quarta-feira, 2 de dezembro de 2009
INKUNA MINHA TERRA
O ALMOÇO
Fora jurado amor à primeira vista.
Ninguém duvidava, ao ouvir Malaquias “Gordo” contar, com paixão, a estória do seu matrimónio, que engorda há quinze anos.
Conhecera a então futura esposa num dos programas matinais de culinária, que a T.V.I.
(televisão de Inkuna) quinzenalmente apresentava naqueles anos idos. A fama de bom garfo, aliada ao facto de ser dono do mais famoso restaurante de luxo de Katola, levara a que o convidassem a presidir ao júri do concurso. Aos concorrentes era atribuído um valioso prémio, com base na receita mais original, no prato melhor confeccionado perante as inquiridoras câmaras televisivas, e nas parcas chamadas telefónicas recebidas no programa, sobretudo de aborrecidas donas de casa querendo dar palpites gastronómicos.
Embasbacado, mesmerizado nos jeitos e trejeitos culinários das mãos da fada Serafina Coquillage (assim se inscrevera), entrou em acelerada órbita amorosa quando ela, sem o querer, acariciou castamente o corpo engordurado do coelho.
Ao esquartejá-lo, cada golpe de retalho, era uma insinuante flechada de Cupido no já esfrangalhado coração de Malaquias que, boquiaberto, inalava os suados respirares da amada.
Quando Serafina começou a temperar o bicho com sal, pimenta, vinho branco (um copo), alhos e louro (uma folha), Malaquias havia tomado a decisão mais intempestiva e séria de sua vida. Se a senhora fosse solteira, ou desimpedida, nada, mas absolutamente nada, se interporia no caminho de sua felicidade. Chamaria a si a grata tarefa de desencalhar aquela frágil nave das rochas do desamor e da solidão para, incólumes, navegarem os mares doces da vida compartilhada entre caçarolas, almoços, amores e jantares.
O continuado carinho demonstrado por Serafina, ao segurar o tacho que levou a lume com o azeite (cinco ou seis colheres de sopa), a cebola picada, o ramo de salsa e um pouquinho de água, para refogar o inditoso lapin, confirmou a justeza das suas pretensões.
Mulher assim não era para andar à solta, a desperdiçar tempo e talento em programas de televisão, ainda por cima para gente que nem apreciava ou entendia a arte e o amor envolvidos. Era um atirar de pérolas aos porcos...
Sentia que Serafina Coquillage, o pseudónimo que escolhera revelava toda uma alma preparada a servir repastos dignos das ilandas, dar-se-ia por realizada não só a gerir a vasta cozinha do seu famoso restaurante na Ilha de Katola, como a de sua casa, na qualidade de esposa amantíssima.
Serafina teria uns trinta anos, com uma cor negra a fugir para o castanho que reluzia ás luzes dos projectores do estúdio, corpo bem roliço (85 quilos) e mais para o baixo de que para o médio, e uns serenos abaulados olhos.
Viúva há quatro anos, o anafado marido morrera de enfarte cardíaco, irresistente aos bons tratos do garfo. Sua razão de vida encontrava-se nas panelas, tachos, frigideiras, esfregões e afins. Não por ser mulher, mas sim por chamada divina, um sacerdócio.
Imbuída desse espírito, ganhara concursos por tudo quanto era canto, apresentando agora seus melhores pratos no programa televisivo das dez da manhã. Levar a palavra do bem comer aos ímpios, convertê-los, era um gesto da mais alta subliminidade.
Extravasando transcendência, metia agora no tacho, onde deixara o roedor a alourar, a polpa de tomate (2 colheres de sopa) e o resto dos ingredientes (uns quatrocentos gramas de nozes picadas, pimenta preta ralada, cravinho e o decilitro de natas).
Com a coração a estoirar, mesmo antes de terminada a confecção do prato, Malquias decidiu que daria nota dez àquela fada gastronófila.
“Que maravilha, que destreza! Merece o máximo!...”, ia cochichando, suficientemente alto para os outros dois membros do júri, um, empregado seu, o ouvirem.
Quando Serafina Coquillage colocou o aromático coelho já preparado e enfeitado de salsa picada, sobre rodelas largas de pão torrado, não conseguiu esconder a enorme alegria. Tão cedo o programa terminou, dirigiu-se a ela e apresentou-se.
“A senhora foi deliciosamente maravilhosa”, disse, enfatizando a palavra deliciosa. “Poderíamos sentarmo-nos ali a um canto do estúdio e provar a peça de arte que confeccionou? Dei-lhe nota dez, nem que fosse só pelo seu nome artístico...”, continuou, estendendo-lhe uma mão adiposa, mas firme.
“Quão gostoso é ouvi-lo”, respondeu, sabendo que encontrara, por fim, a alma gémea.
Depois de terem comido o coelho que Serafina (Valente era o verdadeiro nome) confeccionara, Malaquias levou-a a casa para se preparar e irem, dali a uma hora, almoçar no “Pantagruel”, seu famoso restaurante.
Decidira que seria depois da sobremesa. Sabia de antemão que o cérebro e o coração funcionam muito melhor quando o estômago está satisfeito. Seria logo após a sobremesa que lhe formularia o pedido de casamento. Caso negasse, poderia sempre tentar conquistá-la propondo-lhe a gerência do restaurante. Nunca fora aventureiro, todavia iria arriscar num jogo de tudo ou nada. Onça que não caça é onça velha, morre de faminta vida.
Ás doze e meia, como combinado, tocou à campainha da casa de Serafina, que não se fez esperar. Exsudava antecipação e seus vastos seios não o escondiam, ofegava. Malquias, cavalheiro, abriu-lhe a porta do carro, esperou que se sentasse e fechou-a com cuidado.
Serafina adorou, confirmava um pouco a ideia que fizera dele, atencioso, bom garfo e o suficientemente gordo para a tornar feliz. Aceitaria qualquer investida do adiposo garanhão, dentro das medidas da decência e do socialmente aceitável.
“Depois da sobremesa, tenho uma proposta muito importante para lhe fazer...” atirou, para sondar.
“Sobremesa? Não me fale de sobremesa, que é parte mais importante de qualquer refeição para mim”, disse, meiga e enternecida
Malaquias tremelicou de emoção, o Mercedes guinando de vontade própria, ligeiramente para a esquerda.
“Espero que tenha parfait de laranja...”, continuou Serafina, emocionada.
“Parfait de laranja?... Creio que não temos, mas doravante se não o encontrar na carta das sobremesas, paro de comer por uma semana. Juro-lhe!... Aliás, vaaiii ensinar o nosso maitre doceiro como o confeccionar da maneira que gosta”, emendou rápido, não se perdoando por não ter o referido parfait.
“Quanta doçura de sua parte! Até é bem fácil de preparar, leva poucos ingredientes. O estimado Malaquias mistura bem o leite condensado (uma lata), o iogurte natural (um casco), o sumo natural de laranja (um copo), e as cascas raladas das mesmas (pouco menos de uma colher de sopa)”, disse Serafina, ciente que lhe fazia uma declaração de amor.
“Por favor Serafina, não continue, comove-me... e estou a conduzir...”, disse Malaquias com sinceridade, o Mercedes fugindo novamente para a esquerda.
“Ó meu querido amigo, não seja modesto”, riu com pudor.
“Olhe, depois continue a misturar, numa panelinha, a gelatina (sem sabor, e em pó), e a água (meia chávena) até a dissolver. Quando tiver ganho consistência mínima, coloque em taças, intercalando camadas de creme, com camadas da mistura obtida com a castanha de caju picada (cerca de meia chávena), e o chocolate branco ralado (igualmente meia chávena)”, estimulava, a meiga Serafina, mais uma vez Coquillage.
“Tempera suas palavras com tal carinho e saber, que me deixa extasiado!... Disse alternar camadas de creme de laranja, com a mistura da castanha de caju e chocolate branco? Será que ouvi bem?”.
“Ouviste Malaquias!”, disse-lhe, sem notar que o tratara por tu.
“Oh Serafina, como me enche a alma com esse parfait!...”, retorquiu, segurando-lhe a mão sem aperceber. “Continue, continue meu bombom, e depois?”.
“Oh Malaquias, como me derretes com tuas palavras, sinto-as como se fossem a mais doce tarte de framboesas... mas deixa-me acabar! Depois enfeitas com rodelas de laranja e pedaços da castanha que sobrou, e pões na geleira até estar pronto!...”
Foi ao verem, apavorados, o outro carro contra o qual iam inevitavelmente chocar por estarem fora de mão, que Malaquias notou, atordoado pela ousadia, que segurava a mão de Serafina, e esta, espantada, que já há algum tempo o tratava por tu, contra todas as regras da boa educação, tendo-lhe incluso confessado a sua maior fraqueza, a tarte de framboesas.
Durante as duas semanas do internamento de ambos, na mais chique clínica privada de Katola, a cozinha do restaurante “Pantagruel” esmerou-se no envio dos melhores pratos para o
patrão e sua futura esposa. É que Serafina Valente, logo após o desastre, perante a surpresa dos médicos que lhes colocavam o gesso nas pernas, aceitara novamente a proposta de Malaquias “Gordo”, feita ainda quando nos bancos do carro acidentado.
Quanto ao magnífico BMW do outro condutor, desprestigiadamente atirado para a berma do passeio e destruído quase por completo, o problema era da seguradora, o que estava feito estava feito.
Katola, capital de Inkuna, no ano de graça de 1996
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