la em pequenas partes, colocando-as de volta na panela de barro. Pegou de seguida num pedaço e comeu-o, chupando os dedos.
O velho soba, contente, segurou na moela e começou o repasto enquanto a outra mulher repetia o cerimonial com a cerveja, demonstrando assim que tanto uma quanto a outra não estavam envenenadas. Juba de Leão indicou que as panelas fossem colocadas entre ele e o irmão e fez um sinal para que se afastassem. Nehone deixou que ele petiscasse as miudezas e só depois retirou com a mão esquerda uma perna da galinha, enquanto que, com a outra, amassava uma pequena bola da massa de milho que afogou no molho e levou à boca, com deleite. Dois cães aproximaram-se, ao cheiro da comida, sendo logo enxotados pelos moleques que se mantinham à distância. Comeram em silêncio, a não ser pelos estalos de prazer com a língua ou o chupar dos dedos, os lábios feitos guardanapos campestres. Juba de Leão segurou a caneca com a cerveja e levou-a à boca, tragando em sorvos rápidos. Nehone gostou de ver o irmão revitalizado e, por estranho que pareceu ao soba, concedeu beber uma caneca, empurrando tudo para o acamar no estômago. O soba grande agarrou novamente na mutopa e chupou, feliz, a vida estava boa, uma barriga cheia sempre oferecia novas perspectivas e tornava o mundo circundante mais tranquilo e apelativo.
- Agora podemos falar. - Disse, endireitando o corpo.
Nehone aguardou, sentiu um ligeiro formigueiro nas mãos e coçou-as. Considerou-se preparado para o que viesse, de facto todos deviam comer antes de negociar ou resolver questões importantes, o conforto e o calor no estômago dão alento e coragem.
- Como é que vamos fazer com a Nazamba?
Foi apanhado desprevenido, nunca pensara que Nazamba fosse motivo de preocupação para o soba grande.
- Nazamba, senhor? O que tem a Nazamba?
- O que tem a Nazamba? Então não é nossa neta, a que mandámos embora?
Sorriu um largo sorriso interior. Afinal o velho estava amedrontado com o passado que agora renascia.
Mandámos embora, quem a mandou embora não fui eu, agora chegou o momento de repartir a culpa?
Achou-se rico, havia-lhe sido colocada nas mãos uma dádiva inesperada, a indecisão do velho, o seu medo sobre o que pudesse vir a acontecer quando forças que ele não controlaria se desencadeassem imprevisíveis.
- É verdade, mas também está casada com Nataniel...
- Pois... é verdade.
- Mas está a pensar em quê, então?
- Não sei bem, por isso mandei-te chamar, queria falar contigo antes de ouvir os mais velhos.
Não me ouviste então, hoje já achas que vale a pena?
- A vinda dela poderá causar muita confusão, tudo depende...
- É verdade, por isso precisamos de juntar as nossas ideias. Durante muito tempo sonhei com a minha neta, depois passou. - Confessou, Juba de Leão, inadvertidamente.
- Nunca falou que sonhou com a Nazamba. – Disse Nehone, surpreso. – Quando foi isso?
- Há muito tempo, Nataniel não a tinha ainda conhecido.
- E que diziam os sonhos? – Quis saber.
- Mas para quê? – Perguntou Juba de Leão desconfiado.
Mas para quê? Então não sabe que os sonhos falam?
- Não são os sonhos a verdade?...
Ao ser relembrado da premonição, Juba de Leão estremeceu. Bem o avisara, na altura, o mestre adivinho após ter consultado os ossos e os paus, e a conversa veio-lhe à mente.
- Vejo uma grande sombra, muito grande. Tem a forma de um animal, um elefante furioso. – Revelou Tuluka.
- Elefante furioso?
- Sim, está zangado e é rodeado de muita gente, alguns com caveiras empaladas e cobertos de peles de antílopes.
- Quem são, quem é essa gente então? – Perguntou, temeroso, Juba de Leão.
- Só podem ser os nossos reis e demais antepassados, dançam à volta do elefante que levanta a sua tromba em bramidos terríveis.
- Dançam, dançam, e que mais, e que mais?
- O elefante avança e confronta um leão que lhe faz face.
- Leão? Aiiii... Kalunga... Disseste leão?
- Sim leão, que é esmagado. E olha, sobre o elefante vejo a forma de uma mulher.
É sempre aconselhável saber o que os sonhos dizem, se vamos falar desse assunto - As palavras de Nehone despertaram-no das memórias – Conta então!...
- Falavam do seu regresso e ela vinha sentada nas costas de um elefante.
- De um elefante, não vinha numa cobra? – Perguntou Nehone, interessado.
- Cobra? Não. Vinha no dorso de um elefante
Nehone mais uma vez sorriu largamente para dentro.
Afinal os antepassados mostraram o seu desagrado, e ele manteve tudo em segredo!
- Mas falaram do seu regresso, como?
- Não me lembro bem, só que ela voltava, aparecia no dorso do elefante mas nunca me falava, só me olhava em censura.
- E o elefante, soba, o elefante de que cor era?
- De que cor era? – Surpreendeu-se Juba de Leão.
- Sim, de que cor?
- Era preto, como todos os elefantes.
- O trono dos antepassados!... – saiu-lhe inadvertidamente da boca
- O que dizes? – Perguntou, sem compreender, Juba de Leão.
- E estava feliz, fazia muito barulho, ou pisava tudo à sua frente?
- Não recordo, mas para quê tanta pergunta? – Retorquiu Juba de Leão, não desejoso de falar mais sobre a questão.
- Meu soba, pediu ajuda, responda só à pergunta. – Insistiu Nehone.
- Quando o mestre adivinho me falou a primeira vez, o bicho estava furioso, mas aquele que me aparecia estava feliz, carregava a nossa neta com dança.
Nehone sorriu ostensivamente. – Já não pergunto mais nada.
- E então? – Quis saber o soba.
- Só vou falar mais tarde, hoje não. Deixa a nossa neta vir, não há problemas, vamos recebê-la bem, como filha nossa.
O que lhe deu então, que não quer falar depois de todas essas perguntas?
- Só isso?!..
Juba de Leão estranhou, mas como Nehone parecia satisfeito e contente, não insistiu. Talvez o irmão quisesse dormir sobre tudo o que fora dito, ou pretendesse consultar alguém.
- Está bem, mas sobre isto não deves falar com ninguém... por enquanto. – Alertou.
Devia saber que para se caçar o bagre não se mexe no lodo.
- Não falarei, pode estar descansado.
Os dias passaram céleres, a ansiedade fizera ninho em todas as casas e quando, ao longe começou a ouvir-se o buzinar repetido da viatura do comissário comunal, a comoção foi total, mais parecia que a povoação estava novamente a ser invadida, tanta era a gente que corria e gritava por todos os lados. O soba grande, tentando manter a dignidade e a compostura, caminhava lesto para a mulemba, perseguido pelos outros anciãos, esquecido do portador da sua cadeira que, atarantado, recuara para a ir buscar. O povo fez alas ao longo da rua por onde apareceria a viatura, batendo palmas e já dançando. Nazamba era a expectativa maior, a memória dos mais velhos avivara acontecimentos passados e, ao longo dos dias que procederam a notícia da vinda do casal, foram vários os comentários e as estórias que se cintilaram nos fogos nocturnos do aconchego conjunto de falas e mais falas.
Quando o Land Rover fez a curva que logo anunciava a aldeia, o delírio das mulheres e das crianças foi total. Rodopiaram sobre si mesmas em passos cadenciados de dança. Juba de Leão, para não mostrar o tremor que lhe aferrara o corpo e alma, teve que se sentar. Não muito afastado, Nehone olhou-o pelo canto do olho, meditabundo.
Agora tremes...
Na viatura, Nazamba olhava extasiada, nunca pensara que seriam alvo de tal manifestação. Seu coração batia a ritmo desconcertante, agarrada à mão do esposo que a olhava de soslaio, satisfeito e de igual modo curioso, expectante. Nataniel reconheceu o avô sentado debaixo da mulemba e indicou para Nazamba.
- Olha, aquele velho ali é o nosso avô, o soba grande Juba de Leão.
- Nem me recordo da sua cara, qualquer de um deles poderia ser o nosso avô se não tivesses indicado. Como irá ele reagir? – Indagou, cerrando ainda mais a mão do marido.
Nataniel colocou o braço por cima dos ombros da esposa e acariciou-lhe o queixo.
- Não te preocupes com isso, teremos tempo...
- O que lhe vou dizer?
- Não importa o que lhe irás dizer, cumprimenta-o e quando não souberes o que fazer... olha para mim, eles entenderão.
- Mas eu não sei nada das tradições...
Nataniel olhou para a esposa e sorriu, sentindo-lhe a angústia e a contrição. Também se sentira assim quando chegara a Cuba.
- Pronto saberás tudo, dá tempo ao tempo. Verás que lhes conquistarás o coração.
A viatura estancou junto à árvore e o comissário comunal desceu de imediato, dirigindo-se ao soba, que não teve forças para se levantar. Suas ressequidas pernas tremiam.
- Soba grande, trago-lhe os seus netos, recebe-os em paz.
Nataniel desceu, esperou por Nazamba e, uma vez chegado junto ao avô ajoelhou-se, batendo de seguida as palmas das mãos, três vezes. Juba de Leão, como que energizado, levantou-se, agarrou a espádua do neto e ergueu-o com força. Olhou-o em censura e apertou-o nos braços, enquanto que de seus olhos escorriam lágrimas teimosas.
- Nunca mais te ajoelhes perante mim. – Sussurrou-lhe ao ouvido.
Tentou perceber o reparo do avô, mas não conseguiu. Achou por bem não dizer nada e apertou-o em silêncio. Depois separou-se, olhou para o velho com um largo sorriso, estendeu a mão para Nazamba, que aguardava e puxou-a a si.
- Avô, está aqui a tua neta e minha mulher, a nossa Nazamba.
Nazamba, relutante, resistiu até que pôde à pressão ligeira da mão de Nataniel para se movimentar para o velho ou falar. Este, compreendendo o sentimento da neta, avançou e tomou nas suas, as mãos tensas de Nazamba.
- Meu amor, por favor. – Sussurrou-lhe Nataniel ao ouvido.
- Como está, meu avô? – Disse para que os mais cerca a ouvissem, enquanto abraçava o ancião que, novamente, teve que se sentar. Nehone, observando, baixou o rosto para que não fosse possível ler-se-lhe o sorriso de desprezo que espelhava.
Parabéns minha sobrinha neta, venceste o primeiro encontro, mantém essa força!
- Sentem-se, sentem-se. – Tentou disfarçar as fraquezas, a das pernas e a da coração.
- Há horas que estamos sentados avô.... – Respondeu Nataniel.
- Estão cansados, precisam de comer e beber. Vamos sentem.
- Temos mesmo? - Sussurrou Nazamba ao ouvido do esposo.
Como resposta, Nataniel sentou-se no banco que lhe trouxeram, convidando Nazamba, com um gesto de olhos, a fazer o mesmo. De longe, todos olhavam intensamente, estudando o rosto e os gestos do velho, assim como os da neta. Viram-na perdida e as mulheres mais novas riam, gozando o embaraço da parente citadina, sentada ali ao lado do marido só porque estudara e esquecera, ou talvez nunca aprendera, os costumes, mulher não tinha que sentar ali com os homens.
- Avô, ainda não cumprimentámos os mais velhos.
- É verdade meus filhos, esta minha cabeça está a ficar muito leve.
Percebendo o desconcerto do soba grande, Nehone aproximou-se com um largo sorriso e endereçou-se ao sobrinho.
- Então o meu neto já não me reconhece, não se lembra do velho Nehone?
Nataniel ergue-se lesto e segurou as mãos que o tio-avô lhe estendia. Levou-as à testa e inclinou-se.
- Perdoa-me meu avô, mas o tempo foi muito. – Chegando-se ao ouvido, segredou-lhe. - Lembro sim, lembro muito bem, aliás tenho que devolver-lhe aquele pacote.
- Pacote, que pacote? – Perguntou Nehone em espanto, o que fez com que Juba de Leão olhasse para ele.
- Já não se recorda? – Respondeu bem-humorado, Nataniel.
De repente Nehone lembrou-se e levou as mãos à boca, para esconder a surpresa. Acercou-se ao ouvido de Juba de Leão e explicou-lhe o que se tratava. O velho sorriu e olhou para o neto.
- Fica para mais tarde, agora é comer e tirar a poeira da garganta.
Nehone conduziu o neto e a neta aos mais velhos e, à medida que se cumprimentavam, relembrou-os um a um entre apertos de mãos, sorrisos e a confirmação, como que a desculpá-los, que eram muito jovens para se recordarem de todos deles, agora envelhecidos e sofrendo das marcas do tempo, mas que estavam muito felizes de os ver e esperavam que pudessem ficar ou regressar mais vezes.
Assim que Nazamba teve uma oportunidade, voltou-se para o marido e perguntou-lhe que assunto é que tinha de ser tratado mais tarde.
- Uma questão antiga, depois conto-te.
- E é assim tão séria que teve que ser segredada?
- Não, não é séria, só que lhes é reservada.
- Vocês e os vossos segredos...
Juba de Leão percebendo uma inquietação na neta, voltou-se para Nataniel e sugeriu que Nazamba talvez precisasse de se retirar, tinha ar de cansada.
- É verdade meu avô, eu vou acompanhá-la e volto logo.
- Tem dois miúdos e três raparigas para ajudar tudo no que for preciso, é só chamar.
- Tanta gente assim, para quê? – Perguntou Nazamba.
Perante o olhar de reprovação do avô, baixou a cabeça e enervou-se.
Esqueci-me de lhe falar destas coisas, diacho. Não sabe que se estiver menstruada não pode cozinhar, nem acender o fogo.
- Desculpe avô. – Respondeu Nataniel. – Está um pouco nervosa, logo lhe passará.
- Esta nossa neta já não sabe nada. - Disse Juba de Leão após o casal se ter afastado.
Nehone olhou para o soba e esteve para lhe falar o que pensava.
Então, não a mandaste embora para a terra do pai?
- É verdade, esteve fora muito tempo e desde criança... – respondeu.
O soba grande manteve o olhar, inquiridor, tentando ler-lhe a alma, a intenção, todavia Nehone aguentou sem se intimidar.
Estas indirectas, sempre estas indirectas, o que é que ele quer?
- É verdade, muito tempo... – condescendeu, unicamente para não parecer fraco.
- Vamos ter que falar com o Nataniel. – Disse Nehone.
- Falar com o Nataniel?...
- Tem que ensinar à Nazamba as nossas tradições, a nossa linhagem, tudo.
Mais uma vez Juba de Leão olhou para ele desconfiado.
Nossa linhagem? A propósito de quê, vem esta conversa?
- Sim, ela tem que aprender, mas vai ser difícil.
- Depende, se ela estiver interessada aprenderá rápido. – Respondeu Nehone.
- Está bem, mas agora o nosso neto está a voltar.
Nataniel, de sorriso nos lábios, chegou e pediu licença para se sentar junto ao avô. Aceitou a caneca com a bebida que lhe foi oferecida e disse que sim, que queria comer, estava faminto. O resto dos velhos achegou-se e olhou com orgulho para o filho predilecto da aldeia.
- Recebemos os teus recados quando voltaste de Cuba, mas só agora, passados seis anos nos encontramos, meu neto. – Disse, emocionado, Juba de Leão.
- É verdade, avô. Mas não dava para vir, fui logo para a tropa e esta zona não era uma zona segura.
- O teu primo, o irmão da tua mulher, o Tomás, atacou aqui duas vezes, só por sorte não morri.
- Veio com muita raiva, tivemos que fugir. – Reforçou Nehone.
- Não entende porquê que ele atacou assim a aldeia? – Perguntou Nataniel, desejando ouvir a confirmação pela boca do avô.
- Não recordas, eras criança, mas eles foram mandados embora daqui. – Disse Nehone, com toda a intenção e olhando para Juba de Leão.
- Eles quem? – Perguntou Nataniel, insistindo.
- A tua mulher nunca te falou?
- Chega! – Gritou Juba de Leão.
Estás com medo da verdade? Chega porquê?
Nataniel olhou para o avô e depois para Nehone e tentou entender porque se antagonizavam os irmãos?
- Perdão avô, mas não entendi, a minha mulher nunca me falou de quê? – Fingiu não perceber ou entender.
Explica-lhe agora que a mulher não é filha da terra...
- Deixa, Nataniel, isso fica para mais tarde. – Respondeu Nehone.
- Estou cansado, meu neto e o momento agora é de comer e de saber de ti. Essas questões antigas falamos mais logo. Conta-me do teu trabalho – Mudou de assunto o soba.
O que terá havido, para os dois se digladiarem logo à minha chegada? Será o problema da expulsão da Nazamba?
- Estou a trabalhar no Hospital Militar Central.
- Muito bem, mas conta-me, o que se está a passar em Luanda?
- O que quer saber, avô?
- Isso da paz e das eleições, já estou velho.
- A guerra acabou, assinámos um acordo de paz e agora o povo deve escolher quem vai ser o presidente da república e os deputados.
- Mas acabou mesmo? Continuamos a ouvir muita coisa aqui. – Disse Nehone, apoiado pelos outros velhos.
Nem ele sabia se efectivamente a guerra acabara. No papel sim, mas nos terrenos das operações, nos corações dos políticos e dos militares, será que teria acabado? As palavras eram ainda muito acesas, inflamadas e em alguns bairros de Luanda o terror sentia-se. A truculência evidente. Os rostos trancados de vingança, os conhecidos mas todavia inusitados fardamentos, a transparência da sede do poder nos rostos crispados dos dirigentes que saíram de longos anos de privações e das matas, a jactância dos seus soldados juntos às mulheres citadinas, pouco alentavam as populações das urbes.
- Sim, acho que acabou, embora os estrangeiros, as nações Unidas, não estejam a contribuir para a paz.
- Porquê assim? – Perguntou Juba de Leão.
- Sabe avô, eles deviam ser como um árbitro de futebol, ver que a partida corre bem e quem ganhar ganhou, sem confusões. Mas não, não controlam o desarmamento, aceitam aquelas armas podres e fazem de conta que não vêm os velhos e crianças que estão a aparecer nos campos de desmilitarização como soldados.
- Assim a guerra vai continuar!...
- Esse é o meu medo, avô. Mas vamos confiar e trabalhar para ganharmos as eleições, não podemos perder, senão ninguém vai ficar vivo. Esses meninos bonitos que eles mandaram em Luanda estão a dar a entender isso, afirmam que se não ganharem que vai ficar feio e outras coisas que metem muito medo às gentes.
- E nós aqui, vamos fazer como?
- O avô tem que ouvir bem a rádio, a do governo, não a outra e manter um contacto muito estreito com o camarada comissário. Tem que levar todo o povo a seguir o seu exemplo e o avô já sabe que vai votar no partido e no presidente do seu neto, porque foram eles que me mandaram estudar em Cuba e fizeram de mim médico.
- É mesmo assim, o meu neto falou bem. Mas se a guerra voltar? Esta zona nunca foi segura, hoje está um, amanhã passa outro!...
- É o risco que devemos correr avô, não se pode estar bem com Deus e com o diabo, temos que escolher.
O velho esticou os dedos e retirou um pedaço de galinha que tinha sido trazida há muito. Encheu novamente a sua caneca e a do neto e ficou meditativo. Os outros, de igual modo apreensivos, abanavam as cabeças ou cofiavam as barbas. Nenhum desejava novamente a guerra, esses políticos tinham mesmo que se entender, caso contrário seria o povo metido no meio feito bola de futebol como sempre, e a violência cega a servir de árbitro.
- Mas a maior parte de nós nem sabe ler e escrever. - Disse um dos anciãos.
- Não faz mal, todos temos de votar. Haverá listas com as fotografias das pessoas e as bandeiras dos partidos, só temos que pôr aí uma cruz. - Disse, exemplificando com um gesto. - Tudo vai ser explicado e não podem fazer erro, tem que estar bem claro, porque se errarem o voto não conta.
- Ai filho, é muito complicado. - Respondeu outro velho.
- Vão aprender, vão aprender, é só prestar atenção. – Retorquiu, sorridente, Nataniel.
- Isso é para vocês mais novos, nós nunca votamos. - Falou o mesmo velho.
- Quem é que votou aqui em Angola? Ninguém, é a primeira vez e temos que escolher com cuidado. Os nossos sobas têm que entender tudo muito bem, não é avô?
- Vamos deixar para depois, fala-nos do teu padrinho, como está? – Pôs ponto final à questão.
- Eu ainda estava em Cuba quando ele voltou. Está bem, mais velho e gordo.
A conversa, nesta toada de recordações e factos mais recentes, decorreu até ao acender dos primeiro fogos, altura em que os mais velhos deles principiaram a retirar-se. Nataniel pensou na mulher e esperou que esta estivesse a dormir. Quis ausentar-se, todavia não ousou para não ofender o avô. Tinha muitas perguntas a fazer, sobre Balanta, sobre o primo cunhado, o Tomás, sobre o que o velho pensava, se queria vir para Luanda e viver com eles, porém achou que havia tempo. Calcularam ficar uns quinze a vinte dias e não havia necessidade de desejar cobrir todas as questões logo na primeira jornada. Deu conta que só estavam os três, o avô, Nehone e ele, talvez esperando que dissesse qualquer coisa ou tivesse o primeiro gesto de retirada.
- O avô não vai entrar? Os mosquitos não estão a incomodar?
Juba de Leão riu e voltou-se para o neto
- Estava a pensar a mesma coisa, sim, é melhor irmos para dentro.
- Vamos avô, eu acompanho. – Disse, ajudando o velho a erguer-se.
Os dias pareceram passar céleres, não obstante os poucos afazeres para o casal. Nataniel observava Nazamba via-a tensa, á procura de uma via de entrada, de uma desculpa, de um percalço qualquer do avô que viesse a permitir o escancarar da porta do passado e deixar fluir em catadupas o que retivera por longos anos. Condoeu-se da esposa mas sabia que não deveria ser o polo catalisador, aguardaria o momento e dar-lhe ia o apoio, a solidariedade e a força necessárias para que saídos dali, encontrasse a paz interna e olhasse para o seu passado como uma memória apaziguada, portanto entendido e aceite.
- Achas que deveria ir ver a casa do meu pai? – Perguntou ao marido, num princípio de noite.
- Será que ainda existe? Ninguém nos deu a entender até agora.
- Estranho, não é? Todos me olham como se fosse uma marciana ou usasse uma máscara, ficam à espera de uma reacção.
- É um pouco de receio e um pouco de delicadeza.
- Delicadeza?... – Perguntou, surpresa.
- De uma maneira ou de outra, sabem o que o nosso avô fez e que, por ironia do destino, hoje somos marido e mulher.
- Daí a delicadeza?... – riu.
- É, são gente simples e a situação é incomum, por isso aguardam, ansiosos.
- Mas não me vou embora sem confrontar o nosso avô, tenho esse direito. Tudo tem que ficar clarificado, sobretudo o que aconteceu à minha mãe.
- Estou plenamente de acordo contigo, há que esvaziar esse poço profundo que foi cavado dentro de ti, todavia deves ser cautelosa, ele para alem de ser nosso avô é o soba grande e tu, face a este povo, és uma mulher.
- E então?
- Então que tens que ter um jogo de cintura muito mais elástico do que o meu, por exemplo. Mas conta comigo, estarei do teu lado, até porque a Angola de hoje não é a Angola de quando partiste.
- Essa não é a questão. O fundamental para mim é entender o que se passou. Não imaginas o que foi ver o meu pai estiolar, um homem que era forte, lutador e amante da sua mulher e filhos.
- Sei…
- Sabes?... Tenho essas imagens a importunarem-me, já viram quase fantasmas dentro de mim, e por não entender o que acontecera fui cruel para ele, maltratei-o, neguei-lhe carinho e amor. O lugar dele era aqui, e este velho caduco do nosso avô arruinou a família. – Desatou a chorar.
Nataniel chegou-se a ela e agarrou-a nos braços, cerrando-a, ele próprio lutando com sentimentos de culpa, com a simpatia e solidariedade que instintivamente devia à esposa e com a falta de não poder sentir com a mesma intensidade a raiva e sofrimento dela.
- Eu sei, meu amor. Achas que também não sofro com tudo isso? Mas está feito, tens é que encontrar o teu equilíbrio e contarás sempre comigo.
Ouviu-se um bater fraco, quase que receoso, na porta semiaberta da casa. Calaram-se e esperaram. Nazamba rapidamente limpou as lágrimas e deu as costas à porta. Nataniel pigarreou e por um instante não soube o que fazer. Ainda não era a hora de jantar para eles, portanto não poderiam ser os moleques com a comida.
- Posso entrar?
Reconheceram a voz do tio-avô, e Nataniel levantou-se para deixar Nehone entrar.
- Boa noite avô, faça favor de entrar e de se sentar. Como vai?
- Boa noite avô, como está? Sente-se, por favor. - Ecoou Nazamba, voltando-se e já recomposta.
- Ai meus netos, os ossos doem, já estou a ficar velho, vou mesmo me sentar, obrigado. – Respondeu Nehone.
- O avô quer comer ou beber qualquer coisa? – Perguntou Nataniel.
- Não, obrigado. Vim mesmo só para vos ver e falar um pouco.
- Ainda bem, estou mesmo a precisar de saber umas coisas, avô – disse à queima-roupa Nazamba, o que o surpreendeu.
- Podes falar, minha neta. Mas antes arranja-me só um copo de água.
- Só água?...
- Só água mesmo, a garganta está seca.
Nazamba dirigiu-se ao tosco armário, retirou um copo e foi ao moringue, do qual se serviu. Levou o copo ao avô, num pires, e regressou ao lugar.
O velho recostou-se na cadeira, passou os olhos pelo quarto e, olhou-a nos olhos, sorridente.
Ainda bem que é ela que começou a conversa.
- Está bem fresca esta água, muito obrigada minha neta. Então o que é que queres saber? - Perguntou, fingindo casualidade.
- Esperei que o avô Juba de Leão me falasse dos tempos passados, perguntasse pelo meu pai e me explicasse sobre a minha mãe, mas infelizmente assim não foi.
É mesmo por aí que quero que você vá, minha neta! Fala, fala a tua alma.
- Deve estar à espera de uma melhor oportunidade, o assunto não é fácil para ele. - Disse Nehone.- Deve estar a observar-te, a conhecer-te melhor para saber como começar. Vais ver que é isso.
- Certamente que será isso, logo ele nos procurará. – Reforçou, lesto, Nataniel.
- Até poderá ser, mas não vou ficar à espera. – Respondeu Nazamba, olhando para o tio-avô.
- A pressa é inimiga da razão. Tu nem conheces a história da tua família, o tronco da vossa árvore... – Disse Nehone, fingindo que limpava uma unha, com o polegar.
- Mas quem nos escorraçou daqui então, não foi a família?
- Calma Nazamba, não te excites – disse Nataniel.
- Não, deixa falar, tudo tem que ficar bem explicado. - Incentivou Nehone.
- Mas bem explicado para quê, avô? - Indagou Nataniel.
- Porque tudo tem a sua hora e todos terão que entender o que se falará. A chuva quando cai é para toda a gente. – Respondeu.
- Não entendo! – Disse Nataniel.
- Pois eu entendo! – Respondeu Nazamba. – Fale-me então dessa minha família e dos motivos porque me quer explicar tudo.
- Hoje não… hoje só vou explicar-vos as descendências.
Mas que estória é esta, porque quererá ele explicar-nos as descendências? Será que a da minha mulher é diferente da minha?
- Mas isso vem a propósito de quê? – Perguntou Nataniel, desconfiado.
- Deixa o avô falar! – Solicitou a mulher, de igual modo desconfiada.
- É que, meus netos, devemos saber de onde saímos, a nossa força vem daí, daqueles que nos antecederam e partiram.
- Não entendo. – Disse Nazamba
- Eles é que velam por nós e nos indicam os caminhos. Não se pode esquecer isso, quando o fizermos, estamos perdidos, somos gente sem rumo, pirilampo que acende e apaga sem iluminar nada. Vocês sabem quem são os vossos bisavôs, por exemplo?
Nazamba e Nataniel entreolharam-se e só não riram por respeito ao velho, em tal despreparo se sentiram com o chofre da pergunta.
- Não avô, não sabemos. – Responderam quase que em coro.
- Viram? Viram?... – Perguntou, entusiasmado, Nehone.
- Então diga-nos lá quem foram, avô. – Disse meio a brincar, Nazamba.
Estou mesmo a gostar desta minha neta, nada como o parado do marido.
O velho sentiu-se feliz. Pigarreou como que para aclarar a voz e bebeu do copo. Colocou as mãos sobre o tampo da pequena mesa e afastou o candeeiro mais um pouco para o lado. Guardou silêncio, cabisbaixo, como requerem as grandes ocasiões.
- Olha Nazamba, tu és filha da Balanta e do Marcelo. Não vou agora falar da tua mãe, com a graça de Deus estará viva, e do teu pai tu é que tens que nos falar. O que tu já devias ter feito, não ficar a aguardar que o teu avô Juba de Leão falasse primeiro, mas como cresceste fora da aldeia, a gente percebe. A tua mãe, Balanta, é filha de Kolele, do clã da Lebre, e de Ondjaki, do clã do Cão. Esses, são os teus avós maternos e a tua avó Kolele é irmã de Juba de Leão.
- Clã da Lebre? – Perguntou Nazamba, espantada.
- Olha eu também não sabia, mas deixa, logo explico-te. – Disse Nataniel.
- Sim, portanto os teus avós maternos são Kolele e Ondjaki, ela filha de Luvumbu, que vem dos que se chamam Galo, e de Mabunda, ainda dos da Lebre. Teus bisavôs, do lado da tua mãe, foram Zwela e Karima, filhos dos grandes reis de outros tempos.
- E o que tudo isso faz de mim? – Perguntou, curiosa, Nazamba.
- Faz com a minha neta pertence aos da Lebre, não esquece, tens que saber bem toda a tua linhagem.
- Olhe avô, eu nem sabia que a minha avó se chamava Kolele, o meu pai nunca me falou e nem tenho a certeza se ele próprio saberia. – Disse Nazamba.
- Sabia, sabia, ele é que nunca te falou, deve ter sido a raiva pelo que aconteceu. Como o mandaram embora, deve ter eliminado tudo que era nosso dentro de si, a filha já lhe bastava para relembrar essa parte da sua vida. Sabes, minha neta, nós os pretos vemos o mundo de outra maneira, não é o mesmo mundo dos brancos e assim, parece que não temos coração, que a vida não tem valor ou tem pouco.
- É isso mesmo. Como correram com o meu pai e os filhos e deixaram a minha mãe sozinha? Ela não amava o seu marido, não tinha parido os filhos?
- Tudo isso é muito difícil, minha neta. Como posso explicar hoje, dezoito anos passados e com toda a desgraça que caiu sobre nós? Até o teu irmão Tomás atacou a aldeia duas vezes e tivemos sorte de fugir.
- Deviam ter morrido todos.
O velho calou-se. Olhou para Nataniel e entendeu o seu silêncio. Afinal tinha mesmo que deixar cair a água sobre o passado, e com quanto mais força melhor, só assim aliviaria a dor da neta e talvez a levasse ao que pretendia. Suas palavras, por dolorosas que fossem, deviam ser essa chuva resgatadora.
- Entendo a tua raiva, a tua vontade de vingança, mas se achas que tens que te vingar, nunca será com ódio ou rancor, só com entendimento e com a paciência. – Respondeu Nehone.
- O que quer dizer com isso? – Perguntou Nataniel.
- Por agora nada, um dia vão entender se lembrarem-se das minhas palavras.
- Desculpe, é com o soba Juba de Leão que eu tenho que ter esta conversa, só com ele, o soba grande todo-poderoso que teve que esperar a saída dos brancos para revelar esse poder. – Disse Nazamba, para ferir.
- Nazamba, não precisas de enveredar por aí! – Cortou Nataniel.
- Não? Devias ter ouvido o meu pai e todos aqueles que foram corridos daqui.
- Mas isso é a História, é o rumo dos acontecimentos que o Homem traça e não controla, perde-se neles e a maior parte das vezes até é comido por eles.
- Está bem, vamos ficar por aqui. Falaremos quando estivermos a dois.
- Desculpe avô, a ferida é grande e profunda. – Solicitou Nataniel.
O velho suspirou fundo e aguardou um momento para ter a certeza que a tempestade passara. Com um gesto pediu mais água e, após ter sido servido e tomado uns goles, abriu novamente o seu sorriso.
- É verdade, vamos lá a isso. Nataniel também não dever saber toda a descendência porque saiu cedo para Cuba e nunca mais voltou. Mentira?
- Não avô, é verdade. – Respondeu.
- Pois escuta. Tu és filho de Epalanga, do clã Abelha e de Zeferina, dos descendentes do Rato, como sabes. O teu pai, Epalanga, é filho de Juba de Leão, dos da Lebre e da sua terceira mulher, Teka, daqueles das Abelhas, portanto tu e a Nazamba são parentes mas podem casar, não são das mesmas casas na linhagem.
- E então, avô? – Quis saber Nazamba.
- E então nada, era só para vocês saberem.
- Sabermos o quê? – Insistiu Nazamba.
- Tem calma, a altura vai chegar e aí vais entender tudo.
- Meus Deus, que mistérios avô!...
- Mas quero ainda pedir-vos um favor.
- Fale avô, o quê é? - Perguntou Nataniel, olhando para Nazamba em expectativa.
- Agradeço guardarem por agora esta conversa só para vocês.
Ambos assustaram-se com o pedido, intuíram que havia algo de muito mais profundo nesta vinda dele à casota, com uma explicação aparentemente inócua sobre as raízes de ambos. Tinham vindo de férias e para conhecer a família e resolverem o pleito de Nazamba, não para se envolverem em qualquer outra questão e, muito menos que tivesse a ver com coisas antigas e que lhes eram alheias. Todavia, a exigência carregada no tom do pedido teve o efeito que Nehone desejava.
- Está bem avô, mas depois terá que nos explicar porquê.
- Estejam descansados, quando o momento chegar eu falarei. Agora vou.
- Não quer mesmo comer ou beber nada?
- Não, meus filhos, fiquem bem e boa noite.
Após a saía do velho, o casal não soube o que dizer. No ar, como visgo invisível, fluía pendurada como teia sedosa de aranha gigante, o ritmar da sensação mais estranha e que os atemorizava. Intuíam que qualquer coisa fermentava em determinadas pessoas da aldeia, e Nehone teria sido o primeiro a manifestar-se e introduzindo-os na genealogia comum.
- Acho que devemos regressar a Luanda, tão cedo quanto seja permitido. – Disse Nazamba.
- Também não vamos começar a ver fantasmas onde eles não existem.
- Pois é precisamente isso que eu acho que nos estão a mostrar.
- Como assim? – Perguntou Nataniel, surpreso.
- Então para que foi toda esta conversa e o sigilo exigido?
- Sei lá, coisas de velhos.
- Ai é? E por falar em segredos, o tal pacote, ainda não contaste do que se trata.
- São costumes nossos, Nazamba, são mesmo coisas de velhos e eu era jovem. Foi algo que fez parte dos rituais para minha protecção enquanto me encontrasse fora. Só isso.
- Bom, isso eu entendo. Todos nós nos protegemos contra o desconhecido, seja com o sinal da cruz, com figas, patas de coelho ou qualquer outra superstição. E deu resultado?
Nataniel olhou para a esposa e sorriu, talvez colocando-se a mesma pergunta. No fundo, e não poderia ser de outro modo ou a existência das religiões seria negada, os fabricados caminhos protectores são sempre funcionais, sejam os da protecção benigna, quanto os da maligna, que conduzem ao inferno e à perdição. O fundamental é que haja a crença nos seus poderes, na sua capacidade de acobertar os medos, os receios, as angústias, restituindo a fé, a esperança num amanhã mais promissor. Uma prece, fugaz que seja, uma solicitação à força invisível é tão fundamental quanto um pedaço de pano vermelho amarrado no pulso ou no tornozelo. Invocam e pretendem protecção, indiciam rumos desejados, forjam tranquilidade e balanço que permita o correr monótono do quotidiano.
- Se deu resultado? Acho que deu, guardei o talismã que me foi confiado e aqui estou, formado e casado com a mulher mais formosa do mundo.
- Se pensas que me desvias do assunto com galanteios, estás redondamente enganado. – Respondeu, dando-lhe um beijo na face.
- Acho que devem ter aí um plano qualquer para nos reter.
- Até nem me importaria nada de viver aqui alguns tempos, talvez me ajudasse a reencontrar-me.
- Viver no mato? Tu?
- E porque não? Achas-me incapaz de voltar às raízes?
- Queres uma resposta sincera? Irias ficar sem saber o que fazer.
- Tenho que encontrar a minha mãe, saber do meu irmão...
- Antes de mais devemos ver o que vão dar estas eleições, há vozes ainda muito acaloradas...
- Não acreditas então que a paz seja verdadeira?
- Não sei, os cavaleiros do apocalipse andam à solta.
- Não tens fome? - Perguntou Nazamba para acabar com a conversa.
- Tenho, vou chamar os miúdos da casa. Já te viste a cozinhar lá fora, no fogo, todos os dias?
- Vocês homens têm a mania de que são os únicos a ser capazes de tudo fazer!
Após o jantar Nataniel foi dar um pequeno passeio pela aldeia, seguido por uns tantos jovens desejosos de ouvir relatos da guerra, e Nazamba, agarrando num livro, afastou um pouco o petromax por causa do calor que gerava, concentrou-se na leitura.
O dia amanheceu cinzento, e a bruma cobria a maior parte da aldeia. Deslizando por entre as casas, envolto num longo cobertor que o cobria quase por completo, Nehone entrou, sem se fazer anunciar, por uma delas. Um cão enroscado em si mesmo, preguiçosamente levantou os olhos mortiços para a figura que cruzara a porta do amo e voltou ao sono. Se pensasse, certamente teria indagado qual seria a sorte do assunto que levava o mais velho Nehone a deslocar-se tão cedo à casa de Kavungu, o mestre adivinho.
Depois das saudações, Kavungu veio à porta e encostou-a, não obstante o fumo do pequeno fogo sobre o qual ardia em gemidos prazerosos, uma velha lata de manteiga com uma mistela que relembrava um café muito diluído. Nehone observou-o, como ao espaço que o circundava, repleto de máscaras, paus, raízes, penas e outros artefactos da profissão. O velho Kavungu era pessoa respeitada e tido como um grande curandeiro, a sua fama estendia-se por muitos lugares, até o comissário provincial o mandara chamar, à sorrelfa, ao palácio várias vezes.
- Mano Kavungu, temos que tomar uma decisão, o Nataniel e a Nazamba não vão ficar por muito tempo. – Disse Nehone, aceitando a caneca da mistela e a maçaroca que lhe eram estendidas.
- É uma decisão difícil...
- Pode ser, mas lembra só aquela altura... o que os amuletos falaram...
- Sei... mas temos que tomar cuidado, tudo mudou.
- Mudou como, então? O velho cada vez está mais caduco e naquela altura os antepassados falaram, foi você mesmo que disse...
- É verdade, mas agora há a Nazamba.
- Mas é isso mesmo, não lhe falei já dos sonhos do velho soba? Não é ela que aparece num elefante preto?
- Mas os outros, e o povo, vão aceitar uma filha do branco?
- É nossa filha também, e é você mano Kavungu que tem que convencer o resto.
- Não vai ser fácil, o irmão quis matar o velho...
- Mas todos sabemos porquê, a raiva dele tinha razão de ser.
- Ainda não estou convencido, vamos ter que esperar, preciso consultar o meu cesto outra vez.
- Pode ser, mas o tempo é curto. Quando eles voltarem tudo tem que estar acertado.
O cão ladrou e os velhos calaram-se, aguardando. Ouviram-se passos de crianças em grande correria. O cão tentou entrar e foi corrido com um gaveto que o curandeiro atirou. Voltou ao mesmo sítio e enroscou-se, a terra ainda quente do calor do seu corpo, aconchegando-o.
- Já falaram quando é que desejam ir? – Perguntou Kavungu.
- Não, mas será daqui a pouco tempo, talvez duas semanas.
- Então temos tempo, vou consultar o cesto ainda hoje.
- Porque não o faz à frente de todos os outros?
- É arriscado, primeiro eu só. Depois, amanhã falamos e logo veremos como prosseguir.
- Volto logo à noite, é melhor.
- Está bem, mas traz alguma coisa quente para beber, à noite faz frio.
- Não tem problema, vou trazer.
- Mas já falaste com eles?
- Não, primeiro temos ter a certeza. Só depois falarei com eles.
Kavungu esperou que Nehone saísse para colocar o cesto dos amuletos no centro da sala, após ter fechado a porta com a tranca.
No balaio havia pedaços amarrados de cabelo, retalhos de pele de antílope, duas pequenas figuras de madeira representando um elefante macho e outro fêmea, unhas e dentes de leão, outros de onça, sementes e raízes, argila branca e argila vermelha, penas de galinhas do mato e o que mais.
Quedou-se pensativo por largos momentos, tentando vislumbrar um caminho certo para os pensamentos. Sabia não poder desafiar impunemente o poder do soba grande, a não ser acobertado pela maioria dos anciãos que formavam o conselho e fortificado pelo que os amuletos indicassem. Que Juba de Leão estava velho e incapaz de dirigir com autoridade, todos o sentiam, porem procurar-se substitutos ou regentes sem as devidas cautelas, poderia desencadear jogos de forças contendoras que levariam a sérias desavenças e mesmo mortes. Nestas alturas os venenos funcionam, os percalços e acidentes inexplicáveis viram a justiça do mais forte ou maligno. Teria, pois, que ter a certeza absoluta do sentimento dos velhos e do povo. Nehone desejava vingar-se da humilhação que sofrera há anos quando tivera a pretensão de julgar que Juba de Leão o iria indicar como sucessor ou regente, até Nataniel decidir se aceitava o cargo ou não e, por já os ter ouvido reconhecia que os argumentos que Nehone invocava para tentar levar a bom porto os seus desígnios, eram válidos e evidentes. Kavungu contava com a decrepitude do soba grande e com a possível anuência dos netos, e enquanto esta última condicionante não lhe fosse esclarecida, não arriscaria.
Uma lufada de fumo sacudiu-o da letargia a que se remetera. Endireitou o torso e agarrou no balaio, erguendo-o por cima da cabeça, colocando-o depois novamente ao solo. Por fim, deixou-o ao nível do peito e remexeu-o três vezes, como se peneirasse os amuletos. A cada gesto pedia aos antepassados que lhe mostrassem o caminho, que lhe revelassem a verdade. Por três vezes, ficou em cima o elefante fêmea sobre um dente de leão. Kavungo começou a suar, agitado. Repetiu outras três vezes a adivinhação e outras tantas apareceu o elefante fêmea à superfície, sobre um dente de leão. Homem habituado a ser respeitado, quando não temido, quase desmaiou, nunca na sua vida observara tal fenómeno, sentiu medo, um medo que partiu do mais fundo das entranhas e que se transferiu amarrado para a mente, congelando-lhe os pensamentos e os gestos. Gritou e gritou, mas não conseguiu ouvir a voz própria, sentindo a língua costurada ao céu-da-boca. Aterrorizado, entendeu que se sempre acreditara ser Juba de Leão um poderoso mago, tinha a confirmação e certeza que Nazamba tornar-se-ia no vendaval que varreria o sobado ora abandonado pelos ancestrais, na revelação dos amuletos. Os castigos seriam grandes e fatais se assim não se cumprisse. Dominou-se o suficiente para alcançar uma cabaça e sorveu uns largos tragos de aguardente para dar consistência às pernas que se recusavam a carregá-lo. Por fim colocou o cesto no local próprio de resguardo. Sem pensar no que faria de seguida, enrolou a esteira e pô-la contra a parede, tudo em gestos que lhe pareceram levar uma eternidade.
A conversa com Nehone não poderia ficar para mais tarde, chegou à porta, gritou por um dos assistentes e mandou chamá-lo. Enquanto aguardava sorveu novamente da cabaça de aguardente e reconfortou-se, o coração já não latejava desordenadamente. Recolocou a esteira no centro da sala e o balaio de adivinhação. Pouco depois entrou Nehone, circunspecto, cioso de que alguma coisa teria passado, Kavungu não o chamaria em tão curto de espaço de tempo por ter-se esquecido de um qualquer detalhe.
- Senta, mano. – Disse-lhe, a voz agastada, indicando-lhe o outro lado da esteira.
Nehone sentou-se sem dizer uma palavra e notou, pelo cheiro, que o curandeiro bebera. Aguardou que indicasse porque o mandara chamar.
Kavungu, por sua vez, trancou a porta e sentou-se na esteira, pernas cruzadas uma sobre a outra. Sem mais palavras, agarrou no cesto e ergueu-o sobre a sua cabeça, murmurando as encantações e preces só de si conhecidas. Nehone estremeceu com arrepio inopinado, relembrado do que lhe acontecera com o irmão. Tentou concentrar-se, não fosse o adivinho notar e procurar motivos e razões ocultas na arrepio que ocorrera. Desta vez Kavungu não remexeu o cesto como fizera antes, sobre a esteira atirou de imediato o seu conteúdo e, sobre o dente de leão e todos os outros amuletos, regia imponente o boneco que representava o elefante fêmea. Com o dedo, apontou o resultado para Nehone, cuja expressão indicava incompreensão.
- Olha, o elefante mulher caiu sobre o dente do leão.
Como resposta, Nehone abriu um largo sorriso, começara a perceber o que o adivinho sugeria.
O sonho do velho! A neta aparece sobre um elefante!
- Mas sobre isso eu já tinha contado. Esse sonho já nós conhecemos – respondeu.
- Sim, mas nunca aconteceu que tudo se repetisse três vezes seguidas.
- Três vezes?
- Sim, há pouco atirei três vezes e a resposta foi sempre a mesma. Olha só!...
Agarrou nos amuletos, remeteu-os no balaio e, após as mesmas cantilenas, atirou-os na esteira. Repetiu mais uma vez, com resultado igual.
- Vês? Os espíritos estão muito zangados com Juba de Leão.
- Mas era isso o que eu dizia. – Respondeu Nehone.
- Mas os velhos e o povo vão aceitar a filha do branco?
- Você que é o adivinho, devia saber que nos antepassados não há filho do branco nem filho do preto.
- Vai ser grande confusão.
- Só se quiser, quem duvida do adivinho e dos amuletos?
- E se ela não aceitar?
- Quem mandou o aviso lá do outro lado, sabe o que está a falar. – Respondeu Nehone de modo a cortar possíveis dúvidas.
- Amanhã vou no mato apanhar umas raízes e caçar um pequeno animal. Durmo mesmo em cima do pau, não me esperem, quando regressar falamos com o régulo para convocar o conselho e explicaremos tudo.
- E quando vamos falar com a Nazamba?
- Não tem pressa, primeiro tem que vir o que está primeiro. – Finalizou Kavungu.

MEMÓRIAS DA ILHA


LOANDA

Ante Scriptum:

Com as parangonas que ocasionalmente o tal de acordo ortográfico (para mim teria sido muito melhor se fosso hortográfico) produz mundo fora, veio-me à mente uma discussão antiga de que como se deveria escrever Luanda, de seu nome completo São Paulo de Assumpção de Luanda, hoje com quatrocentos e tal aninhos. Aqui segue o que então escrevi sobre o assunto.


Há dias, um velho amigo mostrou-me um boletim antigo, propriedade da Liga Nacional Africana, o “ANGOLA” nº80/82, de Junho/Agosto de 1943. Ao lê-lo, um artigo reteve a minha atenção, um pouco pela sua actualidade.

Nele, era-nos dado a conhecer que, no semanário “O APOSTOLADO”, o emérito homem do saber que foi Lourenço Mendes da Conceição, demonstrava por a+b porque se escrevia Luanda com “u”.

Cinquenta e dois anos mais tarde, andamos nós ainda e igualmente com a preocupação de escrever, ou não, Cacuaco-Kakuaku, Luena-Lwena, Caxito-Kaxitu, Negaje-Ngaji, Angola-Ngola, e tudo isto com um alfabeto romano que inclui o “k” anglo-saxónico, o “y” grego, etc.

Informa-nos o “ANGOLA” que, em Outubro de 1942, tinha sido posto à venda um opúsculo intitulado “O VOCÁBULO LOANDA”, do senhor Júlio de Castro Lopo, que investia contra a adopção do termo “Luanda”, baseando seus argumentos, entre outros factos, no de não haver, a prior, uma disposição legal contrária, ou seja, o “Diário do Governo” continuava a utilizar a grafia “Loanda”, grafia essa que, igualmente, representava uma tradição de quase quatro séculos.

Não fossem os argumentos da lei e da tradição determinantes, o senhor Júlio Castro Lopo, segundo o “ANGOLA”, avançava ainda com a necessidade de se manter a pureza da língua, e não aquimbundar um termo que sempre se escreveu “à boa maneira portuguesa”.

Caso não se estivesse ainda vencido ou convencido, o bom Júlio Castro Lopo arrasava-nos com a argúcia que, sendo o Kimbundu uma língua inculta, não havia um caso de linguística a resolver pela etimologia da palavra, ipso facto.

Esta tese foi avançada, não obstante o jornal “A PROVÍNCIA DE ANGOLA” de 8 de Janeiro de 1927, ter inserido um artigo, considerado célebre à altura, do padre Ruela Pombo, no qual esse investigador deixava claro e de maneira irrefutável, que era erro utilizar a grafia “Loanda”, dado a palavra ser kimbundu e não portuguesa.

Seguindo nesta senda, o ilustre Lourenço Mendes da Conceição usa o “APOSTOLADO” para, numa série de artigos, mais tarde reunidos em volume em edição do semanário, destruir por completo a teoria de Júlio Castro Lopo. Neles rebatia: a) não ser a grafia “Luanda” nem uma arbitrariedade nem uma ilegalidade; b) não ser o facto de se ter escrito durante quase quatro séculos “Loanda” o suficiente; c) não poderia existir um império da etimologia sobre as chamadas línguas incultas; d) os diferentes significados do vocábulo “Luanda”; e) como se pronunciou e pronuncia o mesmo.

Esta separata, aparecida no “APOSTOLADO”, foi dedicada a Luanda com extensa nota bibliográfica, segundo o “ANGOLA”, demonstrativa de aturado estudo e valioso depoimento de António de Assis Júnior, à altura, o mais competente cultor do Kimbundu.

Após a leitura deste artigo, que nos guarde Deus de alguém se querer envolver em polémica de fonologia, se os nossos locutores (Quosque tandem, TPA, abutere patientia nostra?) devem pronunciar “estrélas, cométas e planétas”, ou dar-lhes aquela tonalidade que certos pensam que seja a própria, em memória das frias praias lusitanas.

sábado, 7 de novembro de 2009

JOSÉ SARAMAGO


AGORA QUE O MAIS VELHO JOSÉ SARAMAGO ESTÁ NOVAMENTE NA RIBALTA, COM O SEU CAIM, RECORDEI-ME DA VISITA DELE À UNIÃO DOS ESCRITORES ANGOLANOS, EM NOVEMBRO DE 2000, ALTURA EM QUE EU ERA PRESIDENTE DA DIRECÇÃO EXECUTIVA DA MESMA.
TIVE O PREVILÉGIO DE TER O LIVRO "A CAVERNA" DEDICADO, O QUE EM GERAL MUITO DIFICILMENTE ELE FAZ. TENHO MAIS UNS DOIS, MAS SÓ RUBRICADOS. PERDOEM-ME A INCONFIDÊNCIA.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

SUMAÚMA


MAGOS

Os magos
atiraram feitiços
para fruir
falas de loucos

e a cobra dançou
ondulante
nos buracos escuros da mente


MADRUGAR

Madrugar
injustiça
secular

terror
ignorância
incolor

lamento
estrela
fermento

amor
carinho
sofredor

COLANS


Esta crónica, verídica, escrevia-a em Maio de 2005 e foi uma das que mais prazer me deu a compô-la, por isso, já tantos anos passados, desejo compartilhá-la novamente convosco. Ao olhar para a televisão, numa notícia sobre os casamentos homossexuais, logo me recordei deste meu trabalho, escrito durante as olimpíadas de Sidney, na Austrália, quando a minha virilidade fora tão abjectamente posta em causa. Logo eu, hum?!... Assim, permitam-me que vos reconte o rocambolesco acontecimento, muito antes da Bruna(o) e do seu jovem “marido” darem este passo de puro avant-guardismo nacional.


Escrevi então, e transcrevo:


A semana passa alguns dos semanários luandenses fizeram furor com o primeiro “casamento “ gay nacional. Não desejo referir-me ao mesmo, cada um come do que gosta, sobretudo na era das modernices, como disse aquele coitado que, chegado de surpresa a casa, apanhou a consorte em desvios matrimoniais com um big, big man: "Ai filha, tu e as tuas modernices! Um dia ainda te apanho a fumar na cama".

Viva pois a globalização.

Há bem pouco tempo, tivemos oportunidade de ver na televisão, penetrando-nos pela casa, atletas de todo o mundo a desfilarem os novos trajos olímpicos, os colans. Delirámos com as centenas deles, cada qual o mais bonito, o mais multicolorido, o mais berrante e chamativo. Inteiros, só parte de baixo, meia perna, etc., numa requintada inovação da moda desportiva. Os que mais atenções chamaram, foram os usados pelos nadadores, numa versão unisexo, às vezes até extravagantes.

Se vos falo desta peça de vestuário, é com o mero intuito de levantar o moral daqueles poucos machos angolenses que a usam, como eu, nas minhas corridas matinais pela Ilha do Cabo. Falo ainda, e igualmente, para protestar quanto ao pernicioso subdesenvolvimento dos luandenses em matérias de colans, e sobre os desagravos a que fui sujeito ipso facto.

Sou dono de um colan preto, curto, que uso ocasionalmente no meu footing matinal na Ilha do Cabo, como já referi. Nada de mais, aliás até somos dois, um vizinho igualmente usa um similar há anos. Talvez nele, por ser negro, o colan passe despercebido, enquanto que eu, com esta pele de kilombo kia hasa (albino) mal disfarçado, provoco toda uma gama de apartes. Jocosos uns, maldosos outros.

Um dia, na contra mão, vejo um casal de meia-idade avançando em passo lento. Ele, um senhor alto, muito alto e de ar distinto. Ela, muito mais baixa e redonda, igualmente dama de distinção. Segundos escassos antes de nos cruzarmos, ele estaca a olhar para mim e, malgré soi, as palavras disparam como pedras:

“Um homem de colans?!...”, escapa-se-lhe, do fundo da alma, a revolta e o descrédito no que via.

A senhora ainda lhe deu uma cotovelada na coxa e olhou para o lado, envergonhada. Só sei que nunca mais os vi na Ilha. Mais vale a pena prevenir do que remediar, terão pensado, vendo-me certamente um marginal perigoso.

Outra vez foi um damo, num carro branco bonito. Vinha, largado, a caminho de Luanda e ao ver-me, trava bruscamente.

Mal imaginava eu porquê!

Pouco depois, já tendo dado a volta na bolacha da estátua do pescador, passa novamente, agora em câmara lenta, tirando os azimutes. Quando entro na recta final, já no outro lado, a caminho da minha casa, eis que dou com o damo estacionado, olhando-me de viés, o motor ligado, muito adequadamente, não vá o diabo tecê-las e afinal o que ele pensa que é, não é, já que nos dias de hoje não dá para arriscar em desmasia, como diz um amigo. Agora julgo saber o que as donzelas sentem quando observam o lobo mau a rondar.

Finjo que não noto, e uns metros mais adiante, ouço a viatura arrancar, passando por mim, de fininho, esvaecendo-se no horizonte, a caminho de Luanda. Teria achado que eu não era, só pode!

Ao chegar a casa penso atirar com os danados colans para o lixo, mais aí a minha sensibilidade revolucionária impediu-me. Disse para comigo mesmo, “bolas, foi assim que a Alemanha perdeu a guerra”, e continuei a usá-los.

Próxima cena!

Um belo domingo, por volta das seis da manhã. Na curva ao fundo da Ilha, encostados às pedras na berma da estrada, dois casais, elas de pé, os barrigudos sentados nas duas caixas térmicas, varrendo o que seriam, penso eu, as últimas fresquinhas da noitada anterior. Uma das tias, a de olho de lince, tão aguçado quanto o seu instinto de caça, mira o arcaboiço do rapaz aqui, que se aproximava naquela passada rítmica e certa. A uns vinte metros, gosta do que vê (presunção e água benta cada um usa da que quer) e quase que não contem a emotividade. O marido (será?) nota o lance da balzaquiana e também olha, preocupado. Apanhada desprevenida, vira-se lesta para a amiga e diz:

“Olha pr’áquele!... Estes velhos têm a mania que ainda f…” (auto censura).

Encho o peito, diminuo o passo a provocar e desafio, garboso, o olhar das manas, quem pensam que são?

“Já viste o cu do gajo? Deve ser bicha!...”, responde lesta a outra, quase na minha cara.

Acuso o toque, possa, não sou de ferro para ser assim ofendido à toa!

“Deve? É, certamente!...”, e larga uma gargalhada de bruxa, vingada pelo deslize não controlado.

O marido (será?), talvez ainda enciumado, atira lenha no fogo.

“O gajo deve ser veado… de colans?”, ouço, já uns cinco metros à frente, meu corpo curvado e a passo lento, vencido.

Não imaginam pois o conforto moral que senti quando vi as Olimpíadas de Sidney., sobretudo a natação. Graças a elas, continuo a usar os meus velhos e surrados colans, orgulhosamente só, porque estou seguro quando o meu vizinho ler este desabafo, vai parar de usar os seus.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

TEATRO (Casimiro Alfredo)


PÁTRIA

ACTO II

CENA 1
(No palco encontra-se a Mãe-Pensador. Colans cingindo o corpo esguio, mantém uma postura ausente, posicionada de cócoras, cotovelos nos joelhos, mãos no rosto. Entra em cena a Jovem. Descalça, entra carregando um galo negro. Os três figurantes que a acompanham, apresentam-se de túnicas rasgadas e sujas, como que regressados de uma longa batalha. Todos calçam agora botas militares. O grupo entra e ganha o centro do palco, formando um semicírculo em torno da Mãe-Pensador).

A JOVEM
(com o galo nas mãos, estende os braços em jeito de oferenda) Ajuda-nos ó Mãe!... Ajuda-nos a saber quem tanto mal nos quer!... Ajuda-nos mãe... ajuda-nos a saber quem os nosso homens atormenta, levando-os a expulsar-nos das lavras... para nelas semearem a própria estropiação... Aceita esta oferta, ó Mãe!... Aceita esta oferta, e ajuda-nos a limpar o mal que na carne germina... que os nossos filhos come, que as nossas casas destruiu, que dos nossos espíritos tem gula...

CORO
Ajuda-nos ó Mãe!... Ajuda-nos a banir os espíritos, que nossas vidas atormentam...

A JOVEM
Aceita esta oferta o Mãe!... Aceita esta oferta e ajuda-nos a limpar o mal que na carne nos germina...
Terão os nossos avós resposta?...
Saberão eles a razão das nossas chagas?...
Serão eles a razão dos nossos males?...
Ajuda-nos ó Mãe!... Ajuda-nos a banir os espíritos que as nossas vidas atormentam...
(insinua-se e vai-se tornando progressivamente audível, um ritmar batucado, que lentamente parece envolver as duas mulheres. A Mãe- Pensador, como que despertada da sua letargia, leva um recipiente aos lábios, entregando-o depois à Jovem, que cumpre o mesmo gesto ritual. O ritmo agora é dominante. As duas mulheres envolvem-se, e perdem-se, num frenesim dançante em torno do trio figurante que, em coro, vai repetindo a última “fala” da Jovem. Apagam-se as luzes, saem os actores)

CENA 2
(Luz vermelha, atmosfera difusa. D.Ana de Sousa, o Padre e João C. de Sousa, movem-se no palco, como que encerrados num espaço limitado por interdições que os transcendem. É o “limbo”. D. Ana e o Padre permanecem juntos. João C. de Sousa, irrequieto, caminha enérgico no espaço limitado pelo, imaginário, limbo)

D. ANA DE SOUSA
(recebendo a bênção)
Vós Padre, vós que conheceis os segredos divinos, sabeis quanto tempo mais aqui permaneceremos?

PADRE
Tempo minha filha?... A purificação é o tempo. Libertação de ofensas terrenas e o desapego, é o que à alma basta para ao Criador se unir...
JOÃO C. DE SOUSA
(Interrompendo brusco)
Ide pregar noutra missão ó Padre. Ide juntar-vos aos correlegionários lá no Congo, ou aos traidores do Colégio de Luanda... Ah!... Pudesse eu regressar e... juro, juro pela minha alma e barba que dessa raça de apóstatas nada sobraria...

PADRE
(Benzendo-se)
Louvada seja a misericórdia do Altíssimo, que tanta blasfémia perdoa e poupa ao fogo do inferno... Cuidai de redimir o ódio que em vida o coração vos empederniu, antes que a alma, única graça que vos resta, caia em poder do demónio...
Chamais traidores aos incansáveis obreiros da Companhia de Jesus?... Acaso ainda vos não abandonou a alucinada... demente suspeita, contra o Ouvidor-Geral e Vereadores da Câmara, durante o triste governo que haveis encabeçado?...

JOÃO C. DE SOUSA
(levando a irritação ao extremo)
Demência Padre?... Chamais demência à imposição da lei, contra as maquiavélicas maquinações do Ouvidor, dos Jesuítas, e daquele filho d’um corno do Alvarez... que fugiu à sindicância alegando perseguição?... (O Padre benze-se repetidas vezes, e de mãos postas, cabeça baixa, parece orar)... Alucinada!... Alucinada é a estória que os hipócritas jesuítas espalharam. E sabeis para quê?... Para justificar o hábito que o Colégio vendeu ao velhaco... hábito vendido em troco de bens, que naquelas terra da Etiópia, pertença D’El-Rei Filipe o III, o danado roubou e roubalhou...

PADRE
Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido...

JOÃO C. DE SOUSA
Escutai ó Padre, escutai a estória por eles contada...
“Espalharam os traidores, que estando o cabrão do Alvarez... Menino Diabo, como alcunha o nomearam... a prestar serviços ao Altíssimo em tempo de Quinta-feira Santa... espalharam os traidores, ó Padre, que possuído por um daqueles pecados, que aos homens incha o nervo dentre as pernas, o Diabo do Menino daí se foi para um canto com a escrava, mas de tal ordem era a inchadura do nervo, que o diabo d’um cabrão, mais a escrava servida. Ficaram coladinhos que nem cães... e contam eles, os jesuítas, que livrou-o do apuro o Altíssimo, a quem por prometimento e voto, a vida e riqueza confiou....”

PADRE
(como se quisesse exorcizar um demónio)
Tarrenego, tarrenego satanás. Abrenuncio. Cruzes canhoto...
D. ANA DE SOUSA
(colocando-se ao lado do Padre)
Não fizesse o Álvarez voto, e certamente sofreria as consequências, da atribulada governação de Vossa Senhoria... ou deverei chamar-vos Padrinho?... Menos de dois anos bastaram, para contra vós se levantarem todas as vozes de súbditos, vassalos, e aliados de Filipe, o III de Portugal, IV de Espanha...
Tendes razão Padre. Libertação de ofensas terrenas é o que à alma basta, para ao Criador se unir...

D. JOÃO C. DE SOUSA
Falais como um cristão-novo D. Ana... a que se deve tamanha devoção?... Idade?... ou adversidade?.-..


D. ANA DE SOUSA
A adversidade, meu bom governador, confirma apenas estratégias e alianças talvez necessárias, mas erradas... quanto à idade, é algo que nunca ireis compreender, mas para vosso proveito vos digo... a idade é a evidência de um ciclo que se esgota, é a dúvida reafirmada, uma oferta por cumprir...

JOÃO C. DE SOUSA
Ora, ora D. Ana!... Deixai-vos de teosofias, que o vosso passado conheço eu bem. Até o céu tem um preço... (voltando-se para o Padre)... minto?...
Dizei-me D. Ana, acaso vos ditou apenas vossa virtude, que uma Igreja com hospício e mais não sei, mandásseis construir?... Tudo por graça, e em graça, de Sta. Maria padroeira da Matamba... abençoada afilhada a minha, que tal devoção manifesta...

D. ANA DE SOUSA
Continuai, continuai a lançar vossa peçonha, que não será a vossa odiosa irreverência a pôr-me de mal com a fé que decidi abraçar...

PADRE
Pobre infeliz!... Deus não negoceia almas, conquista-as pelo amor... D. Ana de Sousa reconciliou-se com o Criador, acaso haveis vós feito o mesmo... antes do corpo vos encomendarem?... Deus me livre da maledicência, mas no “Limoeiro” se encarceram os criminosos, e ao que se diz, o último suspiro lá vos surpreendeu... lá se faz, lá se paga, e aqui se aguarda o troco...

JOÃO C. DE SOUSA
Orai Padre, orai e não sejais maledicente nem malicioso, que isso também é pecado! (vira as costas ao padre e retoma o enérgico vai-vem pelo palco)

CENA 3

(Ouve-se um som de trombetas, preludiando a acção seguinte. Uma luz azul, intensa, ilumina o fundo do palco. D. Ana, como que obedecendo a uma força superior, encaminha-se para a luz, atravessa-a e sai de cena. João C. de Sousa ensaia uns passos na mesma direcção, mas uma invisível barreira parece detê-lo. Cessa o som das trombetas e desaparece a luz. Entra em cena o Degolado. Faz-se acompanhar de dois guardas armados -um de mosquete, outro de lança e adarga -e de um pajem, que empunha, e agita constantemente, um “rabo de cavalo”).

JOÃO C. DE SOUSA
(Para o recém-chegado)
O ceptro e a coroa não vejo, mas digno de um rei é o séquito. Acaso falo com El-Rei D. Pedro Afonso, II do nome?...

O DEGOLADO
4 décadas, 2 Alvarez, 2 duques mais um Conde, e 1 Rei que degolado foi...
4 décadas de Pedro a Garcia... ambos Afonso... passaram...
3 Álvaros... se seguiram após o III... e reinaram...
2 Ducados mais um Condado... o que guarda as portas do reino, chamada Mbamba, o que o reino herda, chamado Nsundi, o que a todos observa, chamado Sonho... dois ducados mais um condado, o poder se disputaram...
1 Rei degolado... em Ambuíla... a cabeça em procissão lhe Levaram, e numa ermida lha guardaram...
4 décadas de Pedro a Garcia... ambos Afonso... passaram. E eu António Afonso, chamado o I, em Ambuíla degolado fui...

JOÃO C. DE SOUSA

Perdão Alteza, mas deveras notável é a fisionómica semelhança...

PADRE
(fazendo uma vénia)
Que a paz de Deus inunde, e afaste do coração de Vossa Majestade, as maléficas sombras do passado...

JOÃO C DE SOUSA
Procurais mais devotos, Padre?... Vede bem, porque este, onde irá Vossa Senhoria meter a hóstia?...

PADRE
(surdo ao remoque)
Que a Srª da Nazaré, vele para que a vossa Real cabeça em paz repouse . Que a Stª Padroeira da Ermida, ajude a penitenciar ofensas e pecados...

O DEGOLADO
É ofensa negar, não aceitar, ambições e guerras alheias, Padre?... É pecado querer distender ódios antigos, esquecer fratricídios e guerras intestinas, para reafirmar uma soberania ameaçada?...
Ofensa seria ignorar a arrogância... demonstrações de força servindo um “trato” que aos filhos da terra extermina, e nem o sangue Real poupa... pecado seria ignorar intentos que minas de ouro exigem, alegando promessas antigas...

PADRE
Vossa Real cabeça na casa de Deus se encontra!... Porque não deixais que da alma, de igual modo se ocupe o Criador?... Os erros que refiro, meu filho, consubstanciaram-se na batalha onde a cabeça haveis perdido, para salvação da alma...
Trágico foi o ano de 1665, em Ambuíla, terras de D. Isabel, fiel vassalo da Coroa portuguesa, por graça da gloriosa acção de Salvador Correia de Sá e Benevides...

JOÃO C. DE SOUSA
(provocador)
Ora, não fiqueis com essa cara Alteza!... Quem sabe um dia Vossa Alteza não regresse, em cortejo triunfal, para da Nazaré... a Santa, não é Padre?... vossa cabeça resgatar, e aos que vossas minas ambicionavam, castigar... Insondáveis são os desígnios do Altíssimo... não é Padre?...

PADRE
Pode Vossa majestade mofar... mas acaso tereis esquecido que a própria Virgem com o Menino ao colo, al lado do Lopes de sequeira, no campo de batalha se manifestou, mostrando a ofensa cometida?... (fazem-se ouvir, como que surgindo do nada, um coro de vozes acompanhado de lamentos. O Padre e João Correia, inquietam-se).

VOZES
(fazendo-se ouvir no palco)
Terão os nossos avós resposta?...
Saberão eles a razão das nossas chagas?...
Serão eles a razão dos nossos males?...
Ajuda-nos ó Mãe! Ajuda-nos a banir os espíritos... que as nossas vidas atormentam!... (cessam as vozes, continuam os lamentos).

JOÃO C. DE SOUSA
(encolhendo-se)
Que prodígio é este ó Padre?... Vozes de Deus, ou vozes do Diabo?

PADRE
(encolhendo-se com João Correia)
Avisos meu filho, avisos do céu tal como em Ambuíla...

O DEGOLADO
(mantendo-se tranquilo)
Ambuíla é um lamento intemporal!... Confluências de vozes imemoriais... futura emanação de alianças e contradições...
Vozes transportadas pela mágica evocação dos segredos da terra... tentando desvendar segredos outros...

JOÃO C. DE SOUSA
(retomando o tom desdenhoso e irónico) Ora, não passamos de ilusória memória, incapazes de evacuar a vivência digerida... (cessam os lamentos).

O IMAGINÁRIO NO TEXTO ANGOLANO

ALFREDO TRONY


NGA MUTURI

Nga Ndreza (nome que tem na sociedade de Luanda, uma sociedade onde só avultam os panos, sim, mas que guarda um certo número de conveniências) afirmara que é livre, que foi criada em Novo Redondo, e pertenceu à família de F…; e quando muito, cala-se quando lhe perguntam se é buxila (1).
Também ninguém faz questão disso já. E que a fizesse! Ela, à força de afirmar que não foi escrava, esqueceu-se de [não] ter sido sempre livre. E contudo quando se senta à porta da casa com a faca fincada entre os joelhos apertados pelos braços seguros pelas mãos enclavinhadas, nas noites de luar quentes e sossegadas, e cujo silêncio é só quebrado a espaços pelo seco bater, na areia da rua, dos pés dos gingamba (2) que carregam uma machila, ou pelos gritos estridentes das molecas da vizinhança que apregoam ruidosas bonzo - ni massa – ia tema, tema, tema (3) ; ou então – ao ver na casa fronteira o vulto da pequena vendedeira, destacando-se na sombra do corredor pela luza avermelhada da candeia de azeite de palma – tem uma vaga recordação de outros tempos passados numas terras muito longe, de onde a trouxera quando era pequena.
Lembra-se de uma mulher a quem chamava mama, enfezada e triste, mas resignada, que a levava pela mão para as sementeiras, e que à noite cantava na cubata, amamentando outro filho enquanto ela comia massa e fijá (4) cozido.
Lembra-se mais, que um dia se abeirou da mãe um preto que era seu irmão, e, depois de muito falarem, ele foi deitar-se e adormeceu; e a mama tomou-a então nos braços silenciosa, deixando cair uma lágrima bem quente sobre o seu rosto. Que ela olhava espantada tudo aquilo, mas que por fim adormecera. Quando saiu o sol, abanaram-na docemente e ela deparou com a mama que tinha uma galinha na mão que acabara de matar. Cozinhou-a no fogo e com o nfungi (5) apresentou-a ao irmão e a ela. Que todos comeram, mas a mama soluçava tristemente queixas sentidas, iguais às que ouvira quando aconteceu a morte do soba. Parecia um tambi (6).
Que depois disto o irmão da mama a puxara pela mão, arrastando-as para fora do cercado da cubata. E ele seguiu-a muda e inconsciente, mas voltando-se viu a mama, com as mãos na cabeça chorando bem triste.
Andara dois dias, ao fim dos quais chegou a uma libata onde morava o tio que a levava. Pelas conversas que ouviu no caminho, soube que o tio tinha sido condenado por juramente, e para pagar o crime a fora buscar à mama, pela lei da terra que obriga os sobrinhos a pagar os quituxi (7) dos tios.
Depois entregaram-na a um preto grande, falando muito, isto diante do soba, que estava rodeado de homens velhos, debaixo de uma grande árvore no meio do largo da libata.
Recordo-me que lhe tinham amarrado a cinta com uma corda feita de casca de um pau, que sobe pelas árvores grandes e as cobre, como as cordas que viu no navio em que a levaram mais tarde para Luanda.
Ainda tem presentes os brutais sofrimentos todas as noites durante a jornada, e os grandes dentes brancos que lhe mostrava o seu dono quando ela chorava e gemia.
Passados muitos dias chegaram a uma libata estranha, onde as casas, todas brancas, eram muito diferentes das que havia na sua terra, e estavam à borda do mar.
Que entrara numa delas onde havia muita peça de fazenda, e missangas penduradas, e fora mostrada a um homem em mangas de camisa, e que a esteve a apalpar e tinha o ventre muito inchado e um olhar igual ao reflexo metálico das chapas de cobre que traziam os pretos de Luanda, que passavam na sua terra.

(1) Filha de escrava ou de mulher livre mas nascida na casa em que serve
(2) Carregadores
(3) Batata-doce, quente, quente, quente.
(4) Milho e feijão
(5) Papas de milho ou de mandioca
(6) Óbito. Há sempre a imolação de um animal, os pobres fazem-no com uma galinha.
(7) Crime

Que este homem falou muito com o tio, e lhe deu muitos panos e um espelho: e que o tio a deixara ali, e voltara para a terra.
Que a mandaram lavar, e desmanchar-lhe o lindo penteado seguro pelo ngunde e tacula que lhe fizera a mama, tirando-lhe as missangas e os búzios e todos os enfeites. Que lhe vestiram uns panos bonitos, e que uma preta que estava em casa e servia o senhor à mesa, olhava para ela, iracunda, e a ameaçava com o olhar, confirmado pelo que lhe dizia às escondidas, de lhe fazer feitiço.
Que o muari (1) inquirindo disto, mandara castigar a preta, e logo que chego pelo mar uma canoa muito grande com umas coisas muito brancas estendidas nuns paus lembrando as asas de uns pássaros enormes que vinham ao rio da sua terra quando começavam as chuvas, metera a preta na tal canoa, e ela ficara sendo a mucama (2) do senhor.

II
Passou alguns anos naquela vida. Tinha aprendido um pouco a língua dos brancos, e já não era desajeitada no vestir dos panos como quando viera.
Um dia o muari esteve doente e meteu-se com ela e dois moleques num navio, que os levou a Luanda.
O senhor foi tirado para o escaler e levado para o cais numa machila, muito doente, para uma casa grande de sobrado. – Que ela seguia atrás da machila a correr, com trabalho, por causa da muita areia. – Depois melhorou, passou para outra casa, onde abriu loja. Tinha muitas chitas, lenços e riscados, que vendia ás pretas da quitanda (3), e a outra gente.
Nga Ndreza conheceu então o que era, e o que devia parecer. Esqueceu-se da primeira época da sua vida, e respondia com umas reticências duvidosas às perguntas que lhe faziam sobre a sua origem.
- Que não sabia bem – isto com ares maliciosos – quem era o pai, mas que se lembrava de um branco quando era pequenina, que a tomava nos braços e a sentava no colo à mesa. – Exactamente o que vira fazer à filha da mucama de um amigo muari. E como era fula (4), todas as comadres que a iam visitar com a ideia de lhe beber o vinho e comer o presunto que o patrão comprava, diziam que sim, que ela tinha sangue branco.
E ela gostava muito, e nessas ocasiões levantava importante e cautelosa a tampa cheia de pregos da caixa de vinho do Porto; e enquanto o patrão estava na jogatina, gastava muito, fazia ceias e bebia de mais.
Quando o patrão vinha de madrugada, e mimoseava o moleque que ficara deitado à porta para lha abrir, com uma antiga moeda de prata de seis macutas (ainda não havia deste dinheiro, hoje está todo no Banco) se ganhava, ou com uma saraivada de pontapés se perdia, encontrava-a a dormir na sua esteira; e ele, muito grosso, como diziam os caixeiros quando o viam assim, acordava-a com umas falas arrastadas para o ajudar a deitar-se, aconchegando-lhe o inchado fígado com uma travesseira, e dando-lhe uma fomentação no baço mais inchado ainda, rogando ele muitas pragas com as dores.

///
A cena de que ela não se quer lembrar, mas, por mais que faça naquelas horas de recolhimento, apresenta-se nítida à sua memória, foi a da surra que o patrão lhe mandou dar.
Como não pode repelir a lembrança, começa no seu pensamento a atenuar o crime – que ela não tivera culpa, porque enfim era menina nova, e o patrão não se importava com ela senão de meses a meses.
Cada vez que se lembrava, sentia os mesmos arrepios que a repassaram quando o patrão deu com ela e o preto da machila, o Ebo, um bonito moço Ginga, forte e esbelto, com uns olhos que eram os seus pecados, na casa por trás da loja onde arrecadavam cascos vazios e outras coisas, ambos encostados a uma pipa.

(1) Senhor da casa, chefe.
(2) Preta criada de quarto e também concubina
(3) Lugar onde, largo ou rua, as mulheres pretas vendem algodões, chitas, pratos, etc.
(4) Preta clara

Ainda lhe tilintam aos ouvidos, como os mazuela (1) dos carregadores, as palavras que disse o patrão:
- Ah, grande…, eu já andava desconfiado. Deixa estar.
Ela pôde fugir pela porta do pátio, e subir pela escada que ia dar à casa de mesa.
Daí a pouco apareceu o patrão seguido de dois pretos do Bengo que tinham vindo com as cargas; e mandando-a amarrar ao mastro que segurava a caixa do macaco, levantaram-lhe os panos e levou cinquenta chicotadas. Ainda se lhe apertam os músculos da parte açoitada com esta lembrança, mas custa-lhe mais a vergonha que sentiu. Se o patrão lhe desse um tiro ou uma facada, como fez um rapaz das cubatas (ainda então não estavam na Ngombota) a quem acontecera o mesmo com a barregã, e então feia como o manipanso de um cabinda que ela era, vá: mas açoitada como os negros, ela a mucama, Nga Muhato (2) como diziam, era de mais.
Enquanto o chicote zunia e o macaco dava saltos na caixa abanando o mastro que a segurava, ela pensava em se matar. E é que também lhe doía muito.
Quando a desamarraram, caiu com o rosto para o chão, fingindo-se morta. Foi um feliz expediente. O patrão disse: - Oh! Diabo! Matei o raio da preta!
Disse que a levassem para o quarto, e mandou à moleca que lhe tinha dado a ela, a Bebeca, que fosse para lá deitar-lhe água na cabeça. Nga Ndreza não saiu do quarto por muito tempo, e a todo o momento esperava que o patrão a vendesse.

III
O quarto dela ficava ao pé da casa de mesa, a varanda, e sempre que o patrão ia jantar, punha-se a olhar e escutar ao buraco da fechadura para ver se falava nela. Tinha também dito à Bebeca para lhe contar se o patrão dizia alguma coisa.
Não buliu no comer que lhe ia da mesa, mas tasquinhava umas postas de peixe compradas na taberna de um degredado, e quicuanga (3), mas tudo às escondidas.
Um dia o patrão ao jantar, depois de os caixeiros descerem para a loja, disse para um vizinho muito amigo que jantava com ele - Assim como assim, fica como dantes. Estou dente, ela já sabe os meus usos. Se há-de vir outra que faça o mesmo e não me sirva…
- É melhor, é - disse o vizinho com compadecimentos hipócritas. – Tu és doente e aquilo não valeu nada. Talvez até nem chegassem a fazer mal.
- Isso não, que eu vi muito bem…
- Pois sim, mas no fim de contas nós estamos velhos. E depois – fez com uma fingida resignação canalha – tudo é o mesmo. Olha, a que lá tenho, que tem fama de ter muito juízo, e sabes que esteve em casa da D. Luísa a aprender, quem sabe o que fará?
- Não - disse o patrão com mágoa -, a tua Chica é boa rapariga, todos o dizem.
- Pois sim, eu também disse aquilo só por falar. Que, deixa-me dizer-te, coitadinha dela se mo fizesse! Mas, meu amigo, eu não como miolo de enxergão, não tenho a tua boa fé, a mim ninguém me faz o ninho atrás da orelha.
E Nga Ndreza ao ouvir isto dardejou-lhe um olhar pelo buraco da fechadura que, se o vizinho visse, não falaria tanto.
Porque ela mais que uma vez pela janela do beco tinha surpreendido a Chica na varanda, em brincadeiras com o caixeiro, o Serra, que o vizinho queria fazer sócio – e quando foi ao Bengo dar balanço à loja que lá tinha entregue a um degredado, uma vez o Serra não lhe estivera a fazer cócegas, e a Chica em corridinhas, com o pano seguro só num ombro, a fingir-se zangada, batendo-lhe com a mão e dizendo – cambo o sonhi (1) – mas em grandes gargalhadas? Oh! Se tinha visto.
E depois a Chica não fugiu para a camarinha e o Serra não foi atrás dela, e fechou-se a porta, e lá estiveram um bom bocado, saindo o Serra primeiro, muito comprometido, e muito corado, olhando desconfiado em volta, e depois ela, como se não tivesse havido nada, não

(1) Guizos que os carregadores usam à cinta para afastar as feras, quando vão para os matos
(2) Senhora, senhora casada (à moda da terra), mulher.
(3) Bolo feito de mandioca fermentada
(4) Falto de vergonha, sem vergonha


veio ralhar com uma severidade digna com a moleca que estava no pátio a brincar com o preto da loja?! Tal e qual.
E nessa rápida lembrança que acompanhou o tal olhar, murmurou:
- Que burro!
Dois dias depois Nga Ndreza já corria pela varanda e à noite o patrão dormiu muito melhor com a fomentação do baço e o conchego do travesseiro debaixo do fígado.

///
Mas Nga Ndreza andava triste, não tinha filho. – As amigas, muito invejosas, diga-se a verdade, diziam que talvez fosse dela, mas que era mau – que os brancos não se prendiam bem, senão quando tinham filhos, que precisava ter um. Lembraram-lhe promessas feitas a Nossa Senhora da Muxima, ou que fizesse feitiços, e fê-los.
Havia uns dias que o muari, quando entrava na camarinha, começava a cheirar, a cheirar, fazendo desagradáveis trejeitos – cheirava mal. Qual seria o gato, ou cão, e corria os cantos da casa, mas nada. Nga Ndreza estendia a sua esteira ao pé da cama, e ficava muito quieta fingindo dormir.
Uma noite o muari disse que havia de saber a causa do mau cheiro. Chamou os moleques, o da mesa que era o Muhongo, e o da loja, e fê-los revistar tudo. Estava desesperado, eis que o Muhongo começou a desfazer a cama e a mexer no colchão.
Nga Ndreza entrou a resmonear, mas o moleque continuava procurando, até que, achando um buraco no colchão pela parte de baixo, e metendo a mão, tirou uns pés, uns ossos e uma cabeça de galo com a sua crista e penas.
Nga Ndreza ficou atrapalhada; o patrão olhou para ela, não disse mais nada: foi a um canto, tirou um junco, e zás, zás, zás, nas suas costas roliças e luzidias. – Caíram-lhe os panos de cima, e mesmo assim, com as mãos cruzadas no seio, fugiu para a varanda. O patrão deixou-a, e nessa noite dormiu numa cama de campanha que estava ao pé da sala onde jogavam às vezes.
Era a acama onde costumava dormir o juiz um grande sono, até vir a canja, quando ia lá à batota, e o limpavam logo ao princípio.
No dia seguinte veio o mestre Pedro, colchoeiro, e fez o novo colchão. Nga ndreza esteve muito séria; não comeu, nesse dia nem no outro.
Enfim as coisas compuseram-se. Tinha chegado novo sortimento ao patrão, e ele mandou-a chamar uma noite à loja depois de fechadas as portas da rua e ali lhe fez escolher um pano da costa, umas peças de chita e um fio de corais, daqueles grandes que custam a macunha tato ni tato ni kipaca (1) – cada bago, bagos muito grandes. Então ela contou-lhe tudo, com certas reservas todavia - Disse-lhe ele que não se importasse, que se morresse não havia de ficar sem nada.

///
Pouco tempo depois o patrão entrou numa noite para casa a queixar-se de uma pontada no lado esquerdo, e pontada foi que no outro dia estava morto.
Nga Ndreza portou-se dignamente.
Quando vieram os galfarros da Junta, como dizia o vizinho, que ficara testamenteiro, o escrivão deputado (ainda não havia secretário como hoje) viu-a sobre a cama ao lado do cadáver do patrão, que estava coberto com um lençol.
O escrivão-deputado chegara do Reino havia pouco tempo e estranhou o caso; mas o escriturário, filho do país, muito asseado e com o peitilho da camisa muito lustroso, fez a cortesia digna e disse: - São os usos da terra, é óbito.
E como o defunto encarregara o testamenteiro de liquidar a herança e entregá-la aos herdeiros directamente, pouco tiveram a fazer, saindo logo o escrivão-deputado na frente, em seguida o vizinho com muitas cortesias e dizendo a tudo: -“Sim senhor, sim” -, e mais atrás o escriturário que perdeu uns minutos a cumprimentar muitas raparigas, todas com os seus

(1) 1000, a tradução: 33 macutas e 10 réis.
panos negros a cheirar muito, à tinta, e que faziam companhia à Nga Muturi (1). O escriturário ao sair a porta cruzou com uma sua conhecida que entrava rebolando muito presumida as cadeiras monstruosas, mas com o parecer consternadíssimo, e ao cruzar deu-lhe ali um belo apertão, mas conservando sempre a gravidade da ocasião. […]

V
[…] Nga Muturi, passado o nojo, foi para sua casa e tratou de vender a roupa do falecido, que ele lhe tinha deixado e mais a mobília.
Houve uns zunzuns por ocasião da entrega da roupa a Nga Muturi feita pelo testamenteiro, que tinha levado muito tempo, diziam, mas foi peta. – As malditas línguas de Luanda, que tudo envenenam – dizia o testamenteiro ao Lopes, guarda-livros da Sobral, e muito gabado em escrituração, uma vez que ele lhe contou o que se rosnava. – Que era impossível praticar ele tal acção, estando ainda quentes as cinzas do seu amigo. – E dizia isto indignado, furioso passeando rápido ma loja fora do balcão.
Nga Muturi afligiu-se muito quando uma amiga, com assomos de indignação hipócrita, lhe referiu, valha a verdade muito acrescentando. Esteve muito tempo a falar, dizendo que ela não era negra, nem tinha os costumes que diziam isto, e repetia isso muitas vezes, fitando a amiga. Esta, que não podia perder as relações de Nga Muturi, atalhou logo – que aquilo tudo era inveja por ela estar rica.
Via-se embaraçada para vender a roupa, mas por conselho do testamenteiro entregou-a ao Serra que ia para Casengo à colheita, e lhe dizia que ali se trocava tudo a café muito bem, que era um negócio da China.
Quem não ficou contente coma incumbência quando soube foi a Chica.
Aproximava-se o aniversário do óbito. Já se falava nas missas, e todos diziam que seriam de estrondo. E foram faladas com efeito.
A gaêta (2) era das melhores, e o batuque tinha vindo do Bengo. Havia dois tocadores que se revezavam. Quem tocava o batuque era o Felèla, que tinha sido moleque do Ferreira e dele tirava o nome estropiado. A ricanza de bordão, novinha em folha, era esfregada com toda a arte por uma velha já sem dentes, mas ainda muito amiga de brincadeira. Fora das melhores para a brincadeira, nos seus tempos.
- Se a vissem – dizia o velho Torres, com umas saudades lúbricas de outrora.
Dançaram toda a tarde e toda a noite. Houve muita concorrência. O vizinho deu um bezerro, e um garrafão de vinho. Nga Muturi teve mais outros presentes. Ainda gastou muito dinheiro.
Muito nfungi e carne guisada. Houve quitoto. Aguardente e genebra. Como sabia que iam brancos, tinha duas garrafas de vinho do Porta marca Triumpho de Bacho. O Santana, guarda da alfândega, que era quem lhe escrevia as cartas para Casengo, para o Serra, por causa da roupa, foi de opinião que comprasse do Maria Claudina, isso é que era vinho, que era a melhor marca. Que o Triumpho de Bacho vinha todo falsificado. O primeiro que veio, esse sim. Mas Nga Muturi, como o vizinho do defunto falecido só tinha desta marca, não o quis escandalizar, comprando em outra parte.
Foi um batuque falado. Dançavam no pátio. O João das Lanchas emprestou uma vela que servia de toldo.
Estavam duas velas nos castiçais de louça branca com florões dourados dentro das mangas de vidro no meio do quintal a alumiar. Dançavam em roda.
Apareceu tudo quanto havia de bom em raparigas. – As filhas naturais do tenente-coronel Fontoura, que tinha morrido no Golungo Alto, com as suas exageradas quindumbas (3), eram as que dançavam melhor, com mais garbo. Todos o diziam. A porta do corredor estava fechada para não deixar entrar todo o fiel patife. O Santana era quem tinha a chave.


(1) Senhora viúva
(2) Corrupção de gaita. É como n terra é designado o harmónio, instrumento indispensável num batuque na cidade. A orquestra compõe-se de gaeta, batuque e ricanza
(3) O cabelo muito levantado adiante e cortado de forma que figura um diadema.


///
O Lobato, claviculário do Cofre dos Órfãos, também lá foi com o delegado novo que tinha chegado no último paquete. Quem pediu ao Lobato para o apresentar foi o ajudante da conservatória.
Na varanda estavam as sobrinhas do Monteval, que não dançavam porque eram de vestidos. Nga Muturi não queria dançar também, por mais que a desafiassem - Que não parecia bem, que tinha de fazer as honras da casa.
À meia-noite bateram à porta, e entro o Serra, tinha chegado naquele momento de Cazengo, no Cunga. Nga Muturi ficou muito contente e correspondeu-lhe as duas sembas que ele lhe deu. Tinha bebido dois copos de vinho ao jantar, e, a pretexto de incomodada do estômago, tomou o cálice de genebra.
Tinha o olho brilhante, e falava com verbosidade para todos, e especialmente para o Serra a quem perguntava muitas coisas. O Serra vinha pálido, mas não descansava no batuque. Apesar de um amigo, que tinha vindo com ele, lhe dizer que não bebesse genebra, não fazia caso e entronava copinho sobre copinho. – Que estava muito suado, que não queria que lhe fizesse mal.
Às três horas acabou-se a festa, para continuar no outro dia.
O Serra foi o último a sair. Nga Mututi tinha muito que lhe falar por causa da roupa. Tocava já a alvorada.

VI
As missas continuaram.
Haviam de durar oito dias, nada menos, dizia Nga Muturi, e muito melhor que as dos Mártires, pelo irmão que tinha sido capelão cantor, porque as dele, cuja memória ainda estava fresca, se haviam durado oito dias, fora à custa dos convidados, que todas as noites tinham de concorrer com a sua espórtula. As de Nga Muturi – essas não, seriam à sua custa unicamente, que não precisava de subscrições.
Ao quarto dia, porém, sentiu-se incomodada, um mal-estar esquisito, estranho. – As amigas notaram-lhe a face demudada. Ela dizia que era cansaço, mas os oito dias seriam cheios.
Não foram, porque a tristeza da dona da casa dava um tom sombrio à festa.
Enfim passaram os oito dias e as raparigas começaram a pensar lembrar-se de que missas estavam à bica. Falava-se nas de D. Luísa pelo marido; nas de José Bento pela mãe e não faltavam as raparigas com denguices aos homens com quem tratavam para alcançar dinheiro para novos panos.

///
Ao nono dia depois das missas, Nga Muturi, que não se sentia melhor, arranjou-se conforme pôde, e foi à botica do Teves. Era de manhã. Chegou mesmo quando ele saía da machila que o trouxera das caieiras, que tinha ido ver cedo, como costume.
Ngana Teve, como ela o cumprimentou, começou logo com o seu palavriado de costume, perguntando-lhe o que tinha, quando casava, dando-lhe muitos conselhos, que tivesse juízo, que não se deixasse comer.
Nga Muturi, coberta com o seu pano preto e os olhos baixos, começou com meias palavras a queixar-se de um mal, que lhe parecia lombriga, porque sentia isto e aquilo, com umas reticências duvidosas, a ponto de Ngana teve olhar muito fito para ela e dizer:
- Já sei, já sei. – E levou-a para um canto da farmácia ao pé da porta que deita para a escada, e ali fez perguntas em voz baixa a Nga Muturi, às quais ela respondia com os olhos no chão, por monossílabos, espalmando a mão sobre os panos, como querendo acertá-los.
Ngana Teve concluiu em voz alta:
- Está bom, está bom. Vai-te embora, rapariga, e manda cá uma garrafa para te arranjar o gomoso.
E quando ela se retirava, envergonhada, ele da porta, com a sua bengala de gancho a bater pancadinhas na soleira, disse-lhe de longe:
- Olha os banhos, hem, com malvas.

///
Nga Muturi nunca mais pôde ver o Serra. Lembrou-se até de lhe fazer feitiço, mas abandonou o projecto com um longo suspiro. […]

In “Nga Muturi”, União dos Escritores Angolanos, 1980

ALFREDO TRONY
Nasceu em Portugal, a 4 de Fevereiro de 1845, e faleceu em Luanda a 25 de Julho de 2004, tendo-se dedicou à advocacia. Fundou e dirigiu os periódicos Jornal de Loanda (1878), Mukuarimi (1888), e Os Concelhos de Leste (1891). Os excertos aqui contidos, são da sua única novela, Nga Muturi, primeiramente publicada em folhetim no Diário da Manhã, jornal português, em 1882, descoberta e reunida em volume quase um século mais tarde

O PADRE


Com aquela mania de sempre andar com um pequeno canivete nas mãos, usado para cortar as cabeças dos sardões menos lestos, ficara apodado de Zé Canivete. Não que fosse congenitamente maldoso, todavia o mato, a natureza, com suas leis inexoráveis, desenvolvia em nós crianças rurais, sensações e actos que se integravam plenamente na sua essência e manifestações.

Que diferença haveria entre um Louva-a-Deus a triturar em suas poderosas mandíbulas verdes uma cigarra, trinando angústia estrídula no despedir da vida, e o Zeca Canivete a agarrar o sardão para o decapitar a fim de que pudéssemos observar, com eterno pasmo e expectativa, o seu corpo estrebuchar?

O que poderá parecer insensibilidade, talvez sadismo precoce, era o exteriorizar das leis que a natureza revelava e imprimia subliminarmente. Se a inocência se caracterizava nos brinquedos de bordão que construíamos, a lâmina afiada na pedra era a possibilidade de domar o inexplicável, neste caso, a vida ou a morte, no mesmo rito que a cobra engolia o passarinho indefeso em encantamento.

No meio de todos os fantasmas, monstros e seres indescritíveis que a imaginação produzia, sentíamos sobremaneira a poesia da crueldade como sublimação das sensações. O subconsciente, transfigurado no medo ao relâmpago, por exemplo, era algo que não nos cabia entender, vinha dos primórdios do gesto humano. Em termos reais era-nos tão estranho quanto o haveria de ser para o sardão ao lhe ser cortada a cabeça. Deste modo, arremessávamos na balança da vida o contraponto dos valores, permitindo o seguir do curso natural de um rio ora mais fundo, ora mais raso, em queda, tormentoso ou sereno, conforme se afunilasse ou espraiasse. Se nosso crescer fosse suas margens, restava-nos aprender efectivamente se era o rio que as fazia, ou elas que o controlavam, que ditavam a personalidade da sua fluidez e caminhos.

Só mais tarde, muitos anos mais tarde, por paciência ou por imbecilidade, encontramos algumas das respostas que, quiçá, nos tranquilizem o suficiente para justificarmos o instinto, a agressividade do animal ainda tão perto da caverna há pouco abandonada. Na essência, os grunhidos continuam a sê-lo, mesmo se revestidos de suposta transcendência em relação ao primeiro momento do seu significado e propósito. Pouco nos separa das vibrações animalejas, dos medos naturais e primordiais, por muito seguros que nos vejamos nos caminhos já trilháveis da divinização humana, esboçando um pretenso entendimento do cosmos, enfim, daquilo do que para lá resta infindável. Continuaremos a grunhir, como grunhiu o primeiro, até ao dia em que arrogantemente se tente subjugar por completo a Natureza, pensando que suas leis, por mais domadas que estejam, sejam conquista da ciência sobre a metafísica, conquista do racional sobre o medo. E aí, ela se vingará da arrogância e da premeditação, e forçar-nos-á a olhar novamente para o umbigo com a humildade de quem redescobriu que é parte intrínseca e inalienável dela.

Por isso, para nós, o perigo estava no silêncio do mato porque um qualquer kifumbe nos poderia salta à frente no cafezal ou no bananal, coito das surucucus.

O silêncio ensurdecedor do mato é a mais terrível das sensações. Cortar a cabeça aos sardões era tão banal quanto chamar ao José Silva, Zeca Canivete. Em ambas as atitudes, havia uma evidente falta de imaginação, um seguir natural da acção, como a noite a seguir o dia. O resto, era abstracção. Eram os corpos dos sardões a retornar à decomposição, pelo nosso prazer infantil.

Nunca poderíamos, então, pensar ou julgar que, o atravessar do bananal medonho, os medos que sentíamos ao prever a aparição do kifumbe, seriam os mesmos ou mais profundos, ainda que conscientes, que o sardão sentiria ao ser caçado e agarrado e depois decapitado. Tanto nós quanto os sardões, perante este enigma e dilema comuns, fugíamos aterrados pelas picadas da selva, pois não tínhamos conhecimentos para saber que a Natureza, Deus, é um acto e uma criação do Medo, um gesto humano que nos leva a concentramo-nos sobre nós mesmos e nossa irrelevância universal, na busca perene do Equilíbrio.

E foi, quem sabe, por esses códigos naturais e imutáveis da Justiça, que Zeca Canivete, anos mais tarde, tornou-se padre e enlouqueceu numa prisão.

Teria ele uns dez anos quando o pároco da missão católica, a muito custo, conseguiu convencer a família a deixá-lo entrar para o seminário. A nossa perda foi incomensurável. Perdemos o irmão, um pedaço que se esvaía, um sopro a menos em nossas vidas. Quando tivemos a certeza de que ele partiria para sempre, apanhamos tantos sardões quanto possível e purgamos nossa frustração no ritual agora da orfandade precipitada.

Numa manhã de cacimbo vimo-lo subir para a carroçaria da carrinha do roceiro, rumo a Vila Salazar, onde apanharia o comboio para Luanda. Pela primeira vez, soubemos o que era o significado do sonho desfeito, afinal a vida tinha regras que não se compadeciam com o desordenado ritmar dos nossos corações imberbes. Nessa mesma noite sofri pesadelos terríveis, onde aparecia no meio de centenas de campas à berma da estrada, com um sardão em contorcionada agonia, encimando cada uma delas. E de longe, muito longe, em som diáfano, ouvi o riso de escárnio de Zeca Canivete, repercutindo pela floresta em cada árvore. Tive então a certeza de o amigo dilecto nunca mais voltaria, era o castigo personificado, as forças do mal desceriam sobre nós. Os sonhos, revelou-nos o mestre adivinho que consultamos, mostrava que corríamos perigo se continuássemos a cortar as cabeças dos sardões, também filhos da Natureza, portanto, da vida e de Deus. Os animais faziam parte da nossa vida no Mundo. Quando se sacrificava um galo ou um cabrito, mesmo um cão, para satisfazer a ira de um qualquer espírito zangado, era um gesto natural permitido. Todavia, sacrificar animais só pelo prazer de olhar para a morte sacolejando no corpo do bicho, poderia ser maléfico, no meio de muitos desses sardões, uns seriam conselheiros de Kalunga. Ele, o mestre, ainda na véspera ouvira uma galinha a tentar imitar um galo, deveríamos parar imediatamente com essas práticas, a partida do nosso amigo era um sinal claro do desagrado do mundo espiritual.

Perdemos o que nos restara da inocência, ao entrarmos no mundo invisível. O medo ao castigo desconhecido, passara a estar ali atrás de qualquer árvore.

No domingo, após a missa na missão, dirigimo-nos para o açude que existia na roça de um dos fazendeiros, laço encarnado amarrado no tornozelo, conforme instruções do mestre curandeiro, e lavamos a pemba encarnada que nos fora colocada pelo corpo. Não poderíamos ser apanhados assim publicamente, e juramos que se alguma vez o Zeca Canivete voltasse à aldeia, haveríamos de o denunciar como feiticeiro perigoso.

Mal sabíamos que José da Silva, anos mais tarde, seria efectivamente padre e um dos nomes na luta de libertação nacional. Acabou por ser desterrado para um campo de concentração onde, à força de questionar Deus sobre Suas estranhas maneiras de agir, veio-lhe repentinamente à mente a carnificina contra os sardões e, entendendo pela geometria do oposto o que questionava e o que fizera, percebeu a inutilidade da Consciência.

Nessa partícula do momento, enlouqueceu para todo o sempre. Viveu o resto da pouca vida que lhe coube amarrado, porque por duas vezes tentara cotar o seu próprio pescoço.

domingo, 1 de novembro de 2009

AMOR DE PERDIÇÃO


Na Ilha do Cabo não havia quem não conhecesse o Bola de Funji, assim apelidado não se sabe bem porque razões. Talvez pela gordura e indolência.
O Bola era uma paz de homem, manso como um boi .
Era raro vê-lo nervoso ou zangado e passava tão despercebido que nunca se lhe conhecera uma namorada. Arranjara emprego numa sociedade de armadores como mecânico de motores navais, sendo respeitado e o seu trabalho apreciado. Um verdadeiro profissional.
Julieta Neves, igualmente da Ilha, era uma jovem mulher, daquelas que gostam de mandar e habituada a levar razão. Durante muitos anos vendeu peixe; porém, um dia decidiu que não era profissão para si, arranjou um cooperante búlgaro que lhe pagou um curso de informática e lá foi Julieta trabalhar para a Bulgarexport, como secretária. Infelizmente sua prestação laboral foi uma verdadeira bulgaridade. Até ele, estrangeiro, conseguia escrever melhor português. Acabou-se o trabalho e, por consequência lógica, o patrocínio da bela marítima ao búlgaro.
Após várias outras tentativas, igualmente infrutíferas, descartou um italiano de quem muito gostou, um brasileiro e um jugoslavo. Optou, assim, por voltar à venda do peixe, profissão muito mais artística e conforme a sua natureza expansiva.
Foi com grande espanto, pois, que os locais viram o Bola de Funji começar a andar com a Julieta Neves.
“Aué mana, coitado dele!”..., dizia uma.
“Eh! Vai fazer então o quê, com ela, se nem os cooperas lhe aguentaram!”, dizia outra.
“Entafuna ka dya ko ekumanana i diye?”, alvitrou uma terceira.*
“Xê, você então, aqui ninguém fala kikongo.”, atirou a que primeiro falara.
“Quer dizer que devemos aproveitar o que aparecer...”, respondeu a outra.
Bola de Funji subiu na consideração de muitos. Afinal o homem era touro bravo, de boi manso só a aparência.
“Sabe mano”, dizia um pescador, “às vezes essas gajas assim precisam é mesmo dum que não lhes ligue muito..”
“Não sei, papá!... Quem já viu o dia casar com a noite? Nunca!... Um só segue o outro, nunca se encontram.”, respondeu um outro pescador.
“Mas o que lhe deu então? Nunca lhe vimos com mulher e agora, de repente, agarra logo nessa que já passou em tanta mão que até tem marca.”
“Pode ser que dá certo.”
Durante um ano deu certo, certo até para desconfiar, diziam as invejosas cujos maridos as haviam abandonado. Todavia, para desconfiar nunca houve mesmo nada.
Bola de Funji era bom marido, sempre em casa a horas, salário religiosamente nas mãos da mulher que lhe devolvia um tanto para os cigarros, um filho parido há pouco, enfim, nada para se lamentar. O resto era só inveja, esse sentimento tão comum a toda a gente luandense, que nunca conseguiu aceitar ver o próximo a ter sucesso ou viver tranquilo.
Por seu lado, Julieta Neves sossegara bastante, mantinha o lar com um mínimo de dedicação já que se consagrava ao peixe durante a maior parte da manhã, cuidava do filho e do marido e nunca lhe dera aso a reprovação.
Mas...
Há que haver sempre um “mas” na vida das pessoas. Um dia, Julieta encontrou-se com o italiano, Vittorio, o antigo amante e de quem ela verdadeiramente gostara, a despeito de a ter despedido e mandado embora quando deu conta que escrevia melhor português que ela.
“Buon dia Djulieta, cosa fai?...”
“Buon dia uma ova, seu cabrão de merda.”
“Djulieta!... Non fala cosi!...”, implorou com as mãos o napolitano.
“Que queres, já esqueceste que me abandonaste?”
“Ma cara mia, non sono io che te abandonou, io estava enamorato de te. Ma tu non podia lavorare colocando una hora para scrivere una lettera...”, tentou safar-se. “E dopo, tu non vogliava piu fare amore!”
“Julgavas que ia continuar a ser tua depois de me pores na rua?”
“Te voglio bene Djulieta!”
“Ai é? E de que me serviu isso?”
Pressentindo que a amaciara um pouco, Vittorio ligou a cem por cento o charme da bela Itália.
“Djulieta, te ricercato molto e non me quisseste... noi due eravamo para andar in Italia. “
“Engana-me que eu gosto, seu mentiroso dum raio. Agora sou casada! CA-SA-DA!...”, atirou-lhe, para ver o efeito.
“Non fare male, non sono geloso...”
“Geloso?...”
“Tchiumento!...”
“Não és ciumento?, que engraçadinho, mas cuidado que o meu marido é.”
“Quem, Bola de Funghi? Io sono estato a domandare, tuo marido non mata una mosca.
“Até pode ser, e por isso te mate a ti. Desaparece, vai à tua vida!”
“Va bene, va bene, ritorno domani e dopo andiamo a fare un giro.”
“Stronzo, todo este tempo aqui e ainda não aprendeste a falar português?”
Vittorio largou uma gargalhada e despediu-se, comprando-lhe duas garoupas. Julieta, sem o querer, arrumou o cabelo e os seios. Depois sorriu e remeteu-se ao trabalho.
“Merda!... Não fui feita para ser peixeira!”
“Ua zuela ima iai?”, perguntou-lhe a outra do lado.(O que disseste?)
“Não chateia, pá! Cuida da tua vida.”
“Tá bem, tá bem, só précurei saber!... Aué, kima kiai ki nga kubange?” (Que mal te fiz?)
Vittorio foi aparecendo com calculada frequência. Para além do charme e do sorriso a que Julieta conseguia dificilmente resistir, trazia sempre uma pequena prenda, aquele perfume que ela tanto gostava, um lenço, uns trocos a mais que fingia esquecer quando comprava o peixe.
As peixeiras vizinhas começavam a cruzar olhares insinuantes quando o Fiat do italiano aparecia, sobretudo porque pronto se notava uma mudança nos ares de Julieta. Logo tirava o pano que a cobria da cintura para baixo, revelando uma insinuante mini saia, sem falar do generoso decote que sempre usava. Quem olhasse para ela nesses momentos, não deixaria de notar e ver ali uma peixeira muito mal empregue.
“Uno desperdício!... Uno desperdício!”, dizia o italiano, erguendo as mãos ao céu.
“Agora já nem se cumprimenta?”, perguntaram as do lado. “Só tem olhos para ela, é? Cuidado então com o Bola de Funji!...”
“Buono dia sinhorinas, sono venuto para domandare a Djulieta que me faça, no prosimo sábado
una feidjoada com tutti, io ho amicci italiani que tchegam en Angola questa matina.”
“Agora sou tua cozinheira, é?”, disse Julieta meneando as ancas.
Vittorio piscou-lhe um olho, esperando que não tivesse sido notado.
“Non, Djulieta, non!... Voi pagar-te, cem dólares, solo para o sábado. Viene a la dieci de la matina e ritornas a le cinque...”, replicou piscando-lhe o olho novamente.
Julieta por fim entendeu e não soube o que responder. Virou-lhe as costas para as outras não perceberem a sua indecisão e excitação. Auá!, sacana do italiano.
“Não sei, tenho que falar com o Bola, o meu marido.”, disse para camuflar as aparências.
“Parlare com Bola di Funghi, per quê?...”
“E não é Bola de Fungui, seu atrasado, é bola de funji, FUN-JI..., capicci?...”
“Então não vai falar com o marido?”, perguntaram as outras. “Na Itália é assim?...”
“Bene, bene, parla com Bola di Funghi. De la dieci a la cinque de la tarde, domani ritorno para
saber.”
Julieta falou com o esposo, informou-o de que sábado próximo iria trabalhar na casa de um estrangeiro, das dez da manhã às cinco da tarde, para preparar-lhe uma feijoada completa que oferecia aos amigos acabados de chegar ao país, e que para tanto iria receber cem dólares. Quando Bola de Funjio quis saber quem era o tal estrangeiro e onde morava, Julieta perguntou-lhe se alguma vez se metera na vida dele.
“Você é minha esposa e não pode andar assim à toa, é mulher casada.”
“Que vou fazer de mais? Alguma vez te pus os cornos?”
“Não é isso, é o que os outros vão falar.”
“Deixa, já estou habituada. Quando me conheceste já não falavam de mim?”
“Mas agora te dei respeito, já ninguém mais fala!”
“Me deste respeito?, se não fosse eu, qual é a gaja que ia andar contigo? Eu é que te dei respeito!...”, ripostou zangada.
“Não é preciso discutir, só estava a pensar que não devias fazer isso, nem sei quem é a casa onde vais.”
“Estás com ciúmes? Quando te quiser cornear nem vais saber...”
“No dia que fizeres isso me mato.”
“Ai é? E porquê?”
“Julieta, você é a minha esposa, a única mulher que eu amei e amo, a mãe do nosso filho...”
“E pôr cornos é o fim? Que vida é essa que você me deu? Teu salário chega para quê? Quem põe as coisas cá em casa não é o meu peixe?”
Bola de Funji calou-se, a mulher tinha razão e, afinal, sempre fora uma boa esposa, estava só zangada e a falar da boca para fora.
“Pronto filha, vai. Mas cinco e meia estás em casa.”
E lá foi a meiga Julieta!...
As gargalhadas vindas do quarto de dormir de Vittorio eram muitas e felizes.
“Così Bola de Funghi deixou-te vir?” ria o italiano
“Se tornas a falar aqui o nome do meu marido, rebento-te a cara, seu italiano de merda...”
“Calma Djulieta, calma, non voi a fazer piu, era solo uno gioco!”
“Não quero essas brincadeiras. Estou aqui contigo e a minha casa não entra nessa conversa.”
“Pronto, calma, já mi sono discolpato...”
Após o amuo da praxe, que serviu mais de tempero do que outra coisa, entregaram-se ao amor, Julieta com a raiva acumulada pelo passado.
“Questa nera, Dio mio, questa nera, que follia!...”, gritava o italiano no auge do repasto.
Por fim relaxados, cada um com um copo de vinho na mão, Vittorio largou uma gargalhada.
“Deu-te para rir? O que foi?...”
“Voglio sapere fare la feidjoada com tutti .”
“Aqui na cama?...”
“Per che no? Fica una feidjoada erótica, da vero una feidjoada com tutti!”, e riu que se fartou.
“Ai é, meu cão?... Queres uma feijoada erótica?”, perguntou-lhe, passando um dedo pelo umbigo dele. “Ainda não te chegou?”
“Au-au-au-au”, fingiu que ladrou. “Non, non me tchegou, é la fome de molto tempo.”
“Na nossa Ilha dizemos, lamba kiambote pala diiala ku-ku-zola kiambote.”
“Traduzione, traduzione per favore.”
“Tradução!... Tens que fazer um esforço, possa!... Isso significa, cozinha bem para o homem gostar de ti.”
“Buono, voi fare uno esforço para parlare piu o português, ma solo dopo de la feidjoada erótica.”
“Pode ser que seja, mas agora vais ter que me dar trabalho, não quero mais ser peixeira!”
“Mas amore mio, tu scrivere molto mal!...”
“Não quero saber, ou há trabalho ou não há feijoadas eróticas.”
“Abandona tu marito, vive com me...”, contra atacou o magarefe.
“Abandonar o meu marido, viver contigo? Deves estar maluco, não?”
“Non, da vero! Vive com me.”
“Tudo isso é muito bonito, mas quando fores para a Itália a preta fica.”
“Nunca ritorno pio em Itália. Voi aprender o português bene...”
“Só o português?”, brincou ela, passando novamente o dedo, um pouco mais abaixo do umbigo.
O italiano começou a sentir a renovação das forças.
“Non, mia nera santa, la feidjoada também!...”, e ambos caíram nos braços um do outro a rir.
“Bem, prepara-te para saberes o que é uma feijoada com todos. To-dos, e não tutti!...”
Julieta sorveu o vinho e pediu para lhe acender um cigarro. Recostada na cabeceira da cama, achou que merecia viver aquela vida, arranjar um estrangeiro que a tratasse bem e com carinho. Estava farta da luta sem compensações, farta do gordo e paspalhão do marido que a única coisa que fazia era declarar-lhe seu amor de perdição, ainda por cima com as ameaças de matar-se se ela o deixasse.
“Porra!, que azar meu!”, falou alto.
“Que passa?”, perguntou o italiano, assustado.
“Nada.”, disse, afagando-o para o tranquilizar.
Julieta sorriu e acarinhou-o novamente. O balofo do Bola de Funji nunca brincara com ela deste modo. Sempre cansado do serviço, comer, ver televisão e dormir. Às sextas feiras faziam amor, mais por obrigação, mesmo não sendo ele assim tão mau na arte. Mas o peso, ai santo Deus, o peso é que lhe tirava as ganas. Bem lhe pedira para ser ao contrário, mas qual quê, lugar de marido é em cima e não havia nada que o demovesse. À mínima insinuação, resmungava logo, isto aqui não é lá como com os cabrões dos estrangeiros que andaste.
Calava-se Julieta então, e tentava tirar partido da situação, o homem até não fazia amor mal.
“Presta atenção. Começas por arranjar o feijão, mas vou já avisando que feijoada não é prato angolano...”
“Non fare mal, é buona!”
“Está bem. Colocas o feijão de molho com chispe de porco e entrecosto salgado. Depois levas ao fogo e quando atingir a fervura, juntas o chispe, o entrecosto, mais o chouriço, o toucinho e carne de vaca.”
“Questo tudo?”
“Sim, tudo isso. À parte, fazes um refogado com banha e cebola...”
“Banha, que é banha?...”
“Sei lá o que é banha em italiano... olha, a gordura do Bola de Funji.”, e riu, maldosa.
“Strutto, mia cara. Strutto.”
“Ouve lá, não disseste que ias ficar em Angola?”
“Si, voglio...”
“Então tu é que tens que aprender português e não eu italiano.”
“Va bene, banha. E dopo?”
“Depois, quando a banha começar a alourar deitas as carnes já cozidas e cortadas em pedaços, temperas com sal e pimenta, se quiseres fazer à angolana pões um pouco de jindungo, e juntas o feijão, com uns pedaços de cenoura cozida. E pronto, é só comer, depois de apurado.”
“Ah, amore mio, andiamo pronto a fare una feidjoada erótica, sono com fome...”
Uns três meses depois Bola de Funji, não aguentando mais a insustentável situação que a tal feidjoada criara, tentou encostar a mulher à parede com renovada ameaça de morte.
“Queres matar-te?, pois mata-te, mas não vais impedir de eu sair. Xê!, matei Cristo ou quê?”, gritava Julieta, enquanto colocava a mini saia vermelha, a que Vittorio mais gostava.
“A nossa vida nunca foi assim, desde aquela maldita feijoada que tudo mudou!...”
“Nada mudou, isso é o que pensas. Não continuo cá em casa, não fazemos amor todas as sextas feiras?...”
“Toda a gente fala que andas a me pôr os cornos com o italiano, é mentira?”
“Não continuas a entrar em casa à vontade, alguma vez você bateu com os cornos lá em cima na porta da entrada?...”
“Não goza comigo, se essas feijoadas continuarem, vou cortar um dedo para você pôr lá, assim quando estiverem a comer vai-se lembrar do teu marido e do teu filho, sua cabra.”
“Não me insulta assim, porque senão vou viver com o Vittorio, não volto mais.”
Ao ouvir isto, Bola de Funji ficou como que louco. Com um pulo ágil que espantou a mulher, correu para a cozinha e voltou com uma faca de cortar carne. Julieta olhou-o meio espantada mas continuou a preparar-se, o que o irritou ainda mais.
“Você me chama de frouxo, de parado, pensa que eu não sou capaz?”
“O problema é teu, queres cortar o dedo para pôr na feijoada, corta!...”
Ao ouvir o desafio, Bola de Funji colocou a mão em cima da cómoda e, com um gesto preciso, mutilou-se do dedo mindinho esquerdo, que caiu para o chão. Julieta deu um grito de horror, chamou pelas vizinhas e retirou-se, sem a intenção de voltar. O italiano não era esse selvagem.
Entretanto, na Air France, Vittorio comprava seu bilhete di ritorno, como diria. Acabara o contracto e regressaria dali a dias à sua bela Itália, onde a esposa, já avisada, o esperaria com una bela feidjoada, receita transmitida via fax , com ligeiras adaptações erótico-regionais.