quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

A PRECE DOS MAL AMADOS


CAPÍTULO SETE
O VOO SINUOSO DOS MEDOS

Mamba nto na nto
(provérbio kikoongo)

Pela aldeia soou o rufar inesperado dos tambores, o eco reverberando pelas árvores das matas e a assustar muita gente. Não era hora para batucadas mas sim de labutas várias, portanto os pensamentos foram muitos.
Largaram os foles do ferro, os pilões, o trançar das esteiras, o secar da carne e correram para a povoação.
Retiraram as nassas a colocar para apanhar o peixe, pararam o lavar da roupa, esqueceram os brinquedos de vime e de lata, os laços para agarrar passarinhos.
Amarraram os panos à cinta, colocaram as crianças às costas, abandonaram as enxadas junto aos milharais e abalaram em ânsia pelos vários carreiros para a aldeia, mas logo o divisaram, o soba grande, a caminho do jango, precedido do portador da cadeira do poder, que a colocou no local próprio. Nela se sentou de imediato, com o ar mais feliz de sempre, rodeado de Nehone e demais anciãos do conselho.
Evidenciava rejuvenescimento, o porte o mais erecto que a idade lhe permitia, a velha barba arrumada e o brilho resplandecente do sol, há muito raspado dos olhos com a lâmina fina dos desgostos, fulgurava novamente em chamas cintilantes.
Tranquilizaram-se, afinal não fora a desgraça que batera à porta, as novas teriam que ser boas, não se tira a gente dos seus afazeres sem causa justa, restava agora aguardar que lhes fosse comunicado o motivo, a razão da convocação. A jovialidade do velho era sinal de boa nova. Os comentários estalavam por toda a parte, a curiosidade não tem natureza para ser domada, ela é mãe de todas as formas e sussurros possíveis, soltos em catadupas sinuosas ecoando à flor da pele de cada. A curiosidade rasteja, como a minhoca, pelos buracos escuros que cava, abrindo sulcos que arejam a ansiedade.
Foram-se acocorando, formando num vasto semicírculo, na boca aberta da floresta. Cochichando felizes uns, outros resmungando porque arrancados da labuta, o fogo ia esfriar, o ferro quente perderia o ponto de molde. Todos expectantes, todos ansiosos a arderem de uma bisbilhotice quase infantil. Por fim Juba de Leão levantou-se, fez um sinal com o cabo de rabo de boi para os músicos, que irromperam em batucada. Pouco depois, confiante da força que a alegria o impregnara, ergueu-se, avançou uns passos caducos, quase de maneira grotesca, e saracoteou o corpo numa dança da sua infância, marcando o compasso com o espanta raios ou enxota-moscas. Os mais velhos, de memória avivada pela dança há muito semi esquecida, bateram palmas de contentamento, os mortos de há muitas décadas iriam ser relembrados. Há largas décadas que não se mencionava o seu descanso, para que fosse de paz e a terra não lhes pesasse sobre os ossos. Enfim iam relembrar os de ontem, os de anteontem e os de sempre. Foram-se juntando um a um, os que ainda podiam, à dança comandada por Juba de Leão, entre o grito estrídulo das mulheres e a surpresa das crianças e jovens. Um imenso murmúrio de aprovação, sobrevoou os milharais, por cima dos batuques.
Cansado, sentou-se, logo seguido pela maioria. A alegria escorria-lhe por todos os sulcos do rosto cavados pela vida.
Um velho avançou, inclinou-se perante o soba grande e logo se fez silêncio, o porta-voz, aquele que anunciava ao povo as mensagens de Juba de Leão, iria falar. Apenas se percebia o longínquo balir dos cabritos e o cacarejar desta ou daquela galinha, as crianças nem buliam, talvez retidas pelo momento electrizante. As cigarras nos paus vários que circundavam o jango, pararam o seu trinar estridente.
Boas novas, boas novas! – Anunciou o porta-voz, acenando os braços.
Gozando as atenções concentradas em si, pigarreou, coçou a barba, cuspiu para o chão e pareceu não querer anunciá-las de imediato. Ensaiou dois passos em frente e levantou ambas as mãos, as palmas voltadas para o povo, os dedos meios dobrados pela arterite.
- O nosso rei está muito feliz... Gritai! – Comandou.
Todo o povo gritou, um longo e unido ehyeeeee, várias vezes, à medida que o soba levantava o enxota-moscas. Quando se deu por satisfeito, levantou ambos os braços e todos se calaram, felizes e risonhos.
- Quando acordou pela manhã ouviu o cantar do pássaro da sorte, tuí-piu-piu uma vez, tuí-piu-piu, duas vezes, tuí-piu-piu três vezes. Ficou feliz e pensou, que notícia é essa, que boa nova me vão trazer, mas como tinha receio dos maus-olhados, guardou no coração, só para ele, o pressentimento.
Parou e olhou à volta. Juba de Leão meneava a cabeça em aprovação, como que se as palavras do mestre arauto tivessem acabado de sair da sua boca. A plateia, continuava em atenta expectativa. Com um gesto quase imperceptível, um levantar ligeiro do cabo de cabo de boi, revelou que ao mestre porta-voz que devia continuar.
- Ao meio da manhã chegou o senhor enfermeiro, que trouxe as boas novas. – Calou-se, enquanto ajeitava o traje, propositadamente.
O silêncio tornou-se ensurdecedor. O mestre proclamador perscrutou novamente à sua volta, como que meditando se o momento para dar o bote chegara, ou se os fazia aguentar ainda um pouco mais naquele sofrimento. De soslaio, viu que Juba de Leão de igual modo gozava a tensão gerada.
- É verdade, o pássaro da sorte cantou três vezes – repetiu – tuí-piu-piu, tuí-piu-piu, tuí-piu-piu... gritem! – Ordenou.
Novamente o povo gritou, três vezes repetido, o longo ehyeee, gozando a excitação.
- E quando esse pássaro canta toda a gente sabe que a felicidade não está longe, não é verda...?!
- Verdade!... – Gritaram todos em uníssono.
- Não é verda?!... – Repetiu.
- Verdade!... – Aclamaram.
- Logo-logo chega, e foi o que aconteceu... O nosso irmão enfermeiro trouxe as boas novas... gritai!
O povo eclodiu em novos gritos de excitação e contentamento, muitos dançando mesmo sem o batuque. Quando o silêncio subsistiu, o porta-voz pigarreou e lançou a notícia.
- O nosso filho general doutor, o nosso Nataniel finalmente vem-nos visitar.
As mulheres romperam a bradar, enquanto os homens batiam as palmas de satisfação e alegria. O burburinho foi enorme e generalizado, o batuque furou toda aquela alegria e Juba de Leão levantou-se ensaiando os passos de dança anteriores. Pouco tempo após, cansado e ofegante, sentou-se.
Ai as minhas pernas, a idade já não me ajuda, estou mesmo velho.
Mandou parar a percussão e aos poucos as pessoas foram-se sentando, as mulheres a cochichar entre si.
- Já é casado? – Quiseram saber.
Quando a preocupação chegou aos ouvidos do soba, mandou o porta-voz anunciar que o enfermeiro afirmara ser Nataniel casado, com a sua prima Nazamba, aquela que fora na terra do pai, muitos anos atrás, e sua própria neta, encontrando-se grávida do primeiro filho.
O burburinho foi enorme, era verdadeiramente uma notícia importante e as pessoas começaram a indagar-se sobre o que faria o soba, mas todos estavam felizes e esperaram que ele orientasse a celebração da boa nova. Ordenou a morte de vários cabritos e a busca da sua reserva de cerveja para a festa, que durou a noite inteira.
Quando despertou, mais tarde do que o costumeiro, encontrou a comida, já fria, pousada no local habitual. Sem perceber onde estava, olhou para a mesma com enjoo, a boca abrasada pela ressaca. Os olhos percorreram o interior da choça como que buscando orientação. Tudo lhe parecia abstracto, uma névoa povoada de formas inquietas e movediças. Ao fim de muito percorrer com o olhar as paredes e o tecto, conseguiu concentrar a mente no que o envolvia. Apercebeu-se que estava deitado no catre e reconheceu o interior da sua casa, sendo então assaltado pelas imagens da véspera. Ao recordar os netos, foi invadido por uma vontade involuntária de vomitar e o estômago contraiu-se furioso em espasmos.
Vêm-me cobrar? Vou ter que me proteger, ai Kalunga, estou velho... velho!
Bateu as palmas, esperando que alguém ouvisse. Uma cabeça espreitou e ele pediu que mandassem uma das suas mulheres, a mais nova, para cuidar dele.
Vou ter que falar com o mano Tuluka. Preciso ter a certeza, saber tudo.
Horas mais tarde, refeito e alimentado, saiu da choça e foi-se sentar nos troncos estendidos debaixo de uma árvore frondosa cerca, e ordenou que Nehone viesse ter consigo.
A chegada do casal fora anunciada para dali a umas semanas, a aldeia tinha pretendido que se deslocasse antes, todavia Juba de Leão fez-lhes notar que o neto e a neta eram pessoas importantes, com trabalho importante na capital do país, haveriam de se deslocar a Ualali em devido tempo e oportunidade, saberia quando, no seu coração.
Pobre coração de velho que, temeroso da longa mão da morte a vaguear não muito distante, com dificuldade distinguia o traço fino que separava a intenção, dos factos que desejava ver acontecer antes de poder fazer o sucessor para evitar as malditas lutas intestinais com feitiços a sujarem este ou a limparem aquele. Inconsciente de que o poder dos reis e sobas fora há séculos esmagado, aniquilado e, com a independência, empacotado em papel de embrulho e levado para Portugal com o colono, para não mais voltar, almejava ser sucedido por um homem moderno, educado. Os novos donos do poder sabiam que os avanços da economia, da educação, da cultura, da tecnologia, da ciência política, não permitiriam o retrocesso ao feudalismo, à autocracia, à gerontocracia asfixiante, às doutrinas ocultas e à inevitável incompatibilidade com o Estado, detentor de técnicas de gestão modernas de administração onde os legados do oculto pouco contavam ou pudessem exercer preponderância no seu dia a dia, a não ser que viessem dos adivinhos ou feiticeiros para o fechamento do corpo da dirigência reinante, ou para a anulação intriguista dos que lhes fizessem sombra. Pouco importava uma montanha sagrada ou um vasto terreno de túmulos milenares, ou grutas gravadas de animais rupestres, se estivessem repletos de ferro ou de qualquer outro mineral precioso e brilhante de futuros promissores. Ele próprio sabia nunca ter sido rei como fora seu avô, como fora seu tio, que ainda impuseram impostos e direitos de passagem aos brancos e que ditaram quem vivia ou não nas suas terras. Ele nunca efectivamente governara, nem no tempo do branco nem agora. Lá bem no fundo de si mesmo reconhecia que os tempos não recuam, que a água do rio não anda para trás, o que vestia como sentimento era a saudade de um passado que lhe fora trazido pelas vozes dos antepassados onde a memória já nebulosa se fundia, sem querer, na lenda e no mito, destapando apenas factos ocasionais acontecidos consigo mesmo, como a morte do leão que levara a que o seu nome fosse mudado, que a sua reputação viajasse para alem das fronteiras do potentado e fosse, até, considerado pelo colono como um negro destemido e valente, agora tudo tão longe, tão inacessível à própria mente, tão sem importância, tão imaterial!
Cada vez percebia menos das coisas e dos acontecimentos, a mínima situação ultrapassava-o, não entendia as ordens recentes chegadas para mobilizar as populações a votarem nas eleições, não percebera o complicado sistema de listas, cartões de registo, caixas de voto. Sem entender o que dele se esperava, o que se pedia, o que era isso de votar?
Votar mais o quê, como?
Veio-lhe á memória a única experiência que tivera quando o quiseram tirar da herdada cadeira do poder, ele sobrinho escolhido pelo tio e pelos anciãos, porque descendente da aristocracia, filho de Mabunda, neto dos originários da linhagem. Desejavam que compreendesse que o poder era agora, com a independência, popular e revolucionário. O soba tinha que ser eleito democraticamente, e se dependesse deles, ser substituído pelo comissário comunal onde e quando possível. Não percebera as vozes novas que vituperaram contra si, que xingaram, que exigiram fora, rua com ele, abaixo o obscurantismo, viva a revolução proletária, a terra para quem a trabalha, a cada um segundo o seu esforço e a sua capacidade, a mulher é igual ao homem, com os mesmos direitos, como se não percebessem que desde a primeira voz humana, a mulher é escrava do campo, é esposa e fêmea parideira, sua única validade é dar continuidade, seguimento, e saber sofrer. Não tivesse sido o povo teimoso, resoluto e conhecedor dos seus valores reais a fazer face aos desígnios dessa meia dúzia de pretensas vozes antibióticas, talvez até tivesse morrido, de morte matada ou de morte de desgosto face à incompreensão dos valores novos e alienígenas.
Então que diferença havia nesse votar de agora, nessa escolha de gente, nomes e partidos de que nunca ouvira mencionar, quando só conhecera um que sempre mandara nele e no país, e o outro que, em morte anunciada, passava pela região num cavalgar de ciclopes ateando labaredas alimentadas em vendavais sulfúreos? O que dizer ao seu povo, o que lhe explicar, ele, velho e deserdado dos tempos? Só mesmo o neto Nataniel, homem formado em Cuba, general aos seus olhos, possível ministro da defesa ou mesmo presidente um dia, só ele podia herdar a sua cadeira, explicar aos seus os tempos novos na linguagem dos que mandavam, dos que diziam vive ou morre, vai em paz ou para a cadeia, paga ou não paga, um para ti cinco para mim, fica aqui ou fica ali, já que com eles aprendera e convivera e lhes era igual ou superior. Mas antes de morrer, teria que saber isso tudo, aprender o mínimo desse jogo de interesses e movimentações estranhas, tinha que virar aprendiz político de feiticeiro, saber andar em cima da linha. Não queria descer ao fundo das lagoas sem poder explicar aos antepassados como estavam os novos horizontes no seu pequeno mundo e nele, o lugar do herdeiro natural, Nataniel, homem que deveriam bafejar com sorte eterna, dar-lhe alento e talento para ser o que se esperava, tanto dos vivos quanto deles os mortos. Já chegara o susto que tivera quando lhe vieram anunciar que Nazamba, a neta que ele rejeitara, estava em Luanda e que iria casar-se com Nataniel, segredo que guardou para si a sete chaves fechado. Mas porque não ficara na terra do pai, tantos anos passados para voltar e no meio de quanta gente, ir logo conhecer o primo e ambos se apaixonarem? O que lhe dizer, como poder explicar-lhe que sua mãe Balanta fora agarrada, nem sabia se estava viva, com sorte talvez agora aparecesse vinda de onde fosse.
Ai, Kalung’ééé!...
Era o que mais ansiava, nem que dos fundos do mundo, feita escrava, velha, gasta, acabada, pronta a morrer ainda que injuriando com pragas terríveis seu pai Juba de Leão, o homem que só lhe trouxera desgraça na vida, mas que se plantasse ali diante dele. Não tinha idade nem estatuto para estar a gagueja perante os netos uma qualquer e despropositada desculpa, pretensa inocência amarfanhada que nem nela ele próprio acreditaria.
E agora, ai Kalunga ajuda-me! O que fazer com a minha neta, o que vou fazer quando ela chegar aqui nos seus?
Tudo isto foi o que Juba de Leão conversou consigo próprio, buscando uma luz para os escuros sentimentos em luta que a notícia da vinda dos netos produzira. Tinha umas semanas para recompor emoções e ideias, para se aperceber das conversas das gentes a fim de poder encontrar um caminho que não fizesse desagravo ao povo, que não fosse motivo de murmúrios e desagrados. A neta, ainda que por alguma via tivesse conhecimento da ausência da mãe, certamente iria perguntar-lhe, assim como sobre a casa do pai, agora destruída e coberta por mato de cobras e gafanhotos. Não iria imaginar, nunca seria capaz de visualizar, de entender o sentimento das suas explicações esfarrapadas, a guerra era uma experiência única, pessoal, intransmissível e indescritível em termos de emoção, de marcas, de vazios sentimentais e psíquicos, de acções e reacções, de passado e de futuro. Para ela seria a imagem antiga da bonança e da felicidade, do ritmo monótono da certeza e da segurança, da união familiar, da paz e da tranquilidade.
A imagem da infância e da inocência prevaleceria, lá bem atrás no subconsciente sobre o pretenso entendimento dos acontecimentos e da compreensão possível dos rumos que o destino delineara ao longo dos anos. Assim não fosse, seria a racionalização a imperar em asfixia sobre as leis do coração, a negar à alma sangrada e dolorida a evasão. Isso intuía o velho soba, não obstante desconhecer as leis da mente e as filosofias, as dele eram as da vida. Ninguém cala um coração dorido de mulher, sabia que iria confrontar um animal acuado nas memórias, e ele, velho decrépito, procurava febrilmente por uma saída. Com o nervosismo, os gases revoltados no ventre soltaram-se num longo assobio seco que lhe aqueceu a alma e o baixo ventre. Riu e pensou que o peido solta-se para libertar as cólicas e os gases, e ali parou, porque se soubesse filosofar, teria ajuntado que igualmente se solta para lhe apalpar o odor, julgar a intensidade, verificar-se a densidade no espaço circular e concêntrico da sua acção, antes que de se esvair, de se diluir nos espaços diáfanos das lembranças, por fim apaziguado e integrado, feito memória de si mesmo, nada mais.
Talvez fosse melhor, mais prudente, ver, ouvir e calar e decidir a maneira de agir face aos resultados. Já presidira a muitos conselhos de anciãos, casos sem fim passaram-lhe pelas mãos e para todos encontrara uma solução. Até problemas que tinham a ver com os céus, a terra, o sol e a lua, resolvera. Já fizera cair águas em catadupas, das nuvens ressequidas na terra árida da seca, e muitas mais maravilhas que as guardava só para ele, os segredos profundos das noites. Todavia este espinhoso assunto envolvia directamente os seus mais chegados. Teria que aguardar pelo que a neta lhe dissesse, não valia a pena estar a pôr a cabeça a fervilhar, estava velho e, mais do que tudo, desejava paz e tranquilidade.
Quando Nehone chegou mandou-o sentar-se a seu lado, carícia que este estranhou, não vislumbrava o motivo de tal deferência, ainda por cima pública. Ponderou usar o mocho próximo, mas acabou por considerar não valer a pena antagonizar o gesto oferecido. Com cuidado, sentou-se nos troncos, um pouco afastado do irmão mais velho. Esperou que ele falasse.
- A festa foi grande, bebi muito. – Disse, mais para si mesmo, Juba de Leão.
Que conversa quererá deste vez?
- É verdade, foi uma boa festa, a cerveja não faltou. – Respondeu Nehone, olhando-o de soslaio.
Juba de Leão levantou os olhos para o ar, e com a mão fez pala para poder observar um bando de aves que passava. Nehone imitou-o e continuou à espera. Sabia que a conversa chegaria, as regras são para serem cumpridas.
- Patos, parecem... – disse o soba grande, baixando a mão e coçando os pés um no outro.
- É, parece, se para a semana ou depois ainda tiver, é o cacimbo que não vem muito longe.
- O nosso filho Nataniel está a chegar, com a Nazamba...
- É verdade, grande dia, todo o povo está feliz.
O silêncio tornou a imperar. Um, não sabia como começar para chegar ao que desejava. O outro, aguardava teimosamente não loquaz porque adivinhava qual a questão e o embaraço. Nehone tinha bem gravada na memória a humilhação que sofrera anos antes quando Juba de Leão agarrara o seu medo na concha da mão e o fizera escutar as palavras cobardes negando-lhe a cadeira e o chapéu, a ascensão ao poder reservado para Nataniel, segundo seu desejo, mesmo sem consultar o conselho de anciãos.
- Sim, está feliz mas também está a falar. - Respondeu o velho.
- A falar, senhor? O que o povo está a falar? – Fingiu surpresa, Nehone.
O soba olhou para o irmão a perscrutar a seriedade, a intenção, da questão. Dando-se por satisfeito, desviou a olhada, baixou a cabeça e, enquanto suspirava fundo, esfregou a carapinha como que a afastar qualquer dúvida. Bateu as palmas e logo apareceram, não se sabe vindos de onde, dois moleques.
- Vão buscar a mutopa e a cabaça da cerveja. – Ordenou.
Nehone mexeu-se no assento. As coincidências entre a conversa mantida há anos sobre a sucessão e o que agora se anunciava, tudo começara com o mesmo cerimonial, inquietavam-no, Juba de Leão sabia que ele pouco bebia e que não fumava.
Ai não, não vai repetir tudo outra vez, não vou aceitar.
- Vieram-me informar sobre conversas...
- Que conversas? – Quis saber Nehone.
- Já lá vamos chegar. Deixa primeiro vir a bebida, tenho sede.
- A casa já está quase pronta. – Disse logo de seguida Nehone, como que a fugir ao assunto.
- Casa? Que casa? – Perguntou Juba de Leão, atónito.
- A casa. A casa para o casal ficar, já esqueceu?
- Cobriram bem o tecto, o capim estava bom?
- Está tudo bem, só falta trazer a cama com o colchão e o armário, que vem do município também a mesa e as cadeiras, mais os pratos e o resto. Fizemos como na cidade, uma sala e um quarto, mas o resto, vão no mato?
O velho levou algum tempo a pensar, o que queria Nehone dizer com o resto vão no mato? Quando se fez luz na sua mente, sorriu abertamente.
- Isso... Fez bem perguntar! Mandem cavar um buraco por trás da casa, cimentar e fazer uma casota à volta. No quarto de dormir põe o alguidar e a jarra que estão na minha casa, mais o espelho.
- Tudo vai ficar pronto para quando chegarem. – Confirmou Nehone.
- Ainda bem, não deixa nada em falso, nossos netos são da cidade.
- É verdade, e são pessoas importantes, doutores.
- Doutores só? – Perguntou o velho, com orgulho mal contido. – Nataniel é coronel ou general. A Nazamba é doutora de advogado e directora.
Os moleques voltaram com a mutopa, as brasas, duas canecas de alumínio e a cabaça da cerveja, que destaparam para o velho ver. Juba de Leão agarrou na concha de madeira e remexeu a bebida, afastando para o lado as impurezas.
- Sirvam. – Ordenou a um deles. - E vão buscar comida, estou com fome.
O facto de o velho soba estar faminto agradou a Nehone, a bebida seria para acompanhar o conduto e não para lhe soltar a língua e os espíritos. Juba de Leão esperou que o moleque que ficara agarrasse nas brasas e as colocasse na boca do cachimbo, para logo em seguida começar a puxar o fumo, duas, três baforadas que o fizeram tossir e cuspir com força para o lado. Mais duas ou três, e considerou o tabaco aceso. Sorriu com satisfação como se o dia começasse então, e olhou para o irmão.
- Você não fuma, nunca te vi a fumar, fazes mal, todo o homem devia fumar e beber.
- É verdade, mas eu nunca acostumei.
- Talvez seja melhor assim, mas isso não importa.
A comida chegou aportada por duas mulheres, que estenderam a esteira no chão, ajoelharam-se diante do velho e destaparam as iguarias para ele ver, uma panela com uma galinha cozida inteira e a outra com as papas endurecidas de milho. Com as mãos, uma delas agarrou na galinha e desfê-la em pequenas partes, colocando-as de volta na panela de barro. Pegou de seguida num pedaço e comeu-o, chupando os dedos.
O velho soba, contente, segurou na moela e começou o repasto enquanto a outra mulher repetia o cerimonial com a cerveja, demonstrando assim que tanto uma quanto a outra não estavam envenenadas. Juba de Leão indicou que as panelas fossem colocadas entre ele e o irmão e fez um sinal para que se afastassem. Nehone deixou que ele petiscasse as miudezas e só depois retirou com a mão esquerda uma perna da galinha, enquanto que, com a outra, amassava uma pequena bola da massa de milho que afogou no molho e levou à boca, com deleite. Dois cães aproximaram-se, ao cheiro da comida, sendo logo enxotados pelos moleques que se mantinham à distância. Comeram em silêncio, a não ser pelos estalos de prazer com a língua ou o chupar dos dedos, os lábios feitos guardanapos campestres. Juba de Leão segurou a caneca com a cerveja e levou-a à boca, tragando em sorvos rápidos. Nehone gostou de ver o irmão revitalizado e, por estranho que pareceu ao soba, concedeu beber uma caneca, empurrando tudo para o acamar no estômago. O soba grande agarrou novamente na mutopa e chupou, feliz, a vida estava boa, uma barriga cheia sempre oferecia novas perspectivas e tornava o mundo circundante mais tranquilo e apelativo.
- Agora podemos falar. - Disse, endireitando o corpo.
Nehone aguardou, sentiu um ligeiro formigueiro nas mãos e coçou-as. Considerou-se preparado para o que viesse, de facto todos deviam comer antes de negociar ou resolver questões importantes, o conforto e o calor no estômago dão alento e coragem.
- Como é que vamos fazer com a Nazamba?
Foi apanhado desprevenido, nunca pensara que Nazamba fosse motivo de preocupação para o soba grande.
- Nazamba, senhor? O que tem a Nazamba?
- O que tem a Nazamba? Então não é nossa neta, a que mandámos embora?
Sorriu um largo sorriso interior. Afinal o velho estava amedrontado com o passado que agora renascia.
Mandámos embora, quem a mandou embora não fui eu, agora chegou o momento de repartir a culpa?
Achou-se rico, havia-lhe sido colocada nas mãos uma dádiva inesperada, a indecisão do velho, o seu medo sobre o que pudesse vir a acontecer quando forças que ele não controlaria se desencadeassem imprevisíveis.
- É verdade, mas também está casada com Nataniel...
- Pois... é verdade.
- Mas está a pensar em quê, então?
- Não sei bem, por isso mandei-te chamar, queria falar contigo antes de ouvir os mais velhos.
Não me ouviste então, hoje já achas que vale a pena?
- A vinda dela poderá causar muita confusão, tudo depende...
- É verdade, por isso precisamos de juntar as nossas ideias. Durante muito tempo sonhei com a minha neta, depois passou. - Confessou, Juba de Leão, inadvertidamente.
- Nunca falou que sonhou com a Nazamba. – Disse Nehone, surpreso. – Quando foi isso?
- Há muito tempo, Nataniel não a tinha ainda conhecido.
- E que diziam os sonhos? – Quis saber.
- Mas para quê? – Perguntou Juba de Leão desconfiado.
Mas para quê? Então não sabe que os sonhos falam?
- Não são os sonhos a verdade?...
Ao ser relembrado da premonição, Juba de Leão estremeceu. Bem o avisara, na altura, o mestre adivinho após ter consultado os ossos e os paus, e a conversa veio-lhe à mente.
- Vejo uma grande sombra, muito grande. Tem a forma de um animal, um elefante furioso. – Revelou Tuluka.
- Elefante furioso?
- Sim, está zangado e é rodeado de muita gente, alguns com caveiras empaladas e cobertos de peles de antílopes.
- Quem são, quem é essa gente então? – Perguntou, temeroso, Juba de Leão.
- Só podem ser os nossos reis e demais antepassados, dançam à volta do elefante que levanta a sua tromba em bramidos terríveis.
- Dançam, dançam, e que mais, e que mais?
- O elefante avança e confronta um leão que lhe faz face.
- Leão? Aiiii... Kalunga... Disseste leão?
- Sim leão, que é esmagado. E olha, sobre o elefante vejo a forma de uma mulher.
É sempre aconselhável saber o que os sonhos dizem, se vamos falar desse assunto - As palavras de Nehone despertaram-no das memórias – Conta então!...
- Falavam do seu regresso e ela vinha sentada nas costas de um elefante.
- De um elefante, não vinha numa cobra? – Perguntou Nehone, interessado.
- Cobra? Não. Vinha no dorso de um elefante
Nehone mais uma vez sorriu largamente para dentro.
Afinal os antepassados mostraram o seu desagrado, e ele manteve tudo em segredo!
- Mas falaram do seu regresso, como?
- Não me lembro bem, só que ela voltava, aparecia no dorso do elefante mas nunca me falava, só me olhava em censura.
- E o elefante, soba, o elefante de que cor era?
- De que cor era? – Surpreendeu-se Juba de Leão.
- Sim, de que cor?
- Era preto, como todos os elefantes.
- O trono dos antepassados!... – saiu-lhe inadvertidamente da boca
- O que dizes? – Perguntou, sem compreender, Juba de Leão.
- E estava feliz, fazia muito barulho, ou pisava tudo à sua frente?
- Não recordo, mas para quê tanta pergunta? – Retorquiu Juba de Leão, não desejoso de falar mais sobre a questão.
- Meu soba, pediu ajuda, responda só à pergunta. – Insistiu Nehone.
- Quando o mestre adivinho me falou a primeira vez, o bicho estava furioso, mas aquele que me aparecia estava feliz, carregava a nossa neta com dança.
Nehone sorriu ostensivamente. – Já não pergunto mais nada.
- E então? – Quis saber o soba.
- Só vou falar mais tarde, hoje não. Deixa a nossa neta vir, não há problemas, vamos recebê-la bem, como filha nossa.
O que lhe deu então, que não quer falar depois de todas essas perguntas?
- Só isso?!..
Juba de Leão estranhou, mas como Nehone parecia satisfeito e contente, não insistiu. Talvez o irmão quisesse dormir sobre tudo o que fora dito, ou pretendesse consultar alguém.
- Está bem, mas sobre isto não deves falar com ninguém... por enquanto. – Alertou.
Devia saber que para se caçar o bagre não se mexe no lodo.
- Não falarei, pode estar descansado.
Os dias passaram céleres, a ansiedade fizera ninho em todas as casas e quando, ao longe começou a ouvir-se o buzinar repetido da viatura do comissário comunal, a comoção foi total, mais parecia que a povoação estava novamente a ser invadida, tanta era a gente que corria e gritava por todos os lados. O soba grande, tentando manter a dignidade e a compostura, caminhava lesto para a mulemba, perseguido pelos outros anciãos, esquecido do portador da sua cadeira que, atarantado, recuara para a ir buscar. O povo fez alas ao longo da rua por onde apareceria a viatura, batendo palmas e já dançando. Nazamba era a expectativa maior, a memória dos mais velhos avivara acontecimentos passados e, ao longo dos dias que procederam a notícia da vinda do casal, foram vários os comentários e as estórias que se cintilaram nos fogos nocturnos do aconchego conjunto de falas e mais falas.
Quando o Land Rover fez a curva que logo anunciava a aldeia, o delírio das mulheres e das crianças foi total. Rodopiaram sobre si mesmas em passos cadenciados de dança. Juba de Leão, para não mostrar o tremor que lhe aferrara o corpo e alma, teve que se sentar. Não muito afastado, Nehone olhou-o pelo canto do olho, meditabundo.
Agora tremes...
Na viatura, Nazamba olhava extasiada, nunca pensara que seriam alvo de tal manifestação. Seu coração batia a ritmo desconcertante, agarrada à mão do esposo que a olhava de soslaio, satisfeito e de igual modo curioso, expectante. Nataniel reconheceu o avô sentado debaixo da mulemba e indicou para Nazamba.
- Olha, aquele velho ali é o nosso avô, o soba grande Juba de Leão.
- Nem me recordo da sua cara, qualquer de um deles poderia ser o nosso avô se não tivesses indicado. Como irá ele reagir? – Indagou, cerrando ainda mais a mão do marido.
Nataniel colocou o braço por cima dos ombros da esposa e acariciou-lhe o queixo.
- Não te preocupes com isso, teremos tempo...
- O que lhe vou dizer?
- Não importa o que lhe irás dizer, cumprimenta-o e quando não souberes o que fazer... olha para mim, eles entenderão.
- Mas eu não sei nada das tradições...
Nataniel olhou para a esposa e sorriu, sentindo-lhe a angústia e a contrição. Também se sentira assim quando chegara a Cuba.
- Pronto saberás tudo, dá tempo ao tempo. Verás que lhes conquistarás o coração.
A viatura estancou junto à árvore e o comissário comunal desceu de imediato, dirigindo-se ao soba, que não teve forças para se levantar. Suas ressequidas pernas tremiam.
- Soba grande, trago-lhe os seus netos, recebe-os em paz.
Nataniel desceu, esperou por Nazamba e, uma vez chegado junto ao avô ajoelhou-se, batendo de seguida as palmas das mãos, três vezes. Juba de Leão, como que energizado, levantou-se, agarrou a espádua do neto e ergueu-o com força. Olhou-o em censura e apertou-o nos braços, enquanto que de seus olhos escorriam lágrimas teimosas.
- Nunca mais te ajoelhes perante mim. – Sussurrou-lhe ao ouvido.
Tentou perceber o reparo do avô, mas não conseguiu. Achou por bem não dizer nada e apertou-o em silêncio. Depois separou-se, olhou para o velho com um largo sorriso, estendeu a mão para Nazamba, que aguardava e puxou-a a si.
- Avô, está aqui a tua neta e minha mulher, a nossa Nazamba.
Nazamba, relutante, resistiu até que pôde à pressão ligeira da mão de Nataniel para se movimentar para o velho ou falar. Este, compreendendo o sentimento da neta, avançou e tomou nas suas, as mãos tensas de Nazamba.
- Meu amor, por favor. – Sussurrou-lhe Nataniel ao ouvido.
- Como está, meu avô? – Disse para que os mais cerca a ouvissem, enquanto abraçava o ancião que, novamente, teve que se sentar. Nehone, observando, baixou o rosto para que não fosse possível ler-se-lhe o sorriso de desprezo que espelhava.
Parabéns minha sobrinha neta, venceste o primeiro encontro, mantém essa força!
- Sentem-se, sentem-se. – Tentou disfarçar as fraquezas, a das pernas e a da coração.
- Há horas que estamos sentados avô.... – Respondeu Nataniel.
- Estão cansados, precisam de comer e beber. Vamos sentem.
- Temos mesmo? - Sussurrou Nazamba ao ouvido do esposo.
Como resposta, Nataniel sentou-se no banco que lhe trouxeram, convidando Nazamba, com um gesto de olhos, a fazer o mesmo. De longe, todos olhavam intensamente, estudando o rosto e os gestos do velho, assim como os da neta. Viram-na perdida e as mulheres mais novas riam, gozando o embaraço da parente citadina, sentada ali ao lado do marido só porque estudara e esquecera, ou talvez nunca aprendera, os costumes, mulher não tinha que sentar ali com os homens.
- Avô, ainda não cumprimentámos os mais velhos.
- É verdade meus filhos, esta minha cabeça está a ficar muito leve.
Percebendo o desconcerto do soba grande, Nehone aproximou-se com um largo sorriso e endereçou-se ao sobrinho.
- Então o meu neto já não me reconhece, não se lembra do velho Nehone?
Nataniel ergue-se lesto e segurou as mãos que o tio-avô lhe estendia. Levou-as à testa e inclinou-se.
- Perdoa-me meu avô, mas o tempo foi muito. – Chegando-se ao ouvido, segredou-lhe. - Lembro sim, lembro muito bem, aliás tenho que devolver-lhe aquele pacote.
- Pacote, que pacote? – Perguntou Nehone em espanto, o que fez com que Juba de Leão olhasse para ele.
- Já não se recorda? – Respondeu bem-humorado, Nataniel.
De repente Nehone lembrou-se e levou as mãos à boca, para esconder a surpresa. Acercou-se ao ouvido de Juba de Leão e explicou-lhe o que se tratava. O velho sorriu e olhou para o neto.
- Fica para mais tarde, agora é comer e tirar a poeira da garganta.
Nehone conduziu o neto e a neta aos mais velhos e, à medida que se cumprimentavam, relembrou-os um a um entre apertos de mãos, sorrisos e a confirmação, como que a desculpá-los, que eram muito jovens para se recordarem de todos deles, agora envelhecidos e sofrendo das marcas do tempo, mas que estavam muito felizes de os ver e esperavam que pudessem ficar ou regressar mais vezes.
Assim que Nazamba teve uma oportunidade, voltou-se para o marido e perguntou-lhe que assunto é que tinha de ser tratado mais tarde.
- Uma questão antiga, depois conto-te.
- E é assim tão séria que teve que ser segredada?
- Não, não é séria, só que lhes é reservada.
- Vocês e os vossos segredos...
Juba de Leão percebendo uma inquietação na neta, voltou-se para Nataniel e sugeriu que Nazamba talvez precisasse de se retirar, tinha ar de cansada.
- É verdade meu avô, eu vou acompanhá-la e volto logo.
- Tem dois miúdos e três raparigas para ajudar tudo no que for preciso, é só chamar.
- Tanta gente assim, para quê? – Perguntou Nazamba.
Perante o olhar de reprovação do avô, baixou a cabeça e enervou-se.
Esqueci-me de lhe falar destas coisas, diacho. Não sabe que se estiver menstruada não pode cozinhar, nem acender o fogo.
- Desculpe avô. – Respondeu Nataniel. – Está um pouco nervosa, logo lhe passará.
- Esta nossa neta já não sabe nada. - Disse Juba de Leão após o casal se ter afastado.
Nehone olhou para o soba e esteve para lhe falar o que pensava.
Então, não a mandaste embora para a terra do pai?
- É verdade, esteve fora muito tempo e desde criança... – respondeu.
O soba grande manteve o olhar, inquiridor, tentando ler-lhe a alma, a intenção, todavia Nehone aguentou sem se intimidar.
Estas indirectas, sempre estas indirectas, o que é que ele quer?
- É verdade, muito tempo... – condescendeu, unicamente para não parecer fraco.
- Vamos ter que falar com o Nataniel. – Disse Nehone.
- Falar com o Nataniel?...
- Tem que ensinar à Nazamba as nossas tradições, a nossa linhagem, tudo.
Mais uma vez Juba de Leão olhou para ele desconfiado.
Nossa linhagem? A propósito de quê, vem esta conversa?
- Sim, ela tem que aprender, mas vai ser difícil.
- Depende, se ela estiver interessada aprenderá rápido. – Respondeu Nehone.
- Está bem, mas agora o nosso neto está a voltar.
Nataniel, de sorriso nos lábios, chegou e pediu licença para se sentar junto ao avô. Aceitou a caneca com a bebida que lhe foi oferecida e disse que sim, que queria comer, estava faminto. O resto dos velhos achegou-se e olhou com orgulho para o filho predilecto da aldeia.
- Recebemos os teus recados quando voltaste de Cuba, mas só agora, passados seis anos nos encontramos, meu neto. – Disse, emocionado, Juba de Leão.
- É verdade, avô. Mas não dava para vir, fui logo para a tropa e esta zona não era uma zona segura.
- O teu primo, o irmão da tua mulher, o Tomás, atacou aqui duas vezes, só por sorte não morri.
- Veio com muita raiva, tivemos que fugir. – Reforçou Nehone.
- Não entende porquê que ele atacou assim a aldeia? – Perguntou Nataniel, desejando ouvir a confirmação pela boca do avô.
- Não recordas, eras criança, mas eles foram mandados embora daqui. – Disse Nehone, com toda a intenção e olhando para Juba de Leão.
- Eles quem? – Perguntou Nataniel, insistindo.
- A tua mulher nunca te falou?
- Chega! – Gritou Juba de Leão.
Estás com medo da verdade? Chega porquê?
Nataniel olhou para o avô e depois para Nehone e tentou entender porque se antagonizavam os irmãos?
- Perdão avô, mas não entendi, a minha mulher nunca me falou de quê? – Fingiu não perceber ou entender.
Explica-lhe agora que a mulher não é filha da terra...
- Deixa, Nataniel, isso fica para mais tarde. – Respondeu Nehone.
- Estou cansado, meu neto e o momento agora é de comer e de saber de ti. Essas questões antigas falamos mais logo. Conta-me do teu trabalho – Mudou de assunto o soba.
O que terá havido, para os dois se digladiarem logo à minha chegada? Será o problema da expulsão da Nazamba?
- Estou a trabalhar no Hospital Militar Central.
- Muito bem, mas conta-me, o que se está a passar em Luanda?
- O que quer saber, avô?
- Isso da paz e das eleições, já estou velho.
- A guerra acabou, assinámos um acordo de paz e agora o povo deve escolher quem vai ser o presidente da república e os deputados.
- Mas acabou mesmo? Continuamos a ouvir muita coisa aqui. – Disse Nehone, apoiado pelos outros velhos.
Nem ele sabia se efectivamente a guerra acabara. No papel sim, mas nos terrenos das operações, nos corações dos políticos e dos militares, será que teria acabado? As palavras eram ainda muito acesas, inflamadas e em alguns bairros de Luanda o terror sentia-se. A truculência evidente. Os rostos trancados de vingança, os conhecidos mas todavia inusitados fardamentos, a transparência da sede do poder nos rostos crispados dos dirigentes que saíram de longos anos de privações e das matas, a jactância dos seus soldados juntos às mulheres citadinas, pouco alentavam as populações das urbes.
- Sim, acho que acabou, embora os estrangeiros, as nações Unidas, não estejam a contribuir para a paz.
- Porquê assim? – Perguntou Juba de Leão.
- Sabe avô, eles deviam ser como um árbitro de futebol, ver que a partida corre bem e quem ganhar ganhou, sem confusões. Mas não, não controlam o desarmamento, aceitam aquelas armas podres e fazem de conta que não vêm os velhos e crianças que estão a aparecer nos campos de desmilitarização como soldados.
- Assim a guerra vai continuar!...
- Esse é o meu medo, avô. Mas vamos confiar e trabalhar para ganharmos as eleições, não podemos perder, senão ninguém vai ficar vivo. Esses meninos bonitos que eles mandaram em Luanda estão a dar a entender isso, afirmam que se não ganharem que vai ficar feio e outras coisas que metem muito medo às gentes.
- E nós aqui, vamos fazer como?
- O avô tem que ouvir bem a rádio, a do governo, não a outra e manter um contacto muito estreito com o camarada comissário. Tem que levar todo o povo a seguir o seu exemplo e o avô já sabe que vai votar no partido e no presidente do seu neto, porque foram eles que me mandaram estudar em Cuba e fizeram de mim médico.
- É mesmo assim, o meu neto falou bem. Mas se a guerra voltar? Esta zona nunca foi segura, hoje está um, amanhã passa outro!...
- É o risco que devemos correr avô, não se pode estar bem com Deus e com o diabo, temos que escolher.
O velho esticou os dedos e retirou um pedaço de galinha que tinha sido trazida há muito. Encheu novamente a sua caneca e a do neto e ficou meditativo. Os outros, de igual modo apreensivos, abanavam as cabeças ou cofiavam as barbas. Nenhum desejava novamente a guerra, esses políticos tinham mesmo que se entender, caso contrário seria o povo metido no meio feito bola de futebol como sempre, e a violência cega a servir de árbitro.
- Mas a maior parte de nós nem sabe ler e escrever. - Disse um dos anciãos.
- Não faz mal, todos temos de votar. Haverá listas com as fotografias das pessoas e as bandeiras dos partidos, só temos que pôr aí uma cruz. - Disse, exemplificando com um gesto. - Tudo vai ser explicado e não podem fazer erro, tem que estar bem claro, porque se errarem o voto não conta.
- Ai filho, é muito complicado. - Respondeu outro velho.
- Vão aprender, vão aprender, é só prestar atenção. – Retorquiu, sorridente, Nataniel.
- Isso é para vocês mais novos, nós nunca votamos. - Falou o mesmo velho.
- Quem é que votou aqui em Angola? Ninguém, é a primeira vez e temos que escolher com cuidado. Os nossos sobas têm que entender tudo muito bem, não é avô?
- Vamos deixar para depois, fala-nos do teu padrinho, como está? – Pôs ponto final à questão.
- Eu ainda estava em Cuba quando ele voltou. Está bem, mais velho e gordo.
A conversa, nesta toada de recordações e factos mais recentes, decorreu até ao acender dos primeiro fogos, altura em que os mais velhos deles principiaram a retirar-se. Nataniel pensou na mulher e esperou que esta estivesse a dormir. Quis ausentar-se, todavia não ousou para não ofender o avô. Tinha muitas perguntas a fazer, sobre Balanta, sobre o primo cunhado, o Tomás, sobre o que o velho pensava, se queria vir para Luanda e viver com eles, porém achou que havia tempo. Calcularam ficar uns quinze a vinte dias e não havia necessidade de desejar cobrir todas as questões logo na primeira jornada. Deu conta que só estavam os três, o avô, Nehone e ele, talvez esperando que dissesse qualquer coisa ou tivesse o primeiro gesto de retirada.
- O avô não vai entrar? Os mosquitos não estão a incomodar?
Juba de Leão riu e voltou-se para o neto
- Estava a pensar a mesma coisa, sim, é melhor irmos para dentro.
- Vamos avô, eu acompanho. – Disse, ajudando o velho a erguer-se.
Os dias pareceram passar céleres, não obstante os poucos afazeres para o casal. Nataniel observava Nazamba via-a tensa, á procura de uma via de entrada, de uma desculpa, de um percalço qualquer do avô que viesse a permitir o escancarar da porta do passado e deixar fluir em catadupas o que retivera por longos anos. Condoeu-se da esposa mas sabia que não deveria ser o polo catalisador, aguardaria o momento e dar-lhe ia o apoio, a solidariedade e a força necessárias para que saídos dali, encontrasse a paz interna e olhasse para o seu passado como uma memória apaziguada, portanto entendido e aceite.
- Achas que deveria ir ver a casa do meu pai? – Perguntou ao marido, num princípio de noite.
- Será que ainda existe? Ninguém nos deu a entender até agora.
- Estranho, não é? Todos me olham como se fosse uma marciana ou usasse uma máscara, ficam à espera de uma reacção.
- É um pouco de receio e um pouco de delicadeza.
- Delicadeza?... – Perguntou, surpresa.
- De uma maneira ou de outra, sabem o que o nosso avô fez e que, por ironia do destino, hoje somos marido e mulher.
- Daí a delicadeza?... – riu.
- É, são gente simples e a situação é incomum, por isso aguardam, ansiosos.
- Mas não me vou embora sem confrontar o nosso avô, tenho esse direito. Tudo tem que ficar clarificado, sobretudo o que aconteceu à minha mãe.
- Estou plenamente de acordo contigo, há que esvaziar esse poço profundo que foi cavado dentro de ti, todavia deves ser cautelosa, ele para alem de ser nosso avô é o soba grande e tu, face a este povo, és uma mulher.
- E então?
- Então que tens que ter um jogo de cintura muito mais elástico do que o meu, por exemplo. Mas conta comigo, estarei do teu lado, até porque a Angola de hoje não é a Angola de quando partiste.
- Essa não é a questão. O fundamental para mim é entender o que se passou. Não imaginas o que foi ver o meu pai estiolar, um homem que era forte, lutador e amante da sua mulher e filhos.
- Sei…
- Sabes?... Tenho essas imagens a importunarem-me, já viram quase fantasmas dentro de mim, e por não entender o que acontecera fui cruel para ele, maltratei-o, neguei-lhe carinho e amor. O lugar dele era aqui, e este velho caduco do nosso avô arruinou a família. – Desatou a chorar.
Nataniel chegou-se a ela e agarrou-a nos braços, cerrando-a, ele próprio lutando com sentimentos de culpa, com a simpatia e solidariedade que instintivamente devia à esposa e com a falta de não poder sentir com a mesma intensidade a raiva e sofrimento dela.
- Eu sei, meu amor. Achas que também não sofro com tudo isso? Mas está feito, tens é que encontrar o teu equilíbrio e contarás sempre comigo.
Ouviu-se um bater fraco, quase que receoso, na porta semiaberta da casa. Calaram-se e esperaram. Nazamba rapidamente limpou as lágrimas e deu as costas à porta. Nataniel pigarreou e por um instante não soube o que fazer. Ainda não era a hora de jantar para eles, portanto não poderiam ser os moleques com a comida.
- Posso entrar?
Reconheceram a voz do tio-avô, e Nataniel levantou-se para deixar Nehone entrar.
- Boa noite avô, faça favor de entrar e de se sentar. Como vai?
- Boa noite avô, como está? Sente-se, por favor. - Ecoou Nazamba, voltando-se e já recomposta.
- Ai meus netos, os ossos doem, já estou a ficar velho, vou mesmo me sentar, obrigado. – Respondeu Nehone.
- O avô quer comer ou beber qualquer coisa? – Perguntou Nataniel.
- Não, obrigado. Vim mesmo só para vos ver e falar um pouco.
- Ainda bem, estou mesmo a precisar de saber umas coisas, avô – disse à queima-roupa Nazamba, o que o surpreendeu.
- Podes falar, minha neta. Mas antes arranja-me só um copo de água.
- Só água?...
- Só água mesmo, a garganta está seca.
Nazamba dirigiu-se ao tosco armário, retirou um copo e foi ao moringue, do qual se serviu. Levou o copo ao avô, num pires, e regressou ao lugar.
O velho recostou-se na cadeira, passou os olhos pelo quarto e, olhou-a nos olhos, sorridente.
Ainda bem que é ela que começou a conversa.
- Está bem fresca esta água, muito obrigada minha neta. Então o que é que queres saber? - Perguntou, fingindo casualidade.
- Esperei que o avô Juba de Leão me falasse dos tempos passados, perguntasse pelo meu pai e me explicasse sobre a minha mãe, mas infelizmente assim não foi.
É mesmo por aí que quero que você vá, minha neta! Fala, fala a tua alma.
- Deve estar à espera de uma melhor oportunidade, o assunto não é fácil para ele. - Disse Nehone.- Deve estar a observar-te, a conhecer-te melhor para saber como começar. Vais ver que é isso.
- Certamente que será isso, logo ele nos procurará. – Reforçou, lesto, Nataniel.
- Até poderá ser, mas não vou ficar à espera. – Respondeu Nazamba, olhando para o tio-avô.
- A pressa é inimiga da razão. Tu nem conheces a história da tua família, o tronco da vossa árvore... – Disse Nehone, fingindo que limpava uma unha, com o polegar.
- Mas quem nos escorraçou daqui então, não foi a família?
- Calma Nazamba, não te excites – disse Nataniel.
- Não, deixa falar, tudo tem que ficar bem explicado. - Incentivou Nehone.
- Mas bem explicado para quê, avô? - Indagou Nataniel.
- Porque tudo tem a sua hora e todos terão que entender o que se falará. A chuva quando cai é para toda a gente. – Respondeu.
- Não entendo! – Disse Nataniel.
- Pois eu entendo! – Respondeu Nazamba. – Fale-me então dessa minha família e dos motivos porque me quer explicar tudo.
- Hoje não… hoje só vou explicar-vos as descendências.
Mas que estória é esta, porque quererá ele explicar-nos as descendências? Será que a da minha mulher é diferente da minha?
- Mas isso vem a propósito de quê? – Perguntou Nataniel, desconfiado.
- Deixa o avô falar! – Solicitou a mulher, de igual modo desconfiada.
- É que, meus netos, devemos saber de onde saímos, a nossa força vem daí, daqueles que nos antecederam e partiram.
- Não entendo. – Disse Nazamba
- Eles é que velam por nós e nos indicam os caminhos. Não se pode esquecer isso, quando o fizermos, estamos perdidos, somos gente sem rumo, pirilampo que acende e apaga sem iluminar nada. Vocês sabem quem são os vossos bisavôs, por exemplo?
Nazamba e Nataniel entreolharam-se e só não riram por respeito ao velho, em tal despreparo se sentiram com o chofre da pergunta.
- Não avô, não sabemos. – Responderam quase que em coro.
- Viram? Viram?... – Perguntou, entusiasmado, Nehone.
- Então diga-nos lá quem foram, avô. – Disse meio a brincar, Nazamba.
Estou mesmo a gostar desta minha neta, nada como o parado do marido.
O velho sentiu-se feliz. Pigarreou como que para aclarar a voz e bebeu do copo. Colocou as mãos sobre o tampo da pequena mesa e afastou o candeeiro mais um pouco para o lado. Guardou silêncio, cabisbaixo, como requerem as grandes ocasiões.
- Olha Nazamba, tu és filha da Balanta e do Marcelo. Não vou agora falar da tua mãe, com a graça de Deus estará viva, e do teu pai tu é que tens que nos falar. O que tu já devias ter feito, não ficar a aguardar que o teu avô Juba de Leão falasse primeiro, mas como cresceste fora da aldeia, a gente percebe. A tua mãe, Balanta, é filha de Kolele, do clã da Lebre, e de Ondjaki, do clã do Cão. Esses, são os teus avós maternos e a tua avó Kolele é irmã de Juba de Leão.
- Clã da Lebre? – Perguntou Nazamba, espantada.
- Olha eu também não sabia, mas deixa, logo explico-te. – Disse Nataniel.
- Sim, portanto os teus avós maternos são Kolele e Ondjaki, ela filha de Luvumbu, que vem dos que se chamam Galo, e de Mabunda, ainda dos da Lebre. Teus bisavôs, do lado da tua mãe, foram Zwela e Karima, filhos dos grandes reis de outros tempos.
- E o que tudo isso faz de mim? – Perguntou, curiosa, Nazamba.
- Faz com a minha neta pertence aos da Lebre, não esquece, tens que saber bem toda a tua linhagem.
- Olhe avô, eu nem sabia que a minha avó se chamava Kolele, o meu pai nunca me falou e nem tenho a certeza se ele próprio saberia. – Disse Nazamba.
- Sabia, sabia, ele é que nunca te falou, deve ter sido a raiva pelo que aconteceu. Como o mandaram embora, deve ter eliminado tudo que era nosso dentro de si, a filha já lhe bastava para relembrar essa parte da sua vida. Sabes, minha neta, nós os pretos vemos o mundo de outra maneira, não é o mesmo mundo dos brancos e assim, parece que não temos coração, que a vida não tem valor ou tem pouco.
- É isso mesmo. Como correram com o meu pai e os filhos e deixaram a minha mãe sozinha? Ela não amava o seu marido, não tinha parido os filhos?
- Tudo isso é muito difícil, minha neta. Como posso explicar hoje, dezoito anos passados e com toda a desgraça que caiu sobre nós? Até o teu irmão Tomás atacou a aldeia duas vezes e tivemos sorte de fugir.
- Deviam ter morrido todos.
O velho calou-se. Olhou para Nataniel e entendeu o seu silêncio. Afinal tinha mesmo que deixar cair a água sobre o passado, e com quanto mais força melhor, só assim aliviaria a dor da neta e talvez a levasse ao que pretendia. Suas palavras, por dolorosas que fossem, deviam ser essa chuva resgatadora.
- Entendo a tua raiva, a tua vontade de vingança, mas se achas que tens que te vingar, nunca será com ódio ou rancor, só com entendimento e com a paciência. – Respondeu Nehone.
- O que quer dizer com isso? – Perguntou Nataniel.
- Por agora nada, um dia vão entender se lembrarem-se das minhas palavras.
- Desculpe, é com o soba Juba de Leão que eu tenho que ter esta conversa, só com ele, o soba grande todo-poderoso que teve que esperar a saída dos brancos para revelar esse poder. – Disse Nazamba, para ferir.
- Nazamba, não precisas de enveredar por aí! – Cortou Nataniel.
- Não? Devias ter ouvido o meu pai e todos aqueles que foram corridos daqui.
- Mas isso é a História, é o rumo dos acontecimentos que o Homem traça e não controla, perde-se neles e a maior parte das vezes até é comido por eles.
- Está bem, vamos ficar por aqui. Falaremos quando estivermos a dois.
- Desculpe avô, a ferida é grande e profunda. – Solicitou Nataniel.
O velho suspirou fundo e aguardou um momento para ter a certeza que a tempestade passara. Com um gesto pediu mais água e, após ter sido servido e tomado uns goles, abriu novamente o seu sorriso.
- É verdade, vamos lá a isso. Nataniel também não dever saber toda a descendência porque saiu cedo para Cuba e nunca mais voltou. Mentira?
- Não avô, é verdade. – Respondeu.
- Pois escuta. Tu és filho de Epalanga, do clã Abelha e de Zeferina, dos descendentes do Rato, como sabes. O teu pai, Epalanga, é filho de Juba de Leão, dos da Lebre e da sua terceira mulher, Teka, daqueles das Abelhas, portanto tu e a Nazamba são parentes mas podem casar, não são das mesmas casas na linhagem.
- E então, avô? – Quis saber Nazamba.
- E então nada, era só para vocês saberem.
- Sabermos o quê? – Insistiu Nazamba.
- Tem calma, a altura vai chegar e aí vais entender tudo.
- Meus Deus, que mistérios avô!...
- Mas quero ainda pedir-vos um favor.
- Fale avô, o quê é? - Perguntou Nataniel, olhando para Nazamba em expectativa.
- Agradeço guardarem por agora esta conversa só para vocês.
Ambos assustaram-se com o pedido, intuíram que havia algo de muito mais profundo nesta vinda dele à casota, com uma explicação aparentemente inócua sobre as raízes de ambos. Tinham vindo de férias e para conhecer a família e resolverem o pleito de Nazamba, não para se envolverem em qualquer outra questão e, muito menos que tivesse a ver com coisas antigas e que lhes eram alheias. Todavia, a exigência carregada no tom do pedido teve o efeito que Nehone desejava.
- Está bem avô, mas depois terá que nos explicar porquê.
- Estejam descansados, quando o momento chegar eu falarei. Agora vou.
- Não quer mesmo comer ou beber nada?
- Não, meus filhos, fiquem bem e boa noite.
Após a saía do velho, o casal não soube o que dizer. No ar, como visgo invisível, fluía pendurada como teia sedosa de aranha gigante, o ritmar da sensação mais estranha e que os atemorizava. Intuíam que qualquer coisa fermentava em determinadas pessoas da aldeia, e Nehone teria sido o primeiro a manifestar-se e introduzindo-os na genealogia comum.
- Acho que devemos regressar a Luanda, tão cedo quanto seja permitido. – Disse Nazamba.
- Também não vamos começar a ver fantasmas onde eles não existem.
- Pois é precisamente isso que eu acho que nos estão a mostrar.
- Como assim? – Perguntou Nataniel, surpreso.
- Então para que foi toda esta conversa e o sigilo exigido?
- Sei lá, coisas de velhos.
- Ai é? E por falar em segredos, o tal pacote, ainda não contaste do que se trata.
- São costumes nossos, Nazamba, são mesmo coisas de velhos e eu era jovem. Foi algo que fez parte dos rituais para minha protecção enquanto me encontrasse fora. Só isso.
- Bom, isso eu entendo. Todos nós nos protegemos contra o desconhecido, seja com o sinal da cruz, com figas, patas de coelho ou qualquer outra superstição. E deu resultado?
Nataniel olhou para a esposa e sorriu, talvez colocando-se a mesma pergunta. No fundo, e não poderia ser de outro modo ou a existência das religiões seria negada, os fabricados caminhos protectores são sempre funcionais, sejam os da protecção benigna, quanto os da maligna, que conduzem ao inferno e à perdição. O fundamental é que haja a crença nos seus poderes, na sua capacidade de acobertar os medos, os receios, as angústias, restituindo a fé, a esperança num amanhã mais promissor. Uma prece, fugaz que seja, uma solicitação à força invisível é tão fundamental quanto um pedaço de pano vermelho amarrado no pulso ou no tornozelo. Invocam e pretendem protecção, indiciam rumos desejados, forjam tranquilidade e balanço que permita o correr monótono do quotidiano.
- Se deu resultado? Acho que deu, guardei o talismã que me foi confiado e aqui estou, formado e casado com a mulher mais formosa do mundo.
- Se pensas que me desvias do assunto com galanteios, estás redondamente enganado. – Respondeu, dando-lhe um beijo na face.
- Acho que devem ter aí um plano qualquer para nos reter.
- Até nem me importaria nada de viver aqui alguns tempos, talvez me ajudasse a reencontrar-me.
- Viver no mato? Tu?
- E porque não? Achas-me incapaz de voltar às raízes?
- Queres uma resposta sincera? Irias ficar sem saber o que fazer.
- Tenho que encontrar a minha mãe, saber do meu irmão...
- Antes de mais devemos ver o que vão dar estas eleições, há vozes ainda muito acaloradas...
- Não acreditas então que a paz seja verdadeira?
- Não sei, os cavaleiros do apocalipse andam à solta.
- Não tens fome? - Perguntou Nazamba para acabar com a conversa.
- Tenho, vou chamar os miúdos da casa. Já te viste a cozinhar lá fora, no fogo, todos os dias?
- Vocês homens têm a mania de que são os únicos a ser capazes de tudo fazer!
Após o jantar Nataniel foi dar um pequeno passeio pela aldeia, seguido por uns tantos jovens desejosos de ouvir relatos da guerra, e Nazamba, agarrando num livro, afastou um pouco o petromax por causa do calor que gerava, concentrou-se na leitura.
O dia amanheceu cinzento, e a bruma cobria a maior parte da aldeia. Deslizando por entre as casas, envolto num longo cobertor que o cobria quase por completo, Nehone entrou, sem se fazer anunciar, por uma delas. Um cão enroscado em si mesmo, preguiçosamente levantou os olhos mortiços para a figura que cruzara a porta do amo e voltou ao sono. Se pensasse, certamente teria indagado qual seria a sorte do assunto que levava o mais velho Nehone a deslocar-se tão cedo à casa de Kavungu, o mestre adivinho.
Depois das saudações, Kavungu veio à porta e encostou-a, não obstante o fumo do pequeno fogo sobre o qual ardia em gemidos prazerosos, uma velha lata de manteiga com uma mistela que relembrava um café muito diluído. Nehone observou-o, como ao espaço que o circundava, repleto de máscaras, paus, raízes, penas e outros artefactos da profissão. O velho Kavungu era pessoa respeitada e tido como um grande curandeiro, a sua fama estendia-se por muitos lugares, até o comissário provincial o mandara chamar, à sorrelfa, ao palácio várias vezes.
- Mano Kavungu, temos que tomar uma decisão, o Nataniel e a Nazamba não vão ficar por muito tempo. – Disse Nehone, aceitando a caneca da mistela e a maçaroca que lhe eram estendidas.
- É uma decisão difícil...
- Pode ser, mas lembra só aquela altura... o que os amuletos falaram...
- Sei... mas temos que tomar cuidado, tudo mudou.
- Mudou como, então? O velho cada vez está mais caduco e naquela altura os antepassados falaram, foi você mesmo que disse...
- É verdade, mas agora há a Nazamba.
- Mas é isso mesmo, não lhe falei já dos sonhos do velho soba? Não é ela que aparece num elefante preto?
- Mas os outros, e o povo, vão aceitar uma filha do branco?
- É nossa filha também, e é você mano Kavungu que tem que convencer o resto.
- Não vai ser fácil, o irmão quis matar o velho...
- Mas todos sabemos porquê, a raiva dele tinha razão de ser.
- Ainda não estou convencido, vamos ter que esperar, preciso consultar o meu cesto outra vez.
- Pode ser, mas o tempo é curto. Quando eles voltarem tudo tem que estar acertado.
O cão ladrou e os velhos calaram-se, aguardando. Ouviram-se passos de crianças em grande correria. O cão tentou entrar e foi corrido com um gaveto que o curandeiro atirou. Voltou ao mesmo sítio e enroscou-se, a terra ainda quente do calor do seu corpo, aconchegando-o.
- Já falaram quando é que desejam ir? – Perguntou Kavungu.
- Não, mas será daqui a pouco tempo, talvez duas semanas.
- Então temos tempo, vou consultar o cesto ainda hoje.
- Porque não o faz à frente de todos os outros?
- É arriscado, primeiro eu só. Depois, amanhã falamos e logo veremos como prosseguir.
- Volto logo à noite, é melhor.
- Está bem, mas traz alguma coisa quente para beber, à noite faz frio.
- Não tem problema, vou trazer.
- Mas já falaste com eles?
- Não, primeiro temos ter a certeza. Só depois falarei com eles.
Kavungu esperou que Nehone saísse para colocar o cesto dos amuletos no centro da sala, após ter fechado a porta com a tranca.
No balaio havia pedaços amarrados de cabelo, retalhos de pele de antílope, duas pequenas figuras de madeira representando um elefante macho e outro fêmea, unhas e dentes de leão, outros de onça, sementes e raízes, argila branca e argila vermelha, penas de galinhas do mato e o que mais.
Quedou-se pensativo por largos momentos, tentando vislumbrar um caminho certo para os pensamentos. Sabia não poder desafiar impunemente o poder do soba grande, a não ser acobertado pela maioria dos anciãos que formavam o conselho e fortificado pelo que os amuletos indicassem. Que Juba de Leão estava velho e incapaz de dirigir com autoridade, todos o sentiam, porem procurar-se substitutos ou regentes sem as devidas cautelas, poderia desencadear jogos de forças contendoras que levariam a sérias desavenças e mesmo mortes. Nestas alturas os venenos funcionam, os percalços e acidentes inexplicáveis viram a justiça do mais forte ou maligno. Teria, pois, que ter a certeza absoluta do sentimento dos velhos e do povo. Nehone desejava vingar-se da humilhação que sofrera há anos quando tivera a pretensão de julgar que Juba de Leão o iria indicar como sucessor ou regente, até Nataniel decidir se aceitava o cargo ou não e, por já os ter ouvido reconhecia que os argumentos que Nehone invocava para tentar levar a bom porto os seus desígnios, eram válidos e evidentes. Kavungu contava com a decrepitude do soba grande e com a possível anuência dos netos, e enquanto esta última condicionante não lhe fosse esclarecida, não arriscaria.
Uma lufada de fumo sacudiu-o da letargia a que se remetera. Endireitou o torso e agarrou no balaio, erguendo-o por cima da cabeça, colocando-o depois novamente ao solo. Por fim, deixou-o ao nível do peito e remexeu-o três vezes, como se peneirasse os amuletos. A cada gesto pedia aos antepassados que lhe mostrassem o caminho, que lhe revelassem a verdade. Por três vezes, ficou em cima o elefante fêmea sobre um dente de leão. Kavungo começou a suar, agitado. Repetiu outras três vezes a adivinhação e outras tantas apareceu o elefante fêmea à superfície, sobre um dente de leão. Homem habituado a ser respeitado, quando não temido, quase desmaiou, nunca na sua vida observara tal fenómeno, sentiu medo, um medo que partiu do mais fundo das entranhas e que se transferiu amarrado para a mente, congelando-lhe os pensamentos e os gestos. Gritou e gritou, mas não conseguiu ouvir a voz própria, sentindo a língua costurada ao céu-da-boca. Aterrorizado, entendeu que se sempre acreditara ser Juba de Leão um poderoso mago, tinha a confirmação e certeza que Nazamba tornar-se-ia no vendaval que varreria o sobado ora abandonado pelos ancestrais, na revelação dos amuletos. Os castigos seriam grandes e fatais se assim não se cumprisse. Dominou-se o suficiente para alcançar uma cabaça e sorveu uns largos tragos de aguardente para dar consistência às pernas que se recusavam a carregá-lo. Por fim colocou o cesto no local próprio de resguardo. Sem pensar no que faria de seguida, enrolou a esteira e pô-la contra a parede, tudo em gestos que lhe pareceram levar uma eternidade.
A conversa com Nehone não poderia ficar para mais tarde, chegou à porta, gritou por um dos assistentes e mandou chamá-lo. Enquanto aguardava sorveu novamente da cabaça de aguardente e reconfortou-se, o coração já não latejava desordenadamente. Recolocou a esteira no centro da sala e o balaio de adivinhação. Pouco depois entrou Nehone, circunspecto, cioso de que alguma coisa teria passado, Kavungu não o chamaria em tão curto de espaço de tempo por ter-se esquecido de um qualquer detalhe.
- Senta, mano. – Disse-lhe, a voz agastada, indicando-lhe o outro lado da esteira.
Nehone sentou-se sem dizer uma palavra e notou, pelo cheiro, que o curandeiro bebera. Aguardou que indicasse porque o mandara chamar.
Kavungu, por sua vez, trancou a porta e sentou-se na esteira, pernas cruzadas uma sobre a outra. Sem mais palavras, agarrou no cesto e ergueu-o sobre a sua cabeça, murmurando as encantações e preces só de si conhecidas. Nehone estremeceu com arrepio inopinado, relembrado do que lhe acontecera com o irmão. Tentou concentrar-se, não fosse o adivinho notar e procurar motivos e razões ocultas na arrepio que ocorrera. Desta vez Kavungu não remexeu o cesto como fizera antes, sobre a esteira atirou de imediato o seu conteúdo e, sobre o dente de leão e todos os outros amuletos, regia imponente o boneco que representava o elefante fêmea. Com o dedo, apontou o resultado para Nehone, cuja expressão indicava incompreensão.
- Olha, o elefante mulher caiu sobre o dente do leão.
Como resposta, Nehone abriu um largo sorriso, começara a perceber o que o adivinho sugeria.
O sonho do velho! A neta aparece sobre um elefante!
- Mas sobre isso eu já tinha contado. Esse sonho já nós conhecemos – respondeu.
- Sim, mas nunca aconteceu que tudo se repetisse três vezes seguidas.
- Três vezes?
- Sim, há pouco atirei três vezes e a resposta foi sempre a mesma. Olha só!...
Agarrou nos amuletos, remeteu-os no balaio e, após as mesmas cantilenas, atirou-os na esteira. Repetiu mais uma vez, com resultado igual.
- Vês? Os espíritos estão muito zangados com Juba de Leão.
- Mas era isso o que eu dizia. – Respondeu Nehone.
- Mas os velhos e o povo vão aceitar a filha do branco?
- Você que é o adivinho, devia saber que nos antepassados não há filho do branco nem filho do preto.
- Vai ser grande confusão.
- Só se quiser, quem duvida do adivinho e dos amuletos?
- E se ela não aceitar?
- Quem mandou o aviso lá do outro lado, sabe o que está a falar. – Respondeu Nehone de modo a cortar possíveis dúvidas.
- Amanhã vou no mato apanhar umas raízes e caçar um pequeno animal. Durmo mesmo em cima do pau, não me esperem, quando regressar falamos com o régulo para convocar o conselho e explicaremos tudo.
- E quando vamos falar com a Nazamba?
- Não tem pressa, primeiro tem que vir o que está primeiro. – Finalizou Kavungu.

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