quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

O IMAGINÁRIO NO TEXTO ANGOLANO (NO PRELO)


ANTÓNIO DE ASSIS JÚNIOR

Nascido no Golungo Alto, Kwanza Norte, em 1877, e falecido no exílio em Lisboa, em 1960, depois de uma vida marcada por prisões, residências fixas, desterros, o autor é, no campo literário, o último grande representante de uma época que teve o seu início por meados do século XIX, após a abolição da escravatura e que conheceria o seu fim pela segunda década do século XX. O trecho aqui contido, representa, ainda que encurtado, uma parte da população chamada civilizada, sociedade flutuante e de definição equívoca, numa definição do jornalista Castro Lopo, e localiza-se ao longo do rio Kwanza, entre a sua foz e Mpungu a Ndongo.

UMA SOMBRA

Seis horas de uma tarde de Fevereiro.
Entre as Ruas de Sá da Bandeira e Oliveira Massango, imediações do mercado, notava-se desusado movimento, próprio dessa hora, de homens mulheres e crianças que se dirigiam para as bandas dos bairros de Cahoios, Cambunze e Capacala, recolhendo aos domicílios.
No mercado, murado, calcetado e gradeado, tendo ao centro um alpendre coberto de zinco, as quitandeiras de fuba, azeite, batata e peixe seco armazenavam os balaios e quindas, potes e cabaças, dando assim por finda a faina desse dia, para continuar no imediato.
Outros homens, gente de ganho, de passo ligeiro, transportavam sacos e outros volumes á cabeça e tudo se encarreirava para aqueles lados onde as mulheres chegavam, e formavam grupos com as que encontravam – umas conversando e criticando os acontecimentos do dia, outras as cenas doméstica -; estas de pé, de quindas à cabeça e mãos à cintura, aquelas assentadas, com grandes lenços cobrindo-lhes as cabeças e, finalmente, ainda outras varrendo o terreno fronteiro às portas,
Todos aqueles grupos conversavam animadamente, e até pareciam dominadas pela mesma ideia, ou interessados no mesmo assunto sobre que conversavam, a avaliar pela forma e olhares perscrutadores por tudo que os cercava, cheios de curiosidade ou medo. As vozes, ao princípio alterosas e alegres, baixavam gradualmente de timbre, para que ninguém mais ouvisse o que diziam.
Todos esses colóquios ou conversas não podiam certamente deixar de referir-se, como os olhares davam a perceber, a uma pobre mulher, ainda nova, que um pouco distante, de passo incerto e olhar vago, os panos a arrastarem e a baba a cair dos lábios, se dirigia para os lados onde se encontravam.
Era o assunto de todos os dias, a conversas obrigatória sempre que duas pessoas se encontrassem nas encruzilhadas daqueles dois bairros, e vinha apaixonando consideravelmente os circunstantes desde que a doença da desgraçada rapariga se manifesta havia já cinco meses.
Ximinha Cangalanga, mais conhecida por a Doida dos Cahoios, constituía o objecto da conversa que dominava aqueles grupos. Natural de Luanda e filha de um Cabinda, patrão de lancha que fazia carreiras no rio Quanza, fora por seu pai entregue, anos antes, uma senhora do mesmo nome para ser educada. A mestra falecera havia já onze meses Ximinha, sem que ao princípio ninguém o suspeitasse, endoidecera haveria meio ano, depois de assistir a doença e o passamento da Rosária, sua condiscípula e amiga.
No princípio atribuiu-se à acção do jinvunji(Hidropisia. Feitiço que faz encher a barriga de água) que a preceptora professava, segundo de dizia, em alto grau, como sendo a causa da doença; depois veio a certeza da sonolência, que dizimava em grande escala as populações válidas das margens do Quanza e Lucala, para fim, se acreditar na existência de uma
força diabólica que reduzira aquele corpo à situação em que se encontrava.
Já não podia atribuir-se-lhe idade, em razão da sua excessiva magreza.
Os olhos, outrora grandes e formosos, eram sem expressão num brilho, as narinas dilatadas, beiços estendidos e cabelo desgrenhado. Caminhava lentamente, segurando com dificuldades os panos, que caíam, e soltava de vez em quando umas gargalhadas arrepiadoras, que mais pareciam casquinadas de feras, seguidas de palavras e frases desconexas e incoerentes.
Procedia dos Cachoios, de que lhe proviera a alcunha, em direcção à beira do rio, passando por Capacala. Atingindo o ponto de destino, tornava por mesmo caminho até ao local da partida. No percurso para qualquer dos lados tomava um desvio ou outro atalho, mas era certa a execução do itinerário.
Não se detinha, como também poucos olhavam para ela. Pretendia, às vezes, nos momentos que a outros pareciam de lucidez, recordar factos e, aos que passavam, apenas pedia que a desamarrassem.
- Sim, estou amarrada, estou presa, não vê? - e apalpava os pulsos e os tornozelos. - É esta a corda, e o guarda... o guarda está ali...
Vagueava o olhar e, trémula, apontava para além, num gesto incerto e indefinido.
- E ela está ali, a seguir-me também, e este soldado... a puxar-me...vê? Desata-me... sim, desamarra-me, e ficarei solta...
E com estes dizeres, que ao princípio ninguém compreendia, seguia seu caminho sem aguardar sequer resolução do pedido formulado.
Aqueles olhos jamais secaram, e toda uma imbecilidade se estampara por aquele semblante, cansado de contracções.
E assim andava, vacilante e indecisa, para, alguns passos depois, parar e, num grito lancinante e doloroso, que deríamos uma gargalhada, exclamar:
Ah!... ah!...ah!.. a! Tamene ki nganhanene’ ami-ê! (Oh! Oxalá eu não roubasse) …ah! … ah!… ah!…ah!… ah!
- As fronhas? Eram duas... sim... kiene… na mala.... exacto... saku...sim.. na mala... (Kiene (exacto)Saku (antigo saquinho de dinheiro em cobre)).
E ria, ria às gargalhadas, dolorosa, arquejante e sinistramente, terminando por frases incoerentes, imperceptíveis.
- Coitada da Ximimha! Bem melhor seria de Deus a levasse - aventurou Isabel Brás, filha do velho Kimbumba, que se encontrava na ocasião em que ela passava.
- Sim, seria bem melhor - apoiou umas das companheiras. - Muitas vezes não sabemos o que fazemos; pensamos que ninguém nos vê, o no entanto...
- Mas o que ela quererá dizer com aquela história de pedir que a desamarrem? – Observou uma donzela de outro grupo.
- Sim, é verdade. Pois ela está solta, ninguém a prende... – secundou uma outra, com certa admiração.
- Oh!, filha cala-te!... Ninguém sabe o que nos virá a acontecer amanhã – aconselhou uma mulher meia idosa, lá do canto. – Esta terra, cheia de seres sobrenaturais, de mitos e feitiços de toda a ordem, que se revelam em sonhos e em outros casos da nossa vida, foi sempre cheia de surpresas e decepções. Falando e criticando, os manes levantam contra o censor. Pessoas incrédulas aqui sossobram. E Embora custe, o ki a tobela […] o riembu, mutu umoxi k’a ki rimukin’ê (O que o povo aceita é temeridade um só querer obstar. Vox populi vox Dei).
Vê-se, horas mortas, mágicos atravessando o rio às costas dos jacarés; outros ordenando às serpentes imolar vítimas; ainda outros, disfarçados em chuva, provocam a fúria dos elementos – sapos que nos tiram a vida durante o sono, e galos metamorfoseados em raios, que nos incendeiam as casas -; falando a sós, o kimbanda nos revela amanhã as nossas palavras e pensamentos. Aqui reunidos, olhares invisíveis nos vigiam e ouvidos indiscretos escutam nossos dizeres, Quem diria… sim, quem diria que esta pobre rapariga… oh! O jinvunji… o feitiço da nossa terra… calemo-nos.
- Tem razão, velha Joana; isto aqui é uma terra difícil; ixi ia ituta; ia jinvunji, ia ianda… (Terra de mitos, feitiços e entes sobrenaturais. Kianda, segundo João de Pinho, é uma "divindade da mitologia africana. Segundo a crença dos indígenas, Deus Nosso Senhor dividindo o mundo por todos os espíritos do mal que afligem a humanidade, coube à Kianda o império dos mares, dos rios, das lagoas, dos lagos, das pontes, dos charcos, dos outeiros, dos bosques, etc. Sob sua influência também ficaram sujeitos os animais racionais e irracionais, a chuva, a peste, a fome, a guerra, a paz e, finalmente, todos os elementos. A mesma influência nos destinos humanos, a que preside, se lhe atribui quando, numa família, a parturiente dá à luz um ser deformado, ou anómalo. Neste caso toma o nome de Kituta, e é tratado com todos os respeitos e cuidados. Em geral é de pouca dura: regressa à procedência por não ser este o seu mundo") calemo-nos sim… calemo-nos todas, que tudo isto mete medo… muito medo…
E o sussurro, a conversa, ao princípio animada e alegre, decrescia, diminuía de intensidade pela aproximação da Doida dos Cahoios, no seu passo lento e incerto.
Avizinhava-se a noite e, sob pretextos vários, as componentes dos grupos se dispersavam, uma a uma, tomando cada qual o seu rumo.
E a doida lá seguia, cumprindo o seu fadário. […]

[…] Noite fechada.
Na sala de entrada os olhos que compunham os diversos agrupamentos continuavam conversando - uns sobre os acontecimentos do dia: as comitivas de quiocos e bangalas que entraram nesse dia para a casa do Sousa Lara, do Karikoko ou do Mesu’a ngatu; o avanço do caminho-de-ferro como possível causa do decrescimento do comércio do Dondo; as chuvas do ano; as cheias do rio; as doenças da região e o modo de
as combater; os estragos do jacaré, etc. - e outros colocavam as pedras sobre um tabuleiro de damas na extremidade da mesa.
Lá dentro chora-se... conversa-se.
No quintal, sob o toldo armado, a confusão de vozes e grupos era maior: a bisca era a o jogo quase que obrigatório dos que ali se encontravam - pelo menos o que todos sabiam melhor -, provocando a hilaridade dos presentes quando dois parceiros apanhavam um capote de doze pontos, ou o da direita rondava e chiava o sete do aniversário. O entusiasmo então crescia com a saída de uns, impotentes de uma desforra, e a entrada de novos parceiros mais adestrados no manejo das cartas.
No chão, homens e mulheres do povo, estendidos sobre loandas e esteiras, contavam missoso (histórias, apólogos ou narrativas com cantos adequados), ofereciam jihengele (adágrios) e propunham jinongonongo (enigmas), tudo sob a frouxa luz de fumarentos candeeiros, velas e lamparinas de azeite de palma, noites seguidas até altas horas em que os jogadores abandonavam o campo das manobras e os historiadores, que já ninguém escutava, emudeciam por sua vez para, na noite seguinte, condenarem os que adormecerem antes de findar ou se interromper a história - o que se testemunhava com a apresentação de um objecto seu (um pano, um lenço brinco, um botão, etc.), em poder de um terceiro, tirado enquanto dormia.
As condenações consistiam, em geral, na apresentação, em dia aprazado, de comidas e bebidas para todos os historiados e ouvintes de cada grupo - o que animava os contadores a novas históricas e novas condenações por muitos dias, além de outros comidas e bebidas fornecidas pelas parentes e amigas da finada. E lá dentro, no quarto das viúvas, o mesmo sucedia. Cada uma contava o que sabia «para passar o tempo e entreter as viúvas», sem contar as ofertas em géneros e o dinheiro dos que iam cumprimentá-las por si ou por parte de terceiros. Só estas é que se não sentiam muito satisfeitas pelas visões que de noite as faziam estremecer a cada passo, sem embargo de nunca terem olvidado, diziam, os preceitos a observar em casos tais: choravam, invocando a alma da defunta, duas vezes durante o dia - ás 6 horas da manhã e a igual hora da tarde -, até ao dia da celebração da missa ou simples responso.
- É que a essas horas – sossegava a velha Mungongo-a Zuze - a alma da finada, que nos não abandona jamais, vagueia pelas casa que habitou e sabe que é lembrada; as nossas lágrimas são como que um bálsamo que suaviza a alma dos que já lá vão...
- Sim; mas a tia há uns dias para cá aparece-me em sonhos muito zangada, a bater-me e a arrancar os panos que trago vestidos - respondeu Ana Reis, pesarosa. – Hoje sonhei com ela a correr atrás de mim com uma acha de lenha acesa.
- É talvez por as suas lágrimas não serem sinceras – insinuou, do outro lado, velha Chica- ; vocês, as meninas de agora, às vezes estão a chorar, sim, mas a pensar em outras coisas!.. isso não é bonito.
- É verdade – apoiou Capaxi, que entrava nesse momento -; também a Ximinha já me apareceu em sonhos a pedir-me que te avisasse a acabar com os amores que estás tendo com um Fulano daqui mesmo.
- Eu, minha senhora!? - Protestou Ana.
- Eu não sei se isto é ou não é assim: eu não tenho vindo cá às noites, como sabes. Se é verdade ou não, consulte a sua consciência. os mortos não falam, mas os espíritos vêem e sabem tudo.
Ao protesto da Ana Reis, Rosário levantou os olhos, em ar de censura, para a companheira, e baixou-os em seguida, puxando o pano preto para a cara.
Capaxi viu isso, e compreendeu.
- Então é verdade - disse consigo -; os mortos não mentem.
- A mim também - disse por sua vez Ximinha Cangalanga – já me apareceu duas vezes em sonhos com um homem que parecia um soldado, a amarrar-me uma corda à cintura. Eu aflita, queria gritar, mas debalde; queria fugir, e não podia; eu chorava e debatia-me com toda a força, e suores frios inundavam-me todo o corpo quando acordei, trémula e assustada. Ali! Que medo!... uoma ua’nhi ué... (Que susto!?...)
-Também tive ontem, é singular!... o mesmo sonho que tu, Ana – disse – Rosária, levantando um pouco o pano que lhe tapava os olhos - ; a minha mestra corria atrás de mim, zangada, com um tição aceso… Não são bons estes sonhos; não lhe parece, D. Capaxi?
- Ah!, sem dúvidas nenhuma. Eu apenas sonhei com ela dois dias depois do seu falecimento; vinha vestida de preto e trazia na mão um chicote. Assentou-se junto de mim e, em conversa, repetiu as mesmas palavras que me dissera, neste mesmo lugar, momentos antes de morrer: que «de nada receasse, porque fui muito sua amiga, mas que os meus olhos testemunhariam muita coisa; mesu mé mondo kala mbangi. Mukutu uámi uá ka íba, o ima iâmi ia ka uába!? Ambula, paxinha, mondo tala maka. Ja´kula ka Humbi, kizúa kilombelombe u j’ibula»... (Teus olhos serão testemunhas. Foi mau o meu corpo e bons os meus haveres!?... oh! Deixe, Paxinha, verão (os olhos) coisas. Dêmos tempo ao tempo, dia virá que tudo se saberá...» Kakulu (de ukulu), o primeiro, o mais antigo, remoto. Humbi, pássaro do tamanho da águia, preto (assim conhecido possivelmente em razão da sua longevidade, que em certa época do ano ou de anos aparece em bando, no espaço, muito alto, soltando pios estridentes, agudos. Entre os indígenas, a aparição destas aves pressagia cataclismos, desgraças, algum acontecimento mau. Kilombelombe, corvo. Em síntese, traduz que «pelos bens deixados pelo Humbi - o mais antigo dos pássaros - perguntará um dia o novel Corvo»)
- Também a mim disse o mesmo, e que não tivesse medo- acrescentou a velha Chica.
- Dessa maneira vejo que mesmo do Além visitou a todos- disse Munhongo –a – Zuze -; ela bem o disse: «Do outro mundo falarei...»
- Eu estou á espera se completem os trinta dias para as missas- continuou Capaxi- ; ela por certo não se zangará connosco, por abrimos as janelas ao trigésimo dia.
E passaram, para esse efeito, a combinações várias, acerca do acto a realizar. Mas os sonhos, reputados maus por uns, e havidos por avisos salutares do Além por outros, continuarem, por parte das viúvas e Cangalanga, como da Capaxi, que por meio deles tomava todas as providência tendentes às disposições da casa.
- Grandes surpresas nos reservou Ximinha Reis – comentava D. Conceição.
E não se enganou.
Os dias foram passando nesse tumultar de contos, choros e jogos e, ao vigésimo quarto dia, Capaxi anunciou entre a multidão do quintal a celebração da missa, sufragando a alma da Ximinha ao trigésimo dia. – “Pangu a ibula mukulu, matote á calunga a maibula mufundi” (Pergunta-se a virtude ao espírito, e os restos mortais ao enterrador) - começou ela por dizer. Ninguém duvidou das provas de sentimento que desde o dia do passamento da nossa amiga todos têm vindo aqui tributar-lhe. Semelhante procedimento é uma demonstração do quanto Ximinha era nossa amiga e por todos estimada, sendo até a primeira Presidente honorária escolhida da primeira associação que aqui se organizou. Gozou de gerais simpatias e a sua porta jamais se fechou para ninguém. Creio, pois, que todos os que se encontram aqui presentes não se recusarão a contribuir para as missas com o que puderem, venerando assim a memória daquela que nos faz aqui vir. Se é certo que a ideia não é nova – a constituição do que nós chamamos sangu (Subscrição, colecta ou donativos ou total de quantia angariada entre vários para compra de comidas, ou para qualquer outro fim) - nem por isso deixa de primar pela oportunidade; e penso que só desta maneira poderemos testemunhar a amizade que tivemos pela nossa amiga...
Estas palavras foram aprovadas por aclamação, por todos bem recebidas; e nos quatro dias imediatos cada um ia entregar à proponente a parte que lhe cabia na contribuição.
- Bem lembrada, sim senhor – apoiava Venceslau -; a proposta não podia ser, melhor, nem mais a propósito.
- É verdade - apoiou Isabel Brás, que viera de dentro e assistira à prelecção -; a defunta era muito nossa amiga e devemos por isso concorrer com o nosso óbulo para as missas a celebrar… Santas palavras as da senhora Capaxi.
Eu - disse Venceslau - tencionava ir-me embora amanhã com o seu irmão José Brás; mas agora espero pelas missas...
- Venceslau, que assim falava, era um rapaz alto, esguio, tinha os seus negócios e residência no Libolo, e vinha ao Dondo por vezes entregar géneros e mantimentos, que permutava, e fazer novas requisições de mercadorias. Natural da localidade e conhecido da defunta, ali ia às noites passar com outros umas horas jogando a bisca a ouvindo misoso.
A aproximação do dia aprazado fazia atrair ao local fora das horas do costume mais pessoas, disposta a prestar o seu auxílio nos donativos, arranjos e aparatos da casa, para que nada faltasse.
Maria de Castro e velha Chica a tudo providenciavam, lavando louças, compondo e limpando mesas; e Muhongo e Capaxi entre si concertavam a forma como o acto devia correr. Conversa vária se abordava entre os minúsculos grupos assim constituídos e no meio dela não escapou a dedicação que Capaxi mostrava pela sua amiga.
- Oh!, amizades como esta aparecem para exemplo das ingratidões do mundo...- sentenciava Maria de Castro. […]

[…] Em 1872 seguia, Quanza acima. D. Clara Júlia Pires Pederneira. Se marido, João Feleciano Pederneira, acabava de ser despachado administrador do concelho de Pungo Andongo, onde já residia, e decidiram fazer a viagem por mar, que era, senão dispendiosa, pelo menos mais cómoda.
Esperaria uns dias no Dondo pela esposa, que se destinava também a uma devoção à Muxima, à milagrosa N.ª S.ª da Conceição, em cuja igreja, situada na margem esquerda do rio, se ajuntava avultado número de peregrinos idos de toda a parte. Ali esperava D. Carla encontrar cura para os seus achaques morais, e para isso levava, representada em doze velas de cebo, uma promessa devido ao seu estado de saúde, que a trazia bastante preocupada.
De facto, havia muito tempo já que anunciara ao marido, antes da saída deste para Luanda, que ia em breve dar-lhe mais um herdeiro – o terceiro do seu segundo matrimónio; mas o período de gestação passou sem que aparecesse à luz do dia o fruto das suas entranhas. A incredulidade do marido e o seu próprio desânimo constituíram uma nódoa negra na existência de ambos.
- Foi por certo um engano de tua parte – dizia-lhe o marido a medo -, pode lá ser que, passado quase um ano, não tenhas pelo menos mostrado indícios de gravidez? […]
[…] Saiu a velha Maceca a desempenhar-se da missão que se impusera. Uma mulher de nome nga Samba-ria-malunga, kimbanda de altos merecimentos, consultada, adivinhara por meio dos seus manes, tratar-se de um hebu – feto cuja gestação se prolonga por anos sem conto -, frequente em terras de imagens encantadas ou entes sobrenaturais, que dominam o curso das águas e habitam os altos penedos de Pungo Andongo, onde era natural.
A gravidez do hebu de D. Clara ecoou por toda a povoação com a velocidade de um relâmpago. Era quase o assunto de todas as conversas, e todos aconselhava e aceitavam como precisos os preceitos impostos pela kimbanda. O recolhimento em um recinto reservado tornara-se, pois, necessário, para honra dos deuses do Olimpo e proveito dos doutores da Terra.
Tudo, porém, tem seu termo, como os males seus remédios. Para este caso, o da cura do hebu, bastaria observar as regras que a kimbanda prescrevesse e o fenómeno desapareceria, o encanto quebrar-se-ia, deixando nascer a criança.
D. Clara ao princípio hesitou, duvidosa; mas por fim acabara por ceder, por ver nisso o único meio de cura, conforme vozes dos circunstantes. «Era preciso observar os preceitos indicados, no caso de querer ter saúde e ver-se livre daquele pesadelo…»
Cumpriu.
Em Pungo Andongo, longe do marido, subtraíra-se das vistas das pessoas de certa respeitabilidade; tirara os vestidos, que substituíra por panos, e descalçara as botas. Untara a cabeça de tacula, com traços pretos na testa e nas fontes; na cintura um pequeno guizo e sobre a cabeça uma espécie de coroa feita de erva de kandámbia (Certa gramínea, que também serve para alimentar gado suíno).
As refeições tomá-las-ia sozinha, bem como qualquer bebida (água) e dormida. A qualquer acto que praticasse ou resposta, invocaria primeiro o nome de hebu e, assim, com um pequeno chocalho, saxi, anunciaria todos os movimentos que executasse:
- Hebu iami, sentemo-nos; hebu iami almocemos; … caminhemos; … deitemo-nos; respondamos, etc.
- Ai! Que aborrecimento!? – murmurava ela de vez em quando.
- Assim é preciso, senhora; que fazer? – animava a Maceca.
O hebu constituiria, assim, a sua única preocupação, o canto ou a conversa obrigatória para aquelçes com quem lidasse… Era preciso que assim fosse; de contrário malograr-se-ia tudo.
- Kuvala ku a rile o kanjila um ngongo, tu banga ua’nhi? (Sucumbiu pelo mundo fora o passarinho por amor de seus filhos)
Que devemos fazer? – apoiavam algumas mulheres que a iam visitar.
Mas o tempo foi passando e o encanto não se quebrava; a barriga continuava no mesmo estado.
- Tem paciência, senhora; o hebu é um ser de muitas virtudes, como também causa de muitas desgraças; a kimbanda afirmou…
- A kimbanda é tão boa intrujona como tu, minha parva – retorquiu, fora de si, D. Clara. É de mais, e não posso suportar por mais tempo estas mindángulas
(Patranhas).
Levanta-se furiosa e, arranca os cordéis que a ornamentavam e arremessa tudo para a casa do diabo, decidida a contrariar as prescrições da doutora e provocar a ira dos deuses.
- Ora é de mais; se eu tiver que morrer, que morra; mas não aturo mais isto… […]

[…] Foi em princípios de Julho, depois dos sucessos que ficam descritos, que seguira para Luanda, onde se marido se preparava para ir tomar posse do seu novo cargo.
Posta ali, o marido não deixou de insistir que se tratava apenas de uma cisma, de um equívoco, e nada mais.
- Bem os milongos (remédios) da terra não deram nenhum resultado; é realmente uma pantominice, a que ninguém deve dar crédito. Mas eu tenho fé, e iniciarei uma jornada até á Muxima, e a N.ª S.ª da Conceição, que me ajudará, desde já entrego o ente que as minhas entranhas contêm… Ela me ajudará e salvar-me-á.
- Faça o que bem entender, Clara; a fé é tudo neste mundo; é com fé que escapamos da morte; e realizamos empreendimentos que nos parecem impossíveis. Mas, cá para mim, o que disse está dito: é cisma…

///

As viagens por via marítima, nesses recuados tempos, embora cómodas, não deixavam de ser dispendiosas. O vapor estava prestes a sair e nele se instalaram João Pederneira e sua mulher […] ele passando em revista algumas notas por que iniciaria os trabalhos logo após a sua chegada à sede da administração; ela recolhida em fervorosa oração, no íntimo da sua alma, tendo com única preocupação a promessa feita à protectora das mães infelizes. […]
[…] Já junto da barra, o barco baloiçava um pouco mais do que seria de desejar. Alguns passageiros não puderam suportar o enjoo e tiveram, recolhidos nos seus beliches, que “chamar pelo Gregório”, na frase picaresca do Comandante. D. Clara, que fora um desses passageiros, receosa e inquieta, não pôde sossegar. Pesava-lhe a cabeça, que ardia em febre. Uma inquietação violenta invadira todo o seu corpo e, por fim, uma onde de água salgada veio varrer o convés do vapor, fazendo-a assustar grandemente.
A ideia de que o navio submergia, seria engolido pelo mar furioso, imenso, encapelado, não tardou a apossar-se dela. Seu marido e a velha criada, que junto se encontravam, não conseguiam sossegá-la.
- É lá possível o vapor ir ao fundo, Clara! – dizia-lhe o marido.
Mas ela, transtornada, alucinada, a nada atendia, nada a fazia conter. Dir-se-ia que endoidecera.
E nesse estado de corpo e de alma, agarrando-se a tudo e tudo mordendo – paus, ferros, lençóis e as próprias vestes -, o vapor singrando barra dentro e, no convés, alguns passageiros mais ousados ou dominados do desejo de admirarem o doce espectáculo da passagem do mar para o rio, contemplavam o fechado mangal das terras do Tombo – D. Clara, apenas assistida de seu marido e ajudada pela celha criada, dava à luz do dia uma robusta criança de sexo feminino.
- Bravo!, quebrou-se o encanto. Louvada seja a imaculada Maria mãe de Deus – disse ela como que falando a sós.
- É verdade… tinhas razão… Ora até que enfim… Quem tal diria!...~
- Kolê-nu! Oh! Kiua! Kiua (Exclamações de alegria, que traduzem: Eureka!... Hurra!... Aleluia!... Viva!...) – exclamava, por seu lado, a velha criada, que, louca de alegria, agasalhava a parturiente.
- Chamar-se-á Elmira – disse o marido, tomando a criança nos braços.
- Sim; mais chamá-la-ei de Kapaxi.
- Ora adeus!... mas que lembrança…
- Será como quiseres, mas é assim mesmo: ió mon’ami ua jipaxi; Kapaxi kami ka jingongo, ka malamba… (Kapaxi corresponde a Dores portuguesa ou Dolores espanhola… «Essa é a minha filha de sofrimentos e dores…» e jipaxi, jingongo, malamba, são sinónimos, traduzem a mesma ideia)
E dizendo isto, mentalmente agradecia, em breve e contrita oração, à N.ª S.ª da Muxima, à Mãe das aflitas, mama Maria, refúgio das almas abandonadas, que mais uma vez se revelara protectora das mães sofredoras.
Foi isto no dia 5 de Agosto.
- Vê, senhora!... e encanto quebrou-se, não com as ninfas das pedras de Pungo Andongo, mas com as do mar, mais fortes e virtuosas – dizia por fim a velha criada, recebendo a menina. – A velha Umba tinha razão… cá temos a nossa menina…
Jingolêla j’ a ri tula… (As primícias manifestaram-se) […]

[…] Às 5 horas da tarde, D. Clara pôs-se a caminho com destino ao Mièji. Ia a pé, apenas acompanhada do criado Mateus, que também dá pelo nome Malianvu, de espingarda de pederneira ao ombro.
- O velho Quinguimbo tinha vindo participar à senhora que o leão…
- Sim, já sei tudo; o menino Alfredo disse-me, mas eu estava no óbito do meu sobrinho…
- Não era mau, senhora, mandar parte do gado para outro lugar. Quinguimbo está cansado, velho; o curral precisa de ser reconstruído e os bichos…

- Minha irmã disse-me a mesma coisa, mas também as mudanças não dão bom resultado, não fazem nada bem aos gados. Os pastos e as águas não são os mesmos, o gado ressente-se e às vezes morre…
D. Clara apressava o passo para assim poder estar de volta ainda dia. E mesmo porque uma simples inspecção não levaria muito tempo. A estrada, pouco transitada, não era muito larga. Mas, no fim de um quarto de hora de trajecto, D. Clara estaca, assustada:
- O que é isto? – Pergunta ela apontando para um traço verde-escuro que a poucos passos atravessava o caminho.
Mateus olhou:
- É uma cobra, senhora.
- Está morta?
Mateus tornou a olhar:
- Está viva, e caminha tão devagar…que se não percebe.
- Ora aqui está – disse ela altamente intrigada – umas em sonhos e outras na realidade. O que quererá de mim essa cobra?
Perturbou-se, com embaraço nos movimentos. Não sabia se avançava, se recuava. Cismática, dotada de espírito fraco, deixando-se influenciar, como vimos, por elementos estranhos, não atinava com que fazer. Tirou o xaile com que se cobria e tentou avançar, mas não pôde. Por fim, tomando alento, passou o xaile pela cintura, recuou um passo e falou assim:
- Cobra dos meus infortúnios e mensageira das minhas desgraças, que quererás tu de mim? Sim, o que pretendes? Nos anais da minha vida ocupaste sempre um lugar sinistro. Porque me persegues, já em sonhos, já acordada? Porque atravessas o meu caminho? Quem és seja amigo o teu mandante, sejas tu o próprio malfeitor que te transformaste em cobra, porque me embaraças o caminho? Oh! Maldita Oh! Satanás!
- Vai procurar outros caminhos! Vai imolar outras vítimas! Que as anjos do céu te excomunguem e afundem no fogo eterno! Maldita tens sido sobre a Terra! Não me alcançarás, não e quebrarei teu encanto e magia...
Depois deste exórdio, que ela chamaria muxibu
(Contestação às divindades ou manes tutelares pelos males que se apresentam ou desgraças que ameaçam a existência. Muxibuuêlé; muxibu ua lungu diz-se numa pendência quando o contestante decai ou vence, afinal. Kulunga, ter razão), recuou mais um passo e, cedendo o lugar, disse para o criado:
- Mateus, mata esta cobra...
Este avançou e, apontando, disparou. A viva, detonação ecoou por aqueles campos fora. A cobra, eficazmente atingida, contorceu-se muitas vezes e imobilizou afinal. Mateus com a ponta de um pau, afastou-a para o capim e cheia de precauções seguiram seu caminho, lançando ao local um derradeiro olhar.


///

Quinguimbo deu conta à patroa dos estragos do leão: matara sete bois em 15 dias. O curral estava defeituoso e sem grande segurança. Mas que o ia reconstruir; as crias desenvolviam-se bem...
D. Clara, porém, não prestava grande atenção á exposição do velho serviçal, que não deixou, por sua parte, de notar a inquietação de sua patroa.
- O que tem a senhora, que se mostra assim tão alheada? O que lhe sucedeu? - perguntou em voz baixa ao Matianvo.
- Foi uma cobra que viu atravessada no caminho.
- Mordeu-lhe?
- Não; estava parada...

- E fugiu?
- Matei-a eu…
- Com um tiro - completou Quinguimbo olhando para a espingarda.
- Sim
- Ah! Foi o susto que apanhou...
D. Clara nada disso ouvia; assustava-se arreada, a cada momento, olhando para trás e para todos os lados, como que a querer evitar a aproximação de alguma coisa. Vagueava olhar em volta e estremecia a cada instante.
- Riuê! nhok’ê...
(Aii!... a cobra) - exclamava tremente.
Sentia-se doente; suores frios inundavam-lhe o rosto e um torpor esquisito se apossava de todo o seu organismo.
Era noite. Ao marido, filhos e criados contara o encontro inesperado que tivera pelo caminho, narração entrecortada pela exclamação de nhoka, com olhares perscrutadores.

- O nhok’ ei! Inhi i andala n’ eme, o nhok’ ei (Esta cobra!... O que pretende de mim esta cobra!?...)
dizia repetidas vezes.
Assentava-se muitas vezes sobre a cama, onde já se não sentia bem. Esperança assentada sobre os calcanhares junto dela, tomou, apesar da sua idade, a palavra, e, em tom de conselho, disse:
- Efectivamente, senhora, a aparição de uma cobra é sempre sinal de qualquer má nova. Assim o ouvia de minha falecida mãe; assim o disseram também as velhas no quintal, às quais contei o sucedido.
- Sim; para mim uma cobra é prenúncio de mau agoiro. Foi assim na morte de minha mãe, e, há dias, no caso do meu sobrinho...
- Pois, se a senhora dessa licença, eu e a Catarina iríamos saber o que essa cobra queria, quem mandou... é sempre bom...

D. Clara nada respondeu; estava recolhida na cama, rodeada de suas filhas. A visão da cobra não lhe passava; em todos os objectos e em todos os lugares divisava a cobra, “a mensageira da morte”, como lhe chamava, contorcendo-se agonizante por largo tempo, até á imobilidade… Lembrava-se depois das visões de cobras que tivera e das pessoas de família que pereceram, confundindo-se em recordações várias, absorta, extasiada, para depois de algum tempo exclamar assustada:
- Aiuê! Nhok’ê….

No seu sonho sempre crescente, outras cobras lhe apareciam, grandes e pequenas, enlaçadas e solitárias, enroscando-a nos pés, braços, tronco... Ela debatia-se, mas debalde, porque o número crescia… crescia… Arrepelava-se, sacudia-se, gritava que a acudissem. E com esse grito nos lábios, com essa frase tremenda, fatal, saltava, de repelão, para fora da cama, transtornada, assustada, de olhos esbugalhados...
- Aiuê! Nhok’ê...
Dois dias depois regressou Uakinga da sua missão cabalística.
- O que lá te disseram? Que novas me trazes? – perguntou logo que a criada entrou.
- Não são más, senhora.
- Como assim?
- Foi uma precipitação de sua parte e nada mais.
- Não compreendo. Então a cobra...
- É fácil compreender, senhora. A cobra passava; como qualquer outro vivente, seguia seu
caminho; não lhe acometera, não fizera mal a ninguém; e ela agora “chora a sua vida”, que lhe foi arrebatada… (Ku a lunga i al’ o’ rila o mucunhu uê)
- Oh!... mas eu sonhei... sei, não me enganei… cobras e feiticeiros...
- Hum! Nzoji... malanza, xinhola; ki u inda, kala kiri (Sonho… Ilusão, quimera, senhora; quando se sonha afigura-se-nos verdade).
-
Mas como sabes tu isso?
- A ixana mu’ ia malunga... e falou
(Foi chamada na panela dos espíritos).
- Visão tua, Esperança; já tua mãe me dizia a mesma coisa, para me sossegar...
- Engana-se, senhora; eu vi com estes meus dois olhos; e não quero ocultar-lhe o que vi nem deixar de dizer-lhe que ela disse...
- Então o que viste?... Conta lá.
- Eu vi a cobra dentro da panela de água a ferver e, por intermédio do kimbanda, a cobra falou...
Houve uma pequena pausa, como que a calcular o efeito produzido por estas palavras, e continuou:
- A cobra falou... Lá do outro mundo
, «chora a sua vida»; «passava, seguia meu caminho como qualquer vivente; não lhe a acometera, nenhum mal lhe fizera; o caminho é de Deus e dos homens, quem passa vai e quem fica está: porque me matou? - Perguntava ela. - Por que causa, por que crime?» Eu vi... e ouvi com os meus próprios ouvidos...
E Uakinga, então, espraia-se em minúcias; a recepção do kimbanda; o ritual do mutakanu (Este termo vem do verbo kutakana, buscar, encontrar, dar de face com..., e equivale a preparos, ou adiantamento que a consulente dá para o kimbanda manobrar), assinalado pela entrega de seis vinténs e uma garrafa de aguardente; os preparativos em quarto escuro; a confusão de vozes fanhosas e guizos no alto da cubata; a exibição da panela de barro, nova com água sobre três masuika
(Pedras sobre que assenta a panela, para cozinhar; trempe), sem fogo por baixo e esta, mediante palavras cabalístacas do kimbanda, ferver; aparição da cobra de azul-escuro, dentro de água, contorcendo-se em voltas de agonia e, por fim, as palavras que proferira, com espanto e admiração dos assistentes...
Eu vi, senhora, sem necessidade de dizer kanduka
(Palavra que, em assembleias ou acto solenes, significa «apoiado», «continue» antítese de «malanza», não é verdade), palavra do costume quando o kimbanda adivinha a verdade que já sabemos, disse... que era preciso fazer...
Uakinga esperou.
- Então... diga lá... o que se deve fazer? – Perguntou a patroa com algum interesse.
Como qualquer vivente que era, deseja ser chorada a mu rila o tambi
(À letra:”que se lhe chore o óbito”). Tem a senhora que nomear uma das minhas companheiras para servir de muturi (viúva) e, durante 8 dias fazer óbito, dar o sangu e a comida da noite (Kuria usuku, ceia dedicada aos espíritos na véspera da missa ou responso, e coincide com a limpeza da lareira, cuja cinza, durante todo esse tempo, não é varrida (kakomba o rito-kua), nem a casa limpa, em sinal de tristeza. Em pontos mais afastados, e entre indivíduos separados no seio da igreja, as viúvas e parentes do morto besuntam a cara de carvão, lodo ou cinza; sendo nessa noite os detritos lançados ao rio ou depositados sobre a sepultura do finado.
... missas... etc.
D. Clara ouvira silenciosa o relato da jovem criada, que lhe revelara segredos do outro mundo. A dúvida, porém, não a deixava tomar uma resolução, ou fixar uma ideia. Contudo, a revelação do kimbanda tinha bem o seu fundamento.
De facto, a cobra não lhe acometera; mas o que fazia ela ali? Podia tê-la feito fugir, para lhe deixar passagem; foi esse o seu erro, talvez o seu crime. Mas ela Fugiria? Não se revoltaria contra ela?... não lhe queria mal; e porque lhe atravessara o caminho por onde passava? Que fim? Que lhe queria?
Estas e outras perguntas assaltavam-lhe à mente enquanto Esperança concluía a narração do que vira; e, por fim, o desejo da cura, de não mais ver nem sonhar com cobras, de se ver livre daquele tormento, triunfou. Aceitou e aprovou os desejos da cobra, chorosa, lá no outro mundo, e consentiu em satisfazer a vontade da alma «vítima», que do além-túmulo reclamava sufrágios...

- A fé tudo neste mundo - repetia o marido quando teve conhecimento da ocorrência -, é com ela que as magos e os doutores tiram das coisas deste mundo o seu melhor resultado...

///

Na cubata de Catarina, a muturi escolhida, reuniu-se o óbito com a assistência e choros dos demais escravos. Para lá mandava D. Clara garrafas de vinho, de aguardente e iguarias às viúvas e suas companheiras, pois a alma da cobra recomendara «não faltar nada», e Catarina nenhum preceito olvidava - não fosse ela, do outro mundo, fulminá-la também...
No sétimo dia teve lugar o sangu, que em outro lugar já explicámos, para todos os que fizeram parte do óbito, e o oitavo a
«comida da noite» guisados e assados de carnes de porco, carneiro galinhas, vinhos, licores, doces, etc., que se dá ao espírito da pessoa morta á meia noite.
Esta cerimónia é a mais delicada nestes casos, em que a alma do morto comparece no local com os seus amigos e parentes. Preparada a ceia, colocam-se, ao ar livre e em lugar não acessível a todos, sobre uma mesa coberta de uma toalha muito branca, com copos, pratos e talheres, as viandas e licores, tudo compatível com a categoria ou grau de educação do falecido ou do que faz a cerimonia, na qual intervém, em geral, uma velha a que chamaríamos «mestra de cerimónia», que dirige, compõe e harmoniza as duas partes; os que já foram e os que ainda cá andam. É uma cobra? Não; é uma alma a sufragar. Aí, tudo, comidas e bebidas, permanece descoberto, como que abandonado, por espaço de meia ou uma hora, pela pessoa mais velha ou pela encarregada da cerimónia, enterrados, como o fora o corpo do invocado, para que «viva por lá, no outro mundo, em paz e sossego, e não venha ou tente perturbar os que cá ficaram». E no dia seguinte, de manhã, é mandada celebrar pela muturi uma missa na igreja, ou simples responso, sufragando a alma do defunto, para que entre na eterna bem-aventurança.
Mas, no caso que estamos registando, a dúvida não foi pequena sobre se se devia, ou não, mandar rezar a missa.
- Como, se cobra não tem nome? – Obtemperava Esperança.
- Na verdade, assim é; mas não se trata aqui de um a cobra - retorqui Catarina.
- Eu ouvia minha mãe dizer que a missa é mandada celebrar por almas de pessoas iguais a nós... Uma cobra não uma pessoa... replicou Esperança.
- E se assim é, para que estamos nós aqui? Se lhe «choramos o óbito» como se fosse uma pessoa, como omitir a cerimónia da missa? – insistiu Catarina, receosa de qualquer maldição da cobra.
- A cobra pediu óbito, não pediu missa; além disso, a senhora está ainda doente... que diriam depois?
- Sim, o melhor é não se dar a missa na igreja, porque disso não entendemos, é quanto basta.
- Eu também assim o entendo – apoiou Tekula.
- E mesmo porque o sr. Padre não aceitaria celebrar missa por alma de uma cobra – rematou Esperança. – Era o que faltava...
- Mas, vejamos bem – tornou Catarina -; não se trata aqui de cobras, porque, de facto a cobra já não existe; mas sim da alma de um defunto, por quem choramos ao óbito...
- E esse defunto como se chamava? – Retorquiu Esperança.
Catarina reflectiu um momento e, vencida, nada respondeu. O seu pensamento não abrangeu, decerto, aquele outro caso revelado por Anatole France, se não estamos em erro, da viva discussão que na corte celestial se levantou sobre o baptismo de uns pinguins levado a efeito por um padre míope, e se, por esta circunstância, deveriam ou não dar entrada no seio da cristandade. Até aí, para estabelecer a comparação, não chegou o pensamento de Catarina, nem se preocupou em saber se, a ser certa a metempsicose, as almas que se evolam deste mundo conservam no outro a forma da matéria, que a terra consome. Calou-se e aparentemente concordou em não se celebrar a missa na igreja. O acto limitou-se, portanto, no dia seguinte, a uns choros sumidos, e á abertura das janelas.
O que mais era preciso?

///

Tudo se fizera como o kimbanda havia recomendado e Uakinga traduzido; D. Clara, no entanto, nenhumas melhoras experimentava.
Esperanças e Catarina, finda a cerimónia da abertura das janelas, foram dar conhecimento da forma como correu o óbito; mas tal revelação não a fizera sossegar; pelo contrário, fraca, olhar vago quase sem brilho, a doente denunciava já aquele estado estranho que se nota em organismos cansados de lutar. Não lhe interessava já a narração das duas servas como se interessara para na organização do óbito. Oito dias bastaram para nela se operar a mutação que a todos assombrava. O seu estado agravava-se de dia para dia. Dir-se-ia que aquele corpo sossobrava sob o peso de um tormento que o aniquilava. As duas servas notaram-no e, entreolhando-se, não ocultaram, como as outras pessoas que ali se encontravam, a sua estranheza.
Catarina recordou:
- Não sei - disse ela para a companheira -, parece-me que se não cumpriu bem a vontade revelada pela alma da cobra.
- Porquê?
- Porque se não deram as missas...
- Oh! Isso não tira nada.
- Parece-lhe? E esta agitação da senhora, o que significa?
Esperança nada respondeu. Talvez por, naquele momento, não lhe interessarem já os argumentos da Catarina.
- Mamã; as cobras, ainda que mortas, também falam? – perguntou a pequena Hortênsia.
A esta observação da ingénua criança, D. Clara, como que acordando de uma longa e pesada letargia, abraça-se á filha olhos muito abertos, exclamando: Ai! nhoka!... nhoka!
Trémula, agita as roupas e procura com o olhar qualquer ciosa que receia, mas que não vê. O tormento aumenta dia a dia e a doença como que atingindo o auge, continua sua marcha desastrosa.
Catarina e Esperança, desde então, jamais se separaram do leito da enferma, absorvida em seus pensamentos.
Poucos dias mais durou e, numa quarta-feira, 28 de Novembro de 1877, D. Clara Júlia Pires Pederneira deixava de existir.
- Aiuê, nhok’e! - Foram as suas últimas palavras.

In “O Segredo da Morta” (Romance de Costumes Angolanos) União dos Escritores Angolanos, 1979

1 comentário:

  1. Cheguei aqui pelo blog do meu amigo e poeta Décio B. Mateus e fiquei viciado. Obrigado, vou fazer um link.
    Kandandu

    ResponderEliminar