quarta-feira, 2 de dezembro de 2009
ANTOLOGIA PANORÂMICA DE TEXTOS DRAMÁTICOS
Desejo, antes de mais, homenagear este grande homem e símbolo das letras e das artes angolanas, nacionalista e patriota da primeira hora, guerrilheiro comprometido com a libertação do seu país, há pouco falecido. Resta em paz, Fernando Costa Andrade "Ndunduma we Lepi"
COSTA ANDRADE “NDUNDUMA”
NO VELHO NINGUÉM TOCA
Palco ou terreiro escuro.
No centro, uma fogueira com brasas vivas e poucas labaredas.
Alguns caixotes, brancos, pedaços de trocos, tijolos num total de vinte irregularmente dispostos em semicírculo, em troco da fogueira.
Cinco cadeiras das quais uma de braços no centro do semicírculo.
Uma luz de intensidade crescente começa a iluminar o semicírculo centrada sobre as cinco cadeiras vazias.
Lentamente começa a ouvir-se, progressivamente, som de ngoma ou marimba, dolente, magoado.
Quatro jovens vestidas de panos escuros entram vagarosamente no local vindas dos lados dos espectadores. Duas trazem, cada uma por si, um pequeno banco individual. Entram no recinto pela esquerda. Aproximam-se da fogueira.
As duas primeiras colocam no chão os seus assentos e sentam-se. Fazem-no lentamente, fixam o olhar na fogueira, distantes. A terceira jovem dirige-se ao semicírculo e toma um assento Volta para junto das companheiras. A que permanece de pé olha em redor pausadamente, fixa o público um instante, solta de repente um grito de dor, e começa a soluçar.
4ª JOVEM
Jika... Jika... Jika...
(Baixa lentamente a intensidade do ngoma até se tornar apenas audível, distante)
1ª JOVEM
Para quê chorar? A vida não regressa...
2ª JOVEM
Eu tenho um filho nos braços.
O Pai é um herói...
Eu não quero heróis...
4ª JOVEM
A guerra, maldita guerra...
Jika... Jika...
3ª JOVEM
Nem sempre a morte leva só uma pessoa.
Mata quantas vezes,
o coração de todo o povo...
4ª JOVEM
Jika morreu pela mesma razão
que divide os vivos e as causas
3ª JOVEM
Não está provado que os vivos
estejam sempre todos
contra a morte
1ª JOVEM
Mas ele está vivo na nossa dor
Ele vai surgir agora mesmo.
Vem do vento,
vem do mar,
da lua ou da terra. E dir-nos-á
quantas perguntas flutuam
no cais
da interrogação dos homens.
(Sem calar-se completamente o ngoma,, ouve-se agora o som do mar furioso, o vento de temporal. A 4ª jovem entra em paroxismo. Aumenta o choro, soluça convulsivamente e começa a chinguilar. Pára o vento. Tocadores e dançarinos de makopo entram pela direita.
Levantam-se duas das jovens. Juntam-se aos dançarinos de makopo em torno da 4ª jovem que chinguila ainda uns minutos. Levanta-se e dá os primeiros passos de dança. O makopo atinge intensidade, dura cinco minutos. A jovem cai. Pára o makopo de repente.
O ngoma faz-se ouvir; as luzes perdem intensidade e o foco aponta para a 2ª jovem que se manteve sentada.)
2ª JOVEM
Eu queria um tribunal
para julgar o vento que trouxe a notícia,
O fogo que o matou,
a terra que o sepultou,
as águas que o separam de mim.
(Cai lenta e parcialmente o pano)
II
Ouve-se o vento de novo. Trovões. O ngoma percute. A sala está escura. Da esquerda entram quatro embuçados de negro. O foco acompanha-os incidindo sobre os rostos. Sentam-se nas cadeiras do semicírculo, deixando vaga a cadeira de braços. Os tocadores e bailarinos reunidos à direita estão sentados no chão. As jovens nos lugares onde se encontram.
A 4ª jovem está deitada junto dos bailarinos com a cabeça apoiada sobre as pernas de um deles.
1º EMBUÇADO
(A Terra)
Eu sou a Terra
Quem tem a culpa é o mar.
(Ouve-se o vento diminuindo de intensidade até parar por completo.)
O Ar e as Águas,
eu Terra
somos a consequência da culpa.
A culpa veio das ondas.
As águas consentem
a razão que o mar não tem!
2º EMBUÇADO
(O Ar)
Eu sou o Ar.
Quem diz que tem a verdade?
A verdade não escolhe.
Ela é! Nada mais.
Ser verdade é ser total!
Jika não é do mar
Jika já é do tempo!
TERRA
Tempo, Água, Ar e Terra
são o meu grito surdo
somos o mundo no mundo
nem segredos nos resistem na procura infatigável.
AR
Quem define o mar
se o mar se prolonga no vento
e na imaginação?
Jika não é do mar
é o alvo da culpa!
TERRA
Mas também não é só o tempo
Jika é terra que é da terra
terra liberta e viva
terra do tempo e do mar
crescendo terra no vento
nascendo terra nas águas.
Jika é terra, tempo e terra
A luta entre o todo e o alvo
definirá a culpa absolvendo o mar.
AR
Mais que Terra ele é o Tempo
deixa que o tempo recorde
neste tempo de viver
como vivem os heróis.
TERRA
Esse rugido rouco
rouco rochoso e cru,
é um protesto das águas;
é o mar que vai à frente
vai encontrar-se com ar
nas sombras líquidas
que me intercalam os veios
e levam Jika ao diamante
ao petróleo e ao verde verde da
folha.
Esse rugido é um aviso
que se contém numa taça
das palmeiras matinais.
AR
(Põe-se de pé energicamente)
Chamem o vento!
Venha depressa
o vento!
Venha o vento, ele é
do ar,
quando me ergo em combate!
Perguntem ao vento pelo tempo
eu solto o lamento lento
desse passado que esquece.
Jika será encontrado
em cada encontro das coisas
e do nada
será total e simples
parte do alvo
(Senta-se o Ar)
TERRA
Venham o Tempo e as Águas.
Sentados na praia calma
decifremos a verdade.
O tempo de Fevereiro é ver futuro.
Maio a parte do tempo desviado.
AR
E a vida?
TERRA
Podes chamar a vida
sentá-la aqui no arco
da pergunta.
AR
A vida não pode parar
seria conter no Maiombe
Jika na cinza apagada
alvo reduzido ao facto.
TERRA
A vida que vive a verdade
não pára quando se senta
apenas procura o caminho.
Trás também aqui a vida
somos o todo visado
AR
E a morte?
TERRA
A morte há-de estar presente dia a dia
e cada dia esconder-se entre as raízes.
Cumpre a estrada das marés!
Fique distante um momento.
AR
Aceito.
Não há morte que permaneça!
A morte adormece
é esquecimento.
Só a vida se transforma em sempre
pela morte escolhida.
(Baixa o pano lentamente)
III
A sala iluminada. Todas as personagens e figurantes presentes. Entra o Tempo vestido de azul e a Vida vestida de vermelho.
TERRA
(Levanta-se e aponta respectivamente)
Aqui o Tempo e as Águas
Aqui o Ar e a Terra, o Fogo.
Aqui a Vida para definir o Herói.
(Senta-se, aponta-lhes lugares entre os bancos dianteiros. Enquanto o Tempo se senta, a Vida permanece de pé.)
ÁGUA
Herói
é simplesmente o Homem.
A causa aqui é outra.
A causa é grande e trás ofensa.
AR
(de pé)
Proclame a Terra a interrogação das coisas!
TERRA
(Após um curto silêncio)
Quem pode reivindicar
o pólen fecundo do exemplo?
Quem era o alvo?
AR
À raiva e ao bater da onde
corresponde o estremecer da Terra.
Não seja a violência
o critério da razão.
TEMPO
Nem a calma o diapasão do hábito!
AR
(sempre de pé)
Violência e calma
são a dialéctica da realização.
TEMPO
Fomos aqui chamados porque
somos?
Jika é o primeiro degrau da escalada
para o alvo, sendo alvo, todo, unidade,
coesão...
TERRA
A setembrina flor da espera
surgiu.
Dela o projecto realizado
no suor, no sangue e na vontade.
Na fome, no braço, na veia tensa.
Mas porquê?
VIDA
Nada mais quis que os passos livres
os sonhos livres, o querer livre...
AR
(de pé, pausadamente)
Vivemos agora o tempo de viver
Viver o tempo de criar o tempo claro
Claro da clareza das ideias novas
Novas de nascer nova a revolução
Revolução que dá e fertiliza
o tempo finalmente agora
de viver
TERRA
Eu quero que se construa
a vida sobre a vida,
e não da morte.
Foi o mar que trouxe a culpa
e deu ao corpo inerte de Jika
a sua fria certeza de paragem!
ÁGUA
O mar, a terra, o ar
a culpa reúnem em partes tantas
que são a culpa sem culpa
do dever de exigir raivosamente
a liberdade;
e no entanto não são a culpa
que determinou o alvo
só o tempo de Maio
nos dirá qual a raiz do ódio.
TEMPO
Jika marcou o caminho,
deixou o corpo embarcado
num palmo de coaguladas decisões.
AR
Jika é já o tempo todo todo o tempo
deixou de ser possível ser da morte
rasgou a culpa
que é nossa e de ninguém!
Nós somos todos alvos porque unidos.
VIDA
Eu a vida.
Não me detenho!
Não mo permite a vossa permanente
ansiedade
mais humana que telúrica
húmida e pátina musgosa
mais humana que volátil
humana porque Vida ou Morte.
Não!
O mar não é culpado, nem o ar
nem a terra, nem a sua ofensa
se alguém pode julgar que seja o Homem.
Só o luta e cria
só o Homem é vida ou morte pela vida
e a transforma.
Eis o que define, o alvo
Jika é a vida sempre
por ser Homem
ele pode ser do tempo e é do tempo
ele pode ser da terra e é da terra
das Águas, do Ar, ou dos quissanges.
Será de uma canção
ou um desejo
pertence a tudo
sem ser de mais ninguém
que do exemplo.
TERRA
Só a morte não tem o direito
de reivindicar-lhe a posse
para lá do tempo que o reteve
um só instante.
VIDA
O instante entre as lágrimas
e o respeito.
Entre a memória
e o primeiro passo
do depois!
TERRA
Em frente os homens!
O discurso é sobre vós
e a distinção entre o fim e a partida.
Levantem-se o som e o gesto
Vibrem!
Jika é a mensagem
não deixou lugar ao luto.
Levantam-se os dançarinos, o ngoma faz-se ouvir e, à excepção da Terra, do Tempo e da 4ª jovem, que permanecem onde estão, todos os figurantes entram na roda do makopo e dançam. Cinco minutos. O pano desce lentamente.
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